Quem mente primeiro, diz a verdade?

26/09/2015

Por Érico Ricardo da Silveira e Leandro Fabris Neto - 26/09/2015

Quem na labuta diária do sistema criminal nunca se deparou com o seguinte exemplo: Ocorre um crime, geralmente grave, e, após a notícia do fato à autoridade policial, dá-se início às “investigações”; a vítima é levada para a delegacia, visando realizar o “reconhecimento” do suspeito. Abre-se o livro de fotografias (uma espécie de index policial) e com algumas indicações aqui e ali a vítima “reconhece com cem por cento de certeza(?)” ser determinada pessoa a autora do fato. Com isso, e apenas isso, começa a persecução penal; na instrução, novamente, mostram à vítima as fotos (porque ela não quis ser ouvida na frente do acusado) e essa não titubeia; no interrogatório, o acusado nega a autoria do delito e, então, vem a pergunta (na maioria das vezes feitas pelo Magistrado) que sela a condenação a partir do “livre convencimento”: mas você sabe se a vítima tem alguma coisa contra o(a) senhor(a)? Pronto! Condenação após o (in)devido processo legal. A primeira “verdade” apresentada é a “vencedora” para o sistema.

Essa pequena introdução (talvez, um pouco exagerada) é para abrir o tema de uma problemática que segue despercebida por muitos que laboram no processo penal: pode o Poder Judiciário simplesmente fechar os olhos para a forma estabelecida em lei e, chancelando o procedimento adotado em sede policial, reconhecer a legalidade do reconhecimento fotográfico?

O ilustre magistrado e professor carioca, Geraldo Prado, ao tratar do assunto lembra daquilo que é chamado de “falsas memórias”. Em caso concreto, há interessante e pedagógica fundamentação:

“as falsas memórias se diferenciam da mentira, essencialmente, porque, nas primeiras, o agente crê honestamente no que está relatando, pois a sugestão é externa (ou interna, mas inconsciente), chegando a sofrer com isso. Já a mentira é um ato consciente, onde a pessoa tem noção do seu espaço de criação e manipulação” (TJRJ, Apelação n. 2007.050.04426, j. 29 de novembro de 2007).

Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa alertam para o risco de o reconhecimento fotográfico induzir o reconhecimento posterior pelo ofendido, contaminando o “procedimento” por completo. Veja-se:

“Não raro às vítimas, sem que tenha sido colhido formalmente seu depoimento e a descrição do autor e suas características, é apresentado o famoso “álbum de fotografias” ou mesmo as “imagens de computador” dos agentes que já passaram por investigações policiais ou que os policias possuem a intuição da autoria. Há, com isso, a apresentação do conjunto dos agentes e, muitas vezes, instigação pelo reconhecimento. Segue-se a lavratura do “auto de reconhecimento fotográfico” e, não raro, o pedido de prisão e/ou indiciamento. Lembre-se que a produção de prova processual deve atender aos requisitos legais e, como tal, a exigência de diversos suspeitos, com características similares, é condição de possibilidade à sua validade. Não se trata de reconhecer a nulidade posterior e sim a ilegalidade de sua produção, a saber, o ato de reconhecimento se deu ao arrepio da regra procedimental. Daí em diante fixa-se a imagem do agente (falsa memória) e, assim, o conteúdo está contaminado. O reconhecimento fotográfico não é previsto em lei e se trata, no fundo, do “jeitinho brasileiro” aplicado ao processo penal. Uma das modalidades de doping processual”[1].

Há tempos que o subjetivismo nas decisões judiciais vem sendo criticado e grande parte daqueles que defendem uma aplicação da lei na decisão judicial com integridade e coerência (por todos, Lenio Luiz Streck) são taxados de positivistas, com um tom bem pejorativo. Processo Penal é forma e forma é garantia.

Tratando-se de sistema criminal onde está em jogo o status libertatis do cidadão devemos constitucionalizar o processo penal e admitir sem medo que: forma é garantia!

Não é por outro motivo que nossa Constituição Federal estabelece:

Artigo 5º: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal";

O princípio do devido processo legal é o maior sustentáculo para um processo penal democrático e a “fonte” pela qual derivam todos os outros princípios processuais.

Muitas vezes os personagens do sistema penal não levam em conta a importância dos princípios em tempos de uma análise processual que deve ser encarada como inserido em um Estado de Direito Democrático. Não necessariamente de má-fé. Mas a interpretação e utilização muitas vezes errônea ou ingênua dos princípios nos leva a decisionismos com uma alta carga de discricionariedade (leia-se: arbitrariedade).

