QUEM LACRA LUCRA? FINANCIAMENTO PRIVADO DE PARADAS LGBTs

28/07/2019

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Este 28 de junho marca os 50 anos da Revolta de Stonewall, quando em 1969 pessoas LGBTs que frequentavam o bar Stonewall Inn (Nova York) reagiram à tentativa de interdição da polícia no local. A data é tida como um marco histórico para o movimento LGBT e é reivindicada em inúmeras paradas de orgulho no mundo todo.

No domingo, dia 23 de junho de 2019, ocorreu a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, considerada a maior do mundo. Para contextualizar o momento político em que a luta LGBT está situada e como forma de pensar o cenário de políticas, não se pode deixar de reconhecer a importância das paradas como forma de projetar a visibilidade do movimento. Segundo dados da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, são mais de 300 no Brasil todo, sendo o país onde mais ocorrem Paradas no mundo. Pela reunião de pessoas, as paradas são tidas como o maior evento cívico do país, atingindo cerca de 13 milhões e meio de pessoas.

Antes do evento de domingo, foi realizado o II Encontro Brasileiro de Organizações de Paradas LGBT, onde se reuniram representantes de 55 Paradas – o público espectador dos eventos que tiveram representação no encontro chega a 8 milhões e meio de pessoas. No encontro, a ABCR (Associação Brasileira de Captadores de Recursos) apresentou a primeira oficina, sobre “Captação de Recursos” para ONGs. Ainda de manhã, houve outras três oficinas: Comunicação e Marketing para o Fortalecimentos das Paradas; Como falar de HIV/Aids nas Paradas; Por que e como legalizar organizações de marchas do orgulho; e Segurança nas Paradas.

Tratar desse tema é importante para pensar sobre os desafios que estão colocados na militância LGBT, bem como compreender quais são as articulações que estão sendo feitas nesses processos. Pensando a programação do encontro de organizações de paradas LGBT é possível perceber que entre os principais debates estão os custos e as formas de viabilizar a realização destes eventos – que em geral dependem de uma estrutura de altos valores.

Pensando o contexto local, a Parada Livre de Porto Alegre reuniu 80 mil pessoas na redenção em 2018, com shows artísticos e discursos políticos. A cada ano o evento aborda uma temática diferente, com um slogan que pauta questões importantes para a visibilidade do movimento LGBT. Com relação aos custos, até 2016 a prefeitura da cidade realizou um pregão para contratar uma empresa que fornecesse a estrutura para o evento (palco, som, etc).

Em 2017, quando assumiu o prefeito Marchezan (PSDB), essas contratações não foram mais realizadas, então a organização da Parada procurou uma produtora para arrecadar recursos para construir o evento. Em 2018, a produtora desistiu do contrato 20 dias antes do evento. Com esse imprevisto, algumas pessoas da militância que organiza a Parada Livre foram destacadas para ir atrás de várias empresas para procurar ajuda financeira, como a Uber, Skol, e não conseguiram retorno de nenhuma, pois faltava pouquíssimo tempo para o evento.

Mesmo com desespero, foi possível reverter a situação por meio dos seguintes movimentos: i) doações da sociedade civil, sindicatos e figuras públicas; ii) realização de eventos em casas noturnas; iii) doações de valores por meio da plataforma virtual apoia.se; iv) patrocínio de empresas privadas, como a do aplicativo de mobilidade 99 APP; v) venda de produtos como ecobags, bottons, camisetas e canecas com o tema do evento. O valor arrecadado fechou um caixa de R$81.919,00 (oitenta e um mil novecentos e dezenove mil reais), com despesas que somaram R$50.699,67 (cinquenta mil seiscentos e noventa e nove reais e sessenta e sete centavos), restando para o caixa do evento de 2019 o montante de R$31.219,33 (trinta e um mil duzentos e dezenove reais e trinta e três centavos)[1].

