Questionamentos sobre o uso da ata notarial como meio probatório de posse para fins de usucapião extrajudicial            

27/11/2018

 

Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

Com o novo regramento processual estabelecido pelo Código de Processo Civil de 2015, ocorreram diversas inovações em especial no que toca ao direito probatório. Sobre essas mudanças, podemos destacar a introdução do meio probatório denominado ata notarial, o qual consiste em ato de competência exclusiva aos tabeliães de notas[1], com previsão no artigo 384 do Código de Processo Civil, que dispõe da seguinte redação:

 

“Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião”.

 

Conforme se verifica da redação do dispositivo legal, o objetivo da ata é fazer com que um tabelião ateste a existência ou o modo de existir de algum fato, conferindo, desse modo, fé pública a um certo estado de coisas, por meio da lavratura da ata.

Um bom exemplo para o uso de ata notarial consiste em requerer ao tabelião que ateste a existência de textos injuriosos ou difamantes em redes sociais[2][3]. Nesse caso, o tabelião irá registrar que, na data x, acessou a rede social y, oportunidade em que constatou a existência de um texto difamatório. Feito esse registro, o qual é dotado de fé pública, caso o autor dos textos, temendo eventual ação para a reparação de danos, resolva removê-los, o ofendido estará munido de forte prova da existência dos textos, de modo que passa ao ofensor comprovar a falsidade da ata.

Uma vez explicitado o funcionamento e o objetivo da ata notarial, faz- se mister questionar: é possível que o tabelião possa atestar fato pretérito?

A leitura do dispositivo já nos permite inferir que a produção de uma ata notarial é incapaz de servir a esse objetivo. Se a função da ata é permitir que um tabelião ateste a existência ou modo de existir de algum fato, por óbvio, trata-se de uma situação presente e atual e não de um fato pretérito, ainda que a sua existência seja em razão de um fato praticado anteriormente. Se é possível que o tabelionato ateste o fato, este fato é presente ainda que seu início tenha se dado no passado.

Como explica Teresa Arruda Alvim Wambier: “A ata notarial, lavrada exclusivamente por tabelião de notas, nos termos do art. 7º, III, da Lei Federal 8.935/94, tem a finalidade de constatar a existência ou o estado de coisas, pessoas ou outros objetos, com presunção de veracidade típica dos documentos públicos. Nela, o tabelião descreve os fatos que presencia, tanto no recinto interno como em local externo à serventia, ou ainda em ambiente virtual, atribuindo fé pública àquilo que constatar”[4] (grifos nossos).

Com o intuito de refletir sobre a questão, mostra-se interessante retomar o exemplo oferecido ao começo do texto. Suponha que ofendido esteja se dirigindo ao tabelionato com o intuito de produzir a ata notarial, mas ao chegar ao seu destino, descobre que o texto difamatório foi apagado. Diante desse cenário, o que poderá ser feito pelo tabelião? Uma vez que o texto deixou de existir, não há o que ser registrado pelo servidor.

Portanto, em relação a produção probatória por meio de ata notarial, o que se objetiva demonstrar é que a função do tabelião é atestar o que presencia, de modo que não há o que se falar em registro de um fato pretérito a data da lavratura da ata. A distinção é muita simples, ainda que o estado de coisas tenha tomado a forma presente em razão de um fato passado, o tabelião jamais vai atestar a ocorrência desse fato (pois não tem como saber), mas, sim, a situação da maneira como se encontrava no momento em que lavrou a ata notarial.

Essa discussão assume uma nova face quando se analisa o artigo 216-A, caput, e inciso I, da Lei 6.015/73 (Lei de Registro Públicos), responsável por introduzir a usucapião extraordinário:

 

“Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:    

I - ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias, aplicando-se o disposto no art. 384 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)” (grifos nossos).

 

Sobre o instituto cabe, primeiramente, um elogio à iniciativa. Levando em conta o abarrotamento do nosso sistema judiciário, todas as medidas que atribuem alternativas ao ingresso judicial merecem ser louvadas, ainda mais no caso de ações de usucapião costumam se estender por anos[5].