Lênio Streck e Rafael Oliveira atentam para o fato de que

“É preciso ter presente, desde já, no contexto do Constitucionalismo Contemporâneo os princípios assumem uma dimensão normativa de base. Vale dizer: não podem ser tidos como meros instrumentos para solucionar um problema derivado de uma lacuna na lei ou do ordenamento jurídico. Na verdade, em nosso contexto atual, os princípios constitucionais apresentam-se como constituidores da normatividade que emerge na concretude dos casos que devem ser resolvidos pelo judiciário[2]

Considerando, portanto, a carga normativa própria dos princípios, não se deve pensar que o devido processo legal é apenas um adorno, um adereço estampado na Carta Constitucional, sob a (pseudo)justificativa  confortado de consciências no sentido de que “na prática a teoria é outra”.

Alexandre Morais da Rosa explica que “na Constituição estão representados os direitos reciprocamente reconhecidos e os procedimentos eleitos para justificar a intervenção na esfera privada por imposição pública. Assim é que a função do Direito de estabilizar expectativas de comportamento somente acontece mediante o devido processo legal substancial[3]”.

Talvez o ponto mais importante e onde sobram discussões no campo processual penal é a gestão da prova. É através dos elementos probatórios, colhidos em contraditório e com base no disposto na legislação, que se poderá chegar a uma decisão final, seja de condenação ou absolvição.

A prova colhida em investigação preliminar (geralmente um inquérito policial) não tem o condão de levar à decisão final no processo.

“Destaque-se, por básico, que a pseudo-prova produzida no “Inquérito Policial” somente pode servir para a análise da condição da ação, ou seja, dos elementos necessários para o juízo de admissibilidade positivo da ação penal. No mais, não há qualquer possibilidade de valoração democrática, no processo Penal constitucionalizado, por ser ela desprovida das garantias processuais[4]”.

Nesse passo, temos que o costume das autoridades policiais em realizar o reconhecimento fotográfico não possui qualquer amparo legal. Da mesma forma, não se pode agravar a situação do investigado/acusado por causa de eventual ausência de estrutura do aparato estatal para a devida colheita da prova, com base no reconhecimento de pessoas nos termos do que dispõe a legislação correlata.

O Código de Processo Penal estabelece vários “tipos” de prova e algumas com um regime especial de colheita. Dentre estas está o reconhecimento de pessoas e coisas, previsto nos artigos 226 e seguintes.

Portanto, qualquer reconhecimento de pessoa que não observe o disposto nas normas informadas deve ser considerado inválido ou seja, para todos os efeitos, prova ilícita[5] em sentido amplo e, no presente exemplo, ilegítima.

Uma simples olhadela no Capítulo VII do Título VII do Código de Processo Penal (DO RECONHECIMENTO DE PESSOAS E COISAS) permite concluir que o procedimento para o reconhecimento de pessoas é delimitado em rito detalhado. Também, é fácil perceber que a lei, em momento algum, abre a possibilidade de realização do reconhecimento por meio fotográfico.

Poder-se-ia afirmar que a expressão “se possível”, prevista no inciso II do art. 226 do CPP reconhece e permite o reconhecimento do ausente. Portanto, se possível, faz-se o reconhecimento na presença; caso contrário, não se o faz.

Ocorre que a expressão “se possível” não se refere à palavra “pessoa”, mas sim à expressão seguinte, qual seja, “ao lado de outras que com ele tiverem qualquer semelhança”.

Não há, pois, espaço para “puxadinhos hermenêuticos”.

Tendo o legislador determinado o procedimento para o reconhecimento de pessoas este deve ser seguido pelas autoridades policial e judicial.

Conforme bem remarca Lênio Streck[6], somente é possível deixar de aplicar uma lei ou regulamento em seis hipóteses: a) se a lei for inconstitucional; b) se for caso de, na relação texto-norma (fórmula Müller), ser possível fazer uma interpretação conforme; c) se for caso de, nas mesmas circunstâncias, uma nulidade parcial sem redução de texto; d) se estivermos em face da aplicação dos critérios de resolução de antinomias; e) se for caso de inconstitucionalidade parcial com redução de texto: f) e, por último, se for caso de uma regra ter de ceder em face de um princípio constitucional (claro, com as ressalvas acerca daquilo que se deve entender por princípios e sem cair, destarte, no pamprincipiologismo).

