Quem detém o poder. Quem tem o corpo. Carnaval e a mulher negra brasileira

19/03/2017

Por Simone Henrique – 19/03/2017

2017 no Brasil já começou. Foi-se o tempo em que nossas atividades cotidianas só ganhavam seriedade e formalismo depois do Carnaval. Este ano recém iniciado já trouxe uma série de inquietações consigo e esperar a “Quarta-feira de Cinzas” para estudar, trabalhar e refletir sobre os caminhos escolhidos pela sociedade, quer seja a brasileira, quer seja a mundial é um luxo que dispensamos.

Desafiada a pensar sobre a relação de poder exercido sobre o corpo da mulher negra no “reinado de Momo” divido este texto em três partes. Na primeira tratamos da mulher negra e sua qualidade de pessoa capaz de direitos e obrigações. Mais adiante, do direito da personalidade que consiste na disposição do próprio corpo. E, por fim, da morte “carnavalesca” do corpo feminino negro.

A mulher negra é um ser humano. Necessário enfatizar a sua humanidade desde a sua concepção, a formação de um novo ser e o compromisso da sociedade brasileira como um todo (Estado, família, escola, hospitais, mercado de trabalho e demais instituições) para com o pleno desenvolvimento de todas as potencialidades de toda mulher negra. Do ponto de vista jurídico, a igualdade formal da mulher negra em face dos demais indivíduos integrantes da comunidade brasileira está perfeitamente delineada na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional.

Por sua natureza humana e capacidade de ser titular de direitos e contrair obrigações na vida civil, a mulher negra deve ser individualizada, uma vez que tal identificação a distingue das demais pessoas e permite ao Estado e particulares o respeito ao seus direitos à convivência familiar e no âmbito social.

A identificação se dá, indiscutivelmente, pelo nome. Nome, elemento que designa a mulher negra e destaca em seu meio familiar e também em sua vida política. Vida política sim, uma vez que o ser humano vive em grupos por necessidades naturais de sobrevivência, trabalho e lucro.

O nome é um elemento da personalidade das pessoas, espécie de código para todas as ações desenvolvidas em nossa vida e no pós morte.

Quanto ao direito à integridade física e a disposição do próprio corpo da mulher negra, cabe observar que essa noção que o corpo feminino negro é bem supremo de titularidade da própria mulher negra é recente. O valor da vida da mulher negra exige a sua defesa contra a sua destruição material e simbólica.

A transmissão da palavra e da imagem da mulher negra fazem parte do rol dos direitos da personalidade. Direitos da personalidade declarados invioláveis segundo a nossa Constituição e os compromissos internacionais de Direitos Humanos assumidos pelo nosso Estado Democrático de Direito. À guisa de simplificação, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das mulheres negras não podem ser expostas ou reproduzidas sem o seu consentimento, sem a sua autorização, em especial quando a exposição é realizada de modo vexatório, ridículo ou ofensivo ao decoro da mulher negra. Há caracterização de dano moral, dano material e a emergência de direito de resposta proporcional ao abalo sofrido e indenização, uma vez que a parte ofensora obteve benefício financeiro indevido.

Sem adentrarmos nas origens históricas do Carnaval na Antiguidade e mesmo no território nacional, é fácil constatar que a exposição do corpo feminino negro nessa referida festividade migrou de um elemento cultural para mais um fator de obtenção de lucro.

A manutenção do senso comum sobre a “sensualidade” da mulher negra para a exploração de empreendimentos turísticos, comerciais e midiáticos é uma violação continuada de direitos humanos. Seus direitos de personalidade são desconsiderados em franca desobediência ao nosso ordenamento jurídico.

Em nosso pensar, o período dos desfiles de escola de samba transmitidos via satélite, da execução das “marchinhas carnavalescas” de discriminação e menoscabo do seu tom de pele e textura capilar e mercantilização de “seu corpo sem alma” (termo cunhado por bel hooks) temos a extinção, a dissolução ritualística da humanidade da mulher negra no Brasil.


Simone Henrique. Simone Henrique é Mestre em Direitos Humanos pela USP, pesquisadora do Gepebio (Grupo de Estudos e Pesquisas de Bioética e Biodireito da USP) e voluntária do Instituto Pro Bono de Direito e Responsabilidade Social. . .


Imagem Ilustrativa do Post: [dsf] // Foto de: Fernando Mafra // Sem alterações.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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