Quem sabe de Caio, Tício ou de Mévio? – Por Marcos Catalan

28/10/2016

Retomo aqui – ainda que limitado pela dimensão espacial que emoldura esta coluna – o tema ao qual dediquei deliciosos cinco anos vividos na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco durante nosso doutoramento ao alinhavar este pequeno opúsculo com a esperança e a consciência da relevância de estimular a reflexão acerca do papel reservado à culpa – se é que lhe resta algum – na contemporaneidade jurídica brasileira.

Uma reflexão que não ignora a existência de três momentos bastante distintos – a contrário, a pressupõe – na lapidação do direito privado construído ao longo dos últimos duzentos anos no Brasil.

Explicito-os.

O primeiro viu nascer as primeiras codificações civis, monumentos legislativos pensados para viger por toda a eternidade e que, de forma arrogante e pretensiosa, acreditaram ser mais fortes que o Chronos que a tudo devora. O liberalismo econômico, o individualismo filosófico e a forte tendência na tutela do patrimônio de uns poucos foram as suas marcas mais explícitas. Sua personagem principal, o sujeito de direito essa figura abstrata que ninguém nunca conhecera, verdadeiramente.

O levantamento de muitas das pegadas deixadas no terreno abalado pelo movimento tectônico que levou à fragmentação do Direito no Estado Social permite resgatar, não apenas, algumas das muitas promessas, por ele, não cumpridas, mas, também, algumas de suas características mais salientes: a expansão da legislação especial, a insustentabilidade da ideia de coerência do Direito, ao menos, enquanto pensado enquanto law in books e a preocupação com a tutela de alguns nichos sociais estão entre elas. No Brasil, o século XX viu nascer novas personagens: o arrendatário e o parceiro agrários e a mulher, capaz em teoria, desde os anos 60 estão entre elas, embora – em boa medida – continuassem a ser pensadas de forma tão abstrata quanto seu antepassado decimonônico.

Pegadas que desapareceram na transição entre o presente vivido e o futuro que carrega consigo as marcas indeléveis do desconhecido e da incerteza e conduzem o leitor a um universo marcado pela complexidade que imanta o direito civil inaugurado no Brasil com advento de nosso Estado Democrático de Direito em 1988. Desde então percebe-se que (a) os tão usuais silogismos jurídicos, definitivamente, não servem mais ao Direito, (b) a necessidade de levar os princípios à sério – diante sua manifesta força normativa –, (c) o dever de, adequadamente, densificar os direitos fundamentais das mais distintas dimensões – tenham sido eles previstos de forma explícita (ou não) –, bem como, (d) que todo raciocínio jurídico deve gravitar ao redor da inafastável valorização do ser humano em detrimento do ter.

Um contexto no qual emerge a percepção de que as fronteiras no interior das quais o direito privado movimenta-se são muito maiores que as existentes outrora, o que, em alguma medida, levou à identificação de que o dever de reparar há de ser pensado tendo por moldura o direito de danos e não mais a responsabilidade civil, apesar de louvável e sério esforço teórico buscando refutar a aludida mutação[1].

Em vez de tentar demonstrar que uma conduta irresponsável provocou um dano, é preciso comprovar que o dano se encontra, de algum modo, conectado ao ato ou atividade que lhe deu vida nos campos da fenomenologia.

A aceitação da mutação havida – e nela, a culpa jaz em algum lugar no Tártaro – permite identificar que muitas das expectativas normativas que daí pulsarão talvez – e, apenas, talvez, possam auxiliar a evitar alguns dos danos que pululariam nos cenários em que pulsam as relações sociais. Alguns, pois nem sempre será possível evitá-los a todos.

Aliás, não é incomum que em minhas elucubrações – muitas delas, havidas, nos parques e cafés de Porto Alegre, onde costumo fazer agradáveis leituras, especialmente, sob as luzes da primavera –, me pergunte, de modo renitente, quem seria o cidadão responsável em um cenário cada vez mais plural e marcada pela complexidade construído a partir dos mapas desenhados na Sociedade de risco e que se encontra imersos em um universo cada vez mais multifacetado.

Me pergunto, também, onde estarão escondidos o homem médio e a mulher honesta?

E mesmo que nossa reflexão mais profunda[2] tenha se limitado a explorar o universo do direito dos contratos, aparentemente, ela pode ser ampliada para os confins de todo o direito de danos, em especial, depois da objetivação de seus matizes mais íntimos.

É passado o tempo de a sociedade brasileira e a comunidade jurídica entenderem quão importante é vivenciarmos a lógica do Pequeno Príncipe. O tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas deve ser adotado como máxima de vida. E, se não eternamente, pelo menos durante o desvelar das relações havidas na coexistência humana.

Ademais, consoante os moldes forjados pelo direito civil no Estado Liberal, o sujeito de direito não passa de uma figura pensada diante da necessidade de atribuir-se a ele o patrimônio. Lá, não havia razão – nos termos dos modelos científicos então vigentes – para preocupações com a pessoa humana. Todos eram iguais e racionais. Todos tinham, portanto, as mesmas condições, por meio de seus esforços, de acumular capital.

Eis um dos maiores equívocos havidos nos últimos séculos.

Um equívoco que reverbera, especialmente, nas noites mais frias.

É passado o tempo de perceber que as sombras projetadas por conceitos – muitas vezes, construídos em forjas pré-modernas – não são o Direito, mas espectros de um cenário não mais existente.

Banir a culpa do discurso cotidiano talvez permita, utopicamente, resgatar o valor da pessoa humana: um ser que possui dimensão existencial, que tem paixões, fome e desejos, que vive entre pulsões, êxtases e angústias.

Uma trilha que tem suas amarras atadas (a) à alusão constitucional à necessidade de proteção da pessoa humana, (b) à exigência de valoração das distintas situações jurídicas a partir de uma perspectiva isonômica em nível substancial e, ainda, (c) ao comando que visa a promover a redução das desigualdades sociais e a redistribuição da riqueza.

A propósito, pouco antes de terminar a revisão deste texto tive notícias de que o homem médio desposara a mulher honesta e com ela teve três filhos: Caio, Tício e Mévio. Eles vivem em algum lugar entre a ilha dos Lotófagos e a atemporalidade em que vive o nosso id.

Deixemo-nos em paz.

Nos vemos na próxima sexta! 


Notas e Referências:

[1] Veja-se, por exemplo, o texto de Otavio Luiz Rodrigues Junior, publicado no Conjur (27.07.2016).

[2] CATALAN, Marcos. A morte da culpa na responsabilidade contratual. São Paulo: RT, 2013.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Column Capital // Foto de: Barta IV // Sem alterações

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