Não é o objetivo do presente artigo esmiuçar as hipóteses levantadas, mas certamente o procedimento descrito nos artigos 226 e seguintes do CPP não se encontra em nenhuma das seis situações apresentadas.

Não podemos dizer que a forma adotada seria inconstitucional, pois não vislumbramos qualquer violação à dispositivos constitucionais, notadamente os de interesse ao processo penal e não há qualquer ambiguidade que necessite de elementos de interpretação constitucional. Em geral, normas que descrevem ritos/procedimentos possuem baixa densidade interpretativa, não exigindo do intérprete maiores divagações.

Impossível, portanto, escolher discricionariamente a forma como fazer o reconhecimento, muitas vezes com a alegação que a estrutura não permite seguir o padrão legal.

Se o Estado não dispõe de instrumentos para a escorreita aplicação dos comandos normativos pelos órgãos de persecução penal, o problema não pode recair sobre o acusado, agravando ainda mais seu quadro de inferioridade perante o sistema penal.

Por tais razões, acreditamos que a reposta àquela indagação feita logo no início é simples: NÃO. Não pode o Judiciário simplesmente fechar os olhos para o procedimento pormenorizadamente descrito para o reconhecimento de pessoas no Código de Processo Penal.

Uma lei democraticamente apresentada para a sociedade e em conformidade com a Constituição da República deve ser aplicada. Simples assim.

A forma de se proceder ao reconhecimento é apenas uma: o disposto nos artigo 226 e seguintes do CPP. Segundo Aury Lopes Jr:

“O reconhecimento de pessoas e coisas está previsto nos artigos 226 e seguintes do CPP, e pode ocorrer tanto na fase pré-processual como também processual. O ponto de estrangulamento é o nível de (in)observância por parte dos juízes e delegados da forma prevista no Código de Processo Penal. Trata-se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que – em matéria processual pena – forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense consiste em fazer “reconhecimentos informais”, admitidos em nome do princípio do livre convencimento motivado.”[7]

Sabe-se que existe decisão do STJ admitindo a utilização do reconhecimento fotográfico, desde que observadas as regras do artigo 226 do CPP[8]. Chega a ser estranho admitir a possibilidade de reconhecimento fotográfico nos moldes do artigo 226. Como este seria realizado? A sua produção caracterizaria efetivo reconhecimento ou mero indício?

Certo é que em um país de estamentos a forma como garantia ainda é, em regra, aplicada apenas no “andar superior”[9].

Não podemos admitir a inobservância das normas democráticas com base no livre convencimento e que a “primeira verdade” apresentada no processo seja convalidada com inobservância das regras do jogo (vide “A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal”, de Alexandre Morais da Rosa, Ed. Empório do Direito e Rei dos Livros).

Na prática a teoria não pode ser outra.


Notas e Referências:

[1] Memória não é Polaroid: precisamos falar sobre reconhecimentos criminais. In http://www.conjur.com.br/2014-nov-07/limite-penal-memoria-nao-polarid-precisamos-falar-reconhecimentos-criminais. Acesso em 08.11.2014.

[2] STRECK, Lênio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O que é isto – as garantias processuais penais? Porto Alegre: Livraria  do Advogado, p10/11.

[3] ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 1ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Pág.58.

[4] Idem. Pág. 164.

[5] CF/88. Artigo 5º. - LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

[6]<http://www.conjur.com.br/2014-out-25/observatorio-constitucional-stf-deixar-aplicar-lei-jurisdicao-constitucional> Acesso em 26.10.2014.

[7] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 11ed. São Paulo: Saraiva, 2014. Pág:700/701.

[8] Vide: HC 136.147/SP. Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, 5ºT, j.06/10/2009. Dje 03/11/2009.

[9] “Quando o acusado é VIP, o recebimento da denúncia é motivado, Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa, disponível em http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-vip-recebimento-denuncia-motivado


Érico Ricardo da SilveiraÉrico Ricardo da Silveira é graduado em Direito pelo Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM). Pós-graduado em Ciências Criminais (LFG/Anhanguera). Defensor Público Substituto (MT).

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Leandro Fabris NetoLeandro Fabris Neto é graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru (Instituição Toledo de Ensino - ITE). Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (RJ). Membro da Law Enforcement Against Prohibition - LEAP Brasil. Defensor Público (MT).

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Imagem Ilustrativa do Post: 14 of 52 // Foto de: Mr Seb // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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