Nas relações analisadas, é possível perceber dois movimentos opostos: ao tempo em que se observa a diminuição de incentivo estatal para a promoção de manifestações sociais para a comunidade LGBT, parece haver, em sentido oposto, um aumento do interesse de setores privados nesse investimento. Nos casos examinados, o apoio vem de aplicativos de mobilidade que com frequência são denunciados socialmente pela falta de segurança em trajetos, com situações que envolvem discriminação e preconceito contra a população LGBT.

As empresas demonstram interesse em apoiar publicamente a causa LGBT e contribuir financeiramente para a promoção de Paradas e promoção de trios elétricos é uma forma[2]. Além disso, a empresa Uber, por exemplo, criou o projeto “Vamos Juntos”, que se propõe a cuidar de ações de conscientização da própria equipe, abertura de espaços para a inclusão de trabalhadores LGBTs[3] e vinculação com outras parcerias. Inúmeros vídeos foram elaborados e encontram-se disponíveis no site da empresa com figuras reconhecidas na militância LGBT[4].

As iniciativas se sobressaem num contexto em que a empresa que presta serviço de mobilidade é constantemente apontada pela conduta de motoristas que agem de forma discriminatória com pessoas da comunidade LGBT[5]. Por óbvio, ações de mesma natureza também ocorrem em outras empresas, inclusive de grande porte, mas nem sempre é possível visualizar o mínimo empenho que seja para coibir situações de preconceitos com clientes e até mesmo vexatórias entre trabalhadores.

Ocorre que nem sempre esses apoios e essas ações realmente são coerentes com as práticas das empresas, quando visam somente o lucro e não o fomento à igualdade e respeito à diversidade. Segundo dados da plataforma Popular Information, uma pesquisa da Harris Interactive aponta que “aproximadamente dois terços da comunidade LGBT, ou cerca de 66%, seriam muito suscetíveis a permanecerem leais a uma empresa ou marca que acreditam ser a favor da comunidade, mesmo quando concorrentes menos favoráveis ​​oferecem preços mais baixos ou mais vantagens”. Existe inclusive uma lista divulgada recentemente pela Forbes Brasil das maiores e mais favoráveis ​​corporações LGBTQ+ dos Estados Unidos que destinaram cerca de US$ 1 milhão ou mais a “políticos antigays” no último período eleitoral[6].

Esses são alguns impasses e contradições presentes neste cenário e que precisam ser enfrentados pelos movimentos sociais que constroem as ações de visibilidade LGBT. A organização da Parada Livre de Porto Alegre, quando começou a articular com empresas em 2018, já tinha como slogan “Resistir para não morrer - contra Bolsonaro”, e não recuaram dessa política para pedir patrocínio para as empresas. Se as empresas quisessem, a parceria teria que ser apoiando este formato de evento. Isso demonstra que a organização da Parada Livre de Porto Alegre não é somente para organizar o evento, mas funciona também como um fórum de lutas LGBT na cidade[7].

Com isso, é preciso ter em conta que construir eventos para promover a visibilidade LGBT exige uma organização difícil e de altos custos, mas que também é necessário promover pautas políticas de reivindicação de direitos nestes espaços. Dialogar com empresas para contribuir com isso é também aceitar que o setor privado (assim como o público) devem respeitar a diversidade e promover ações de formação profissional neste sentido. Uma aliança entre movimentos sociais, empresas e administração pública só é possível considerando o eixo de defesa desses direitos.

 

Notas e Referências

[1] Os dados são da prestação de contas da Parada Livre, documento que é público e pode ser obtido pela solicitação informal a qualquer membro da organização do evento. Como esta pesquisa envolveu a participação de grupos LGBTs que compunham esta organização, foi possível entrar em contato para demandar a declaração. (PARADA LIVRE, 2018)