Entretanto, levando em conta as reflexões tecidas anteriormente, mesmo sendo possível por determinação de lei a utilização de ata notarial para provar a posse do requerente e de seus antecessores, é preciso ser questionado se há alguma razão para a utilização desse instituto como prova de tempo ou posse.

Veja bem, como defende a melhor doutrina, é possível a utilização da usucapião extraordinária para se pleitear qualquer tipo de aquisição[6], se tratando, portanto, mais de uma questão da via pela qual se requer do que propriamente de modalidade de usucapião. Desse modo, suponhamos um caso em que um indivíduo detém a posse de um imóvel por vários anos e, somada com as posses de seus antecessores[7], nos termos do artigo 1207 do Código Civil, pretende pleitear, por via extrajudicial, a usucapião extraordinária (art. 1238 CC).

Nessa modalidade de usucapião, basta que o interessado demonstre que detém a posse de maneira ininterrupta e sem oposição pelo prazo de 15 anos, sendo que sequer há exigência de apresentar justo título[8]. É a ata notarial instrumento hábil a demonstrar esse lapso temporal de posse?

Se seguirmos os requisitos estabelecidos pelo CNJ para a elaboração de ata notarial com fins de usucapião teríamos um procedimento que seria executado dessa maneira (conforme provimento Nº 65 de 14/12/2017):

 

 

“Art. 4º O requerimento será assinado por advogado ou por defensor público constituído pelo requerente e instruído com os seguintes documentos:

I – ata notarial com a qualificação, endereço eletrônico, domicílio e residência do requerente e respectivo cônjuge ou companheiro, se houver, e do titular do imóvel lançado na matrícula objeto da usucapião que ateste:

  1. a) a descrição do imóvel conforme consta na matrícula do registro em caso de bem individualizado ou a descrição da área em caso de não individualização, devendo ainda constar as características do imóvel, tais como a existência de edificação, de benfeitoria ou de qualquer acessão no imóvel usucapiendo;
  2. b) o tempo e as características da posse do requerente e de seus antecessores;
  3. c) a forma de aquisição da posse do imóvel usucapiendo pela parte requerente;
  4. d) a modalidade de usucapião pretendida e sua base legal ou constitucional;
  5. e) o número de imóveis atingidos pela pretensão aquisitiva e a localização: se estão situados em uma ou em mais circunscrições;
  6. f) o valor do imóvel;
  7. g) outras informações que o tabelião de notas considere necessárias à instrução do procedimento, tais como depoimentos de testemunhas ou partes confrontantes;“

 

            Essa orientação do CNJ é acertada no que toca a elementos como matrícula do imóvel ou seu valor, mas vislumbremos os itens “b” e “c”, tempo e forma de aquisição do imóvel. Conforme o raciocínio construído até aqui, verifica-se não ser possível que o tabelião os ateste, ao menos que esteja presente para presenciar essas situações, afinal, como já muito salientado, o serventuário não pode atestar o que não presenciou.

            O tabelião não será capaz de atestar por quanto tempo o possuidor reside no imóvel. Afinal, ele, na condição de tabelião, não tem como saber essa informação, pois ele não viu [9] o determinado momento em que o indivíduo (ou seus antecessores) adentraram no imóvel, tampouco testemunhou, propriamente, o tempo de posse. O que será possível é atestar que, na data x, foi informado de que o possuidor vive há tantos anos no imóvel. A diferença é enorme. O fato que está sendo atestado, que virá a ter fé pública, não é o tempo em que o possuidor permaneceu no imóvel propriamente, mas, sim, declarações colhidas pelo tabelião a respeito da percepção do interessado e de eventuais testemunhas as quais atribuirão a sua perspectiva sobre a situação do imóvel e quem lá habita.

            Não há dúvidas de que objetivando a consolidação do procedimento de usucapião extraordinária, colher previamente os depoimentos de possíveis testemunhas, objetivando a demonstração da posse ou mesmo o modo de aquisição pode vir a ser muito útil quando se pensa em celeridade.

Entretanto, é imperativo questionar se a ata notarial está sendo de fato utilizada, conforme estipulado pelo legislador. Uma vez que o objetivo da ata notarial é atribuir fé pública a um estado de coisas, o uso da ata notarial parece não atingir seu propósito. Afinal, o fato ao qual estará sendo atribuído fé pública não é o conteúdo dos testemunhos, mas, sim, que as testemunhas, em data x, prestaram o determinado testemunho. 

Após essa breve ponderação sobre o assunto, verifica-se que a ata notarial é um importante meio probatório, de modo que não se objetiva desmerecer o instituto. Afinal, a possibilidade para que o tabelião confira fé pública a um estado de coisas tem, sem dúvidas, os seus méritos.

Entretanto, parece correto afirmar que o objetivo do legislador foi conferir ao tabelião meios de atestar a existência e o modo de existir de um fato que presencia no momento presente. Seguindo esse raciocínio, não seria possível que o tabelião atestasse a existência de um fato pretérito, uma vez que, como muito salientado, não o presenciou.

Como visto, o fato de o tabelião só poder atestar algo que na prática constatou pode causar um grande impacto no tocante ao registro da usucapião extrajudicial. Isso porque, um dos requisitos elencados pelo artigo 216-A da Lei de Registros Públicos é a presença de ata notarial atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores.

A despeito dessa autorização legislativa, questiona-se se a ata notarial é o meio hábil para provar o tempo da posse do requerente. Parece-nos que não, uma vez que o tabelião não poderia lavrar uma ata notarial atestando o tempo que o requerente reside no imóvel, afinal, ele não pôde presenciar o momento em que o requerente ou seus antecessores passaram a residir no imóvel objeto da usucapião, muito menos todo o tempo da posse.

Infere-se, portanto, que o tabelião apenas seria capaz de atestar que o requerente ou eventuais testemunhas corroboram o tempo na posse do imóvel em questão. Ou seja, o fato que o tabelião seria capaz de atestar e, por consequência, seria dotado de fé pública, não é o tempo que o requerente permaneceu no imóvel, mas sim as declarações de que este está no imóvel por esse período de tempo.

Logo, conclui-se que é de suma importância questionar se a ata notarial está sendo utilizada para o fim definido pelo Código de Processo Civil, isto é, para que o tabelião seja capaz de atestar a existência e o modo de existir de um fato que possa presenciar, conferindo fé pública ao estado de coisas em si.

Assim, qualquer outro uso da ata notarial que não seja atestar a existência de um fato capaz de ser constatado pelo tabelião no momento presente, estaria desvirtuando a razão de existir desse meio de prova, não atingindo o seu propósito ou conferindo o real valor probatório da ata notarial.

 

Notas e Referências

[1] “Art. 7º. Aos tabeliães compete com exclusividade (...) III – lavrar atas notariais;”.

[2] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil, volume único, 9ª ed., Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, pp. 761-762.

[3] Sobre essa exemplo, pertinente o apontamento feito pelo professor José Miguel Garcia Medina, referenciando Caio César Carvalho Lima. MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual civil moderno, 2ª ed., São Paulo: Editora RT, 2016, p. 679.

[4] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO; Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil, editora RT, 2ª ed., 2016, p. 739.

[5] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 7ª ed., Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2017, p. 1039.

[6] Idem, p. 1037.

[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das coisas, vol. 05, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 288.

[8] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 7ª ed., Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2017, p. 1025.

[9] Apesar de recorrentemente utilizar como referência termos como “presenciar” ou “ver”, importante salientar que a ata notarial não se limita meramente a visão, como bem salienta Daniel Amorim: ”Essa capacidade de atestar a existência ou modo de ser do fato deve considerar todos os sentidos humanos e não somente a visão. Dessa forma a descrição pode se referir a eventual barulho ou som (audição), a odores e cheiros (olfato), a gosto (paladar) e a textura ou formato (tato)”. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil, volume único, 9ª ed., Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, pp. 761-762.

 

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