Na coluna de hoje - com licença das leitoras e dos leitores - não vou falar de direito, mas de crueldade. Sim, de crueldade. Crueldade, atrocidade, barbaridade, brutalidade, selvageria, que foi praticada contra uma mãe que acabou de “dar a luz” e contra seu recém-nascido. Ambos presos em uma cela de dois metros quadrados. Ela, sob a acusação de “tráfico” de maconha. O bebê de três dias pelo crime de nascer, por ser filho da miséria e da desgraça humana.
Jéssica Monteiro, 24, mãe também de uma criança de 3 anos, deu à luz no domingo de Carnaval, um dia depois de uma audiência de custódia converter em prisão preventiva a prisão em flagrante ocorrida na véspera. Ela foi flagrada pela Polícia Militar com 27 papelotes de maconha. De domingo (11) até esta quarta-feira (14), ela ficou em condições desumanas na carceragem do 8º Distrito Policial, no Brás, região central de São Paulo, com o seu recém-nascido, Henrico.
Jéssica Monteiro foi autuada no Bom Retiro em São Paulo na pensão onde vivia com o marido, Oziel Gomes da Silva, 48 anos. Segundo o boletim de ocorrência lavrado pela Polícia Civil, Oziel Gomes da Silva foi flagrado com quatro papelotes de maconha, no bolso, em um bar vizinho à pensão. Ao chegarem até Jéssica, acompanhados de Silva, conforme o B.O., os PMs notaram "atitude suspeita" da abordada e localizaram, com ela, 27 papelotes de maconha. No total, foram apreendidos com o casal 8,6 gramas de cocaína e 96,4 gramas de maconha.
No termo da audiência de custódia, o juiz em manifestação burlesca, assinalou que foram "cumpridas as formalidades legais e respeitadas as garantias constitucionais" para manutenção da prisão de Jéssica Monteiro e do seu marido Oziel Gomes da Silva.
"Há prova de materialidade delitiva e indícios suficientes de autoria, bem como da finalidade de traficância", escreveu o magistrado, que classificou o quadro como de "grande quantidade de entorpecentes e [os presos em flagrante] em situação de possível traficância".[1]
O Ministério Público Estadual informou, por nota, que se manifestou pela prisão preventiva de Jéssica "tendo em vista a presença dos requisitos legais necessários para tanto".
Com indiferença assustadora e com afronta a dignidade da pessoa humana, o Ministério Público afirmou que: "O flagrante estava formalmente em ordem e se faziam presentes os requisitos dos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal. No mais, não há vedação legal para a prisão de pessoa gestante e há regulamentação própria para convivência do infante com a mãe, sendo que sua execução deve ficar a cargo do Poder Executivo".
No que diz respeito à política de drogas e a seletividade do sistema penal, não é demais martelar que o que é considerado tráfico para alguns, no caso os mais vulneráveis e etiquetados pelo sistema penal, para outros é considerado porte de drogas. Não é sem razão que a grande maioria da população carcerária é composta por negros e pobres. O sistema penal é seletivo. Como bem já destacou a pesquisadora Jacqueline Sinhoretto, “há uma aplicação desigual das regras e procedimentos judiciais”. Assim, por exemplo, no momento em que o policial escolhe quem deve ou não revistar. Ou a maneira de tratar uma pessoa flagrada portando uma determinada quantidade de entorpecentes. "A quantia pode ser a mesma. Determinadas pessoas podem ser acusadas por porte e outras, por tráfico".
O poder seletivo do sistema penal, afirma Zaffaroni, “elege alguns candidatos à criminalização, desencadeia o processo de criminalização e submete-o à decisão da agência judicial, que pode autorizar o prosseguimento da ação criminalizante já em curso ou decidir pela suspensão da mesma.” A escolha, prossegue o jurista argentino, “é feita em função da pessoa (o ‘bom candidato’ é escolhido a partir de um estereótipo), mas à agência judicial só é permitido intervir racionalmente para limitar essa violência seletiva e física, segundo certo critério objetivo próprio e diverso do que rege a ação seletiva do restante exercício de poder do sistema penal, pois, do contrário, não se justifica a sua intervenção e nem sequer a sua existência (somente se ‘explicaria’ funcionalmente)”.[2]
Independente das questões jurídicas, das regras ou das normas que se queiram aplicar, ainda que seja em nome da “grande quantidade e diversidade de entorpecente encontrada supõe a evidenciar serem, os averiguados, portadores de personalidade dotada de acentuada periculosidade”, como afirmou o magistrado, não é possível que nenhum argumento de direito possa suplantar a dignidade da pessoa humana (mãe e filho) como postulado do próprio Estado democrático de direito.
Por tudo,
“Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas”
[1] Disponível em:< http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/02/14/recem-nascido-fica-3-dias-em-cela-de-delegacia-de-sp-com-a-mae-presa-por-trafico.htm
[2] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 245-246.
Imagem Ilustrativa do Post: prisão // Foto de: Tiago Santos // Sem alterações
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