[2] Em São Paulo, desde 2017 a empresa Uber contribui financeiramente com o evento, considerada a maior Parada do mundo. Em 2018, a conhecida cantora Pablo Vittar se fez presente no trio da parceira. No Rio de Janeiro, o ano de 2018 foi o terceiro em que a Uber esteve presente na Parada do Orgulho LGBT, tendo o trio elétrico composto por cantoras como Gretchen, a drag queen Gloria Groove, entre outras celebridades. O apoio também se destinou à 17ª edição da Parada do Orgulho LGBT da Bahia, que teve a cantora Gilmelândia como atração principal a se apresentar no trio do Uber. Em Fortaleza, o apoio se direcionou ao evento XXIX Parada da Diversidade Sexual do Ceará pelo terceiro ano consecutivo. As participações da empresa ocorreram em Paradas de Orgulho vinculadas à causa LGBT num total de 15 cidades em 2018, implantando as chamadas om rainbow routes, o que permite que o trajeto mostrado no aplicativo de mobilidade seja colorindo com as cores do arco-íris em todas as viagens na cidade, da semana anterior até o dia do evento. As informações foram veiculadas por meio dos sites: <https://poenaroda.com.br/featured/uber-confirma-pabllo-vittar-em-trio-da-parada-lgbt-de-sao-paulo/>; <https://odia.ig.com.br/diversao/2018/09/5578101-uber-apoia-parada-do-orgulho-lgbti-2018-do-rio-e-tera-trio-eletrico-com-gretchen-alinne-rosa-e-mais-artistas.html>; <https://observatoriog.bol.uol.com.br/parada-lgbt/2018/08/gilmelandia-se-apresenta-no-trio-do-uber-na-parada-lgbt-da-bahia>; <http://blogs.opovo.com.br/forronejo/2018/06/15/uber-apoia-parada-do-orgulho-lgbtq-em-fortaleza/>; Acesso em: 03 jan. 2019.

[3] Em meio a denúncias de preconceito de motoristas vinculados à empresa, também se destacam algumas notícias de colaboradores que se cadastraram no aplicativo, como a primeira motorista transexual do Brasil, Nathaly Oliveira, da cidade de Cuiabá (MT), que revelou que pela primeira vez conseguiu ter seu nome social e foto feminina associados à profissão com o registro no aplicativo. Disponível em: <http://www.hipernoticias.com.br/cidades/primeira-motorista-uber-transsexual-do-brasil-e-de-cuiaba-e-ve-avanco-na-luta-contra-preconceitos/71206>. Acesso em: 3 jan. 2019.

[4] Os vídeos e debates podem ser consultados no site da empresa e também são veiculados como mensagens no aplicativo durante as semanas de rainbow routes. Disponível em: <https://www.uber.com/pt-BR/pride/>.Acesso em: 03 jan. 20019.

[5] Entre as muitas não publicizadas e outras tantas que não é possível reunir, destaco a denúncia virtual da cantora Linn da Quebrada, que tomou as redes quando divulgou em seu Twitter que foi vítima de preconceito: “acabei de passar uma puta situação de constrangimento com a @Uber_Brasil e não é a primeira vez, lógico. Onde o motorista chega no local de embarque e se recusa a me deixar entrar no carro porque eu sou travesti. E aee @Uber_Brasil, já recalquei d problemas assim, de assédio”. No mesmo dia, alguns minutos depois, postou também: “Essa não eh uma situação pontual e ocasional, eh estrutural dentro de sua empresa. E não só comigo. Motoristas racistas, homolesbotransfóbicos, elitistas e invasivos. Isso não é por mim, é pra q outras como eu possam se sentir seguras e confortáveis na sua caminhada @Uber_Brasil”. A artista não conseguiu registrar reclamação em relação ao motorista, pois a corrida foi cancelada e não constava mais entre as suas viagens no aplicativo. Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2018/08/21/linn-da-quebrada-denuncia-motorista-de-uber-que-a-barrou-no-carro-por-ser-travesti.ghtml>.Acesso em: 03 jan. 2019.

[6] Disponível em: https://forbes.uol.com.br/listas/2019/06/nao-deixe-o-arco-iris-enganar-voce-9-corporacoes-que-doaram-milhoes-a-politicos-anti-gays/amp/. Acesso em 28 jun. 2019.

[7] Quando o Santander Cultural determinou que fosse encerrada a exposição do Queermuseu, por exemplo, os movimentos que constroem a Parada Livre se reuniram para ver como as entidades iam se posicionar.

 

 

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