A comunidade jurídica – pelo menos a comprometida com o Estado Democrático de Direito – ficou estarrecida com a sentença (Processo: 0229018-26.2013.8.19.0001) do juiz Flavio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da 27ª Vara Criminal, contra 23 manifestantes que participaram das manifestações e protestos na cidade do Rio, entre 2013 e 2014. As penas aplicadas pelo juiz variam entre cinco e sete anos de reclusão em regime fechado, por associação criminosa e corrupção de menores.
Sem esmiuçar todo o conteúdo da longa sentença condenatória - além das exacerbadas e desproporcionais penas - causa espécie e “salta os olhos” o trecho da sentença abaixo transcrito:
“No que diz respeito ao réu LUIZ CARLOS RENDEIRO JÚNIOR, vulgo "GAME OVER", há que se consignar que, pelo que consta da sua FAC, este é primário e não pode ser considerado com maus antecedentes. No tocante ao crime do art. 288, parágrafo único, do Código Penal, atento às circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, há que se fixar a pena-base no máximo legal, ou seja, em 3 (três) anos de reclusão, em decorrência da personalidade distorcida do réu, de sua conduta social reprovável, das circunstâncias do crime, das consequências do delito e dos motivos do crime, consoante se pode verificar a seguir. O réu tem uma personalidade distorcida, voltada ao desrespeito aos Poderes constituídos, o que, no tocante ao Executivo, pode ser constatado, por exemplo, pelo enfrentamento aos policiais militares nas passeatas (as imagens de TV dizem mais do que mil palavras, sendo certo que os materiais apreendidos na residência da ré Camila Jourdan - e também aqueles não apreendidos, mas mencionados pela Delegada de Polícia Marcela Ortiz em seu depoimento, quais sejam, pedaços de pau, máscaras e escudos - não deixam dúvida quanto à utilização dos mesmos contra os agentes da lei e da ordem nas passeatas) e ao "Ocupa Cabral" (é inacreditável o então Governador deste Estado e sua família terem ficado com o direito de ir e vir restringido). O desrespeito ao Poder Legislativo, por sua vez, pode ser verificado, por exemplo, pelo "Ocupa Câmara". Outrossim, o réu em comento tem uma conduta social reprovável, pois, apesar de se tratar de uma pessoa da classe média, o que pode ser constatado pela sua profissão e pelo seu local de residência (vide fl. 5.843), não trilha o caminho da ética e da honestidade, não se podendo perder de vista, ainda, que, em razão de se tratar de uma pessoa da classe média, o réu teve oportunidades sociais que a esmagadora maioria dos réus nas ações penais não teve, não podendo sua pena, por conseguinte, ser a mesma que aquela de uma pessoa em situação idêntica, mas com poucas oportunidades sociais. As circunstâncias do crime, por sua vez, também não favorecem o réu, haja vista que, no presente feito, a associação para a prática de crimes diversos, notadamente aqueles discriminados na denúncia (vide fls. 02-B/02-C), se deu com vinte pessoas a mais do que o número mínimo (três) necessário para configurar o crime do art. 288 do Código Penal. As consequências do delito também são desfavoráveis ao réu. Afinal, a simples associação armada ou com a participação de criança ou adolescente de três ou mais pessoas para o fim específico de cometer crimes, notadamente aqueles discriminados na denúncia, mais precisamente às fls. 02-B/02-C, já seria suficiente para configurar o tipo do art. 288, parágrafo único, do Código Penal. Ocorre que a referida associação acarretou a efetiva prática dos aludidos crimes (e ainda do delito que vitimou fatalmente o cinegrafista Santiago Ilídio de Andrade), o que, além de ser um fato público e notório em razão das imagens de TV exibidas na época dos fatos, está comprovado, dentre outros, pelos laudos de fls. 1.738/1.739, 1.742/1.743, 1.744/1.745 e 1.746. Os motivos do crime também não favorecem o réu, haja vista que os aludidos motivos foram implantar o caos social e levar terror à sociedade”. (Grifo nosso)
O trecho deslocado da sentença - especialmente os termos grifados, que foram utilizados em relação a condenação de outros manifestantes – revelam que o magistrado prolator da sentença utilizou na dosimetria da pena, notadamente em relação a culpabilidade, concepções ultrapassas e que remetem ao direito penal nazista que teve em Edmundo Mezger[1] seu principal expoente.
Mezger, que serviu ao regime nazista,[2] e um dos principais defensores da chamada concepção normativa da culpabilidade, logo percebeu os problemas causados pela adoção do dolo normativo no que diz respeito à punibilidade, tanto do criminoso habitual, como do criminoso por tendência. Esses dois tipos criminológicos, em virtude do meio social em que vivem, geralmente não atingem a consciência da ilicitude (capacidade de distinguir o certo do errado, o lícito do ilícito), porque foram criados num ambiente social agressivo em que determinadas condutas ilícitas são naturais, fruto, muitas vezes, de uma educação deturpada. Portanto, se esses criminosos não tinham a consciência da ilicitude, pelas razões demonstradas, logo, dentro de uma concepção normativa, agiram sem dolo (dolo normativo). Assim, inexistindo dolo, não há culpabilidade e, sem esta, não há possibilidade de se apenar o criminoso habitual ou por tendência.
Contudo, Mezger procurou resolver o impasse construindo um adendo à culpabilidade normativa, por ele denominada “culpabilidade pela condução de vida”.[3]
Fácil é ver, segundo Assis Toledo, “que a culpabilidade pela condução de vida não explica a culpa jurídico-penal, mas apenas se amolda a certos tipos criminológicos de autor, além de procurar justificar a condenação de determinados agentes sem a exigência da consciência atual da ilicitude.” [4]
Zaffaroni e Pierangeli não economizam críticas à teoria da “culpabilidade pela condução de vida”. Segundo os autores, “é o mais claro expediente para burlar a vigência absoluta do princípio da reserva e estender a culpabilidade em função de uma actio inmoral in causa, por meio da qual se pode chegar a reprovar os atos mais íntimos do indivíduo. Poucos conceitos podem ser mais destrutivos para uma sã concepção do direito penal.”[5]
Note-se, ainda, que ao fundamentar a exacerbação da pena: na “personalidade distorcida”, na “conduta social reprovável”, afirmando que acusado “não trilha o caminho da ética e da honestidade”, o juiz, além de se referir a “culpabilidade pela conduta de vida”, ressuscita o abominável “direito penal do autor”.
Para tanto é indispensável fazer uma distinção, clara e precisa, entre derecho penal del hecho (direito penal do fato) e derecho penal de autor (direito penal de autor). Segundo ROXIN,
Por Derecho penal del hecho se entiende una regulación legal, en virtud de la cual la punibilidad se vincula a uma acción concreta descrita tipicamente y la sanción representa solo la respuesta al hecho individual, y no a toda la conducción de la vida del autor o a los peligros que en el futuro se esperan del mismo. Frente a esto , se tratará de un Derecho penal de autor cuando la pena se vincule a la personalidad del autor y sea su asocialidad y el grado de la misma lo que decida sobre la sanción. [6]
Punir uma pessoa pelo que ela é (quia peccatum) e não pelo que fez (quia prohibitum) é, segundo Salo De Carvalho, abandonar “as amarras impostas pelos princípios da secularização e da legalidade (mala prohibita) no que tange ao aumento da pena, substituindo-os por valorações potestativas de cunho subjetivo na reconstrução da personalidade de autor rotulado como intrinsecamente mau (mala in se).” [7]
Em obra recém lançada e festejada pelo mundo jurídico, Juarez Tavares[8] é definitiva ao dizer que:
“A determinação da culpabilidade, a partir de uma teoria crítica, se funda na verificação acerca das condições que podem excluir o fato do âmbito penal. Diversamente do que sustenta a teoria tradicional, aqui não se trata de buscar os elementos fundantes de um juízo de reprovação sobre o agente. Relevante é assentar, desde logo, que a culpabilidade constitui uma qualidade de ação e não um atributo do sujeito”.[9]
Mais adiante, Tavares observa que:
“vincular a culpabilidade aos fins da pena, segundo as finalidades da prevenção geral e especial, só soluciona o conflito em favor da política criminal do Estado. Na realidade, então, o conflito não é solucionado, é apenas simbolizado como tal. A simbolização da solução do conflito, apesar de todos os argumentos usados para sua legitimação, conduz a destruição do conceito de pessoa deliberativa e sua substituição pelo conceito de hoo sacer, do ser biológico desprovido de cidadania. Com isso, o que se obtém é a exacerbação do conflito”.[10]
Por tudo, principalmente, em razão do princípio da culpabilidade que decorre do respeito à dignidade da pessoa humana como postulado do Estado Democrático de Direito é inconcebível que alguém seja punido em razão do “ser” - pelo que “é” - e não por aquilo que fez ou deixou de fazer. A “culpabilidade pela condução de vida”, o “direito penal do autor” e a “responsabilidade objetiva” não se coadunam com um direito penal que se pretende democrático e, muito menos, com o Estado de direito.
Notas e Referências
[1] MEZGER, Edmundo. Tratado de derecho penal. Trad. Jose Arturo Rodrigues Muñoz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955, v. 1 e 2.
[2] Ver “La otra cara de Edmund Mezger: Conferencia del Dr. Francisco Muñoz Conde”. “Muñoz Conde se explayó sobre los aportes criminológicos de Mezger. Señaló que en el período nazi, el penalista alemán se volcó de lleno a la Criminología, pese a que sus anteriores obras estuvieron dedicadas a cuestiones dogmáticas del derecho penal. Fue en esos años en los que desarrolló un saber criminológico destinado a fundar la legislación de la esterilización y el exterminio de los "extraños a la comunidad". Este saber, encuadrado en el más radical positivismo peligrosista, justificaba el uso de medidas de seguridad de duración indeterminada, la reclusión en campos de concentración, la eliminación y esterilización de los "indeseables"... En consecuencia, su labor científica tuvo como finalidad preponderante fundamentar la política genocida de "solución final" del nazismo”.
Muñoz Conde “destacó que Mezger, una vez finalizado el régimen Nacionalsocialista y tras ser acusado por el Tribunal de Nuremberg, continuó dedicándose a la actividad científica y académica, llegando incluso a integrar la comisión de reforma de la legislación penal en Alemania. Sin embargo, abandonó su dedicación a la criminología positivista para dedicarse de lleno a la dogmática penal, siendo muy famosa su polémica con el jurista Hans Welzel acerca del concepto de acción en la teoría del delito”. (Derecho Al Dia. Año II – Edición Nº 26 – 24 de abril de 2003). E também, Edmund Mezger e o Direito Penal de Seu Tempo: estudos sobre o direito penal no nacional-socialismo.
[3] Segundo Aníbal Bruno “na Alemanha, um fundamento claro para esta concepção foi trazido pela nova disposição do § 20-a do Código, sobre a agravação da pena para os criminosos habituais. Não se encontra, porém, nos autores, conceito uniforme dessa espécie de culpabilidade. A fórmula de Mezger põe o acento demasiadamente sobre as condições da personalidade do sujeito. O que ele chama Lebensführungsschuld é o que Welzel denomina culpabilidade de caráter, como faz sentir este próprio autor. Mezger, entretanto, observa que a expressão culpabilidade pela conduta da vida significa apenas que, provada a existência, na conduta da vida anterior do sujeito, de uma culpabilidade no mesmo sentido do fato, esta deve pesar na balança ao lado da culpabilidade pelo próprio fato” (BRUNO, Aníbal. Direito penal; parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1984, v. 1, t. 2 p. 35, nota).
[4] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 228.
[5] Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro; parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 612.
[6] ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general, tomo I. Traducción y notas: Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Díaz y Garcia Conlledo y Javier de Vicente Remesal Madrid (Espana): Civita, 1997, p. 176-177.
[7] CARVALHO, Salo. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001, p. 154. Referindo-se ao direito penal de autor, Zaffaroni e Nilo Batista, afirmam que “este direito penal supõe que o delito seja sintoma de um estado do autor, sempre inferior ao das demais pessoas consideradas normais. Tal inferioridade é para uns de natureza moral e, por conseguinte, trata-se de uma versão secularizada de um estado de pecado jurídico; para outros, de natureza mecânica e, portanto, trata-se de um estado perigoso. Os primeiros assumem, expressa ou tacitamente, a função de divindade pessoal e, os segundos, a de divindade impessoal e mecânica”. Mais adiante, os citados autores, concluem que “em ambas as propostas, o criminalizado é um ser inferior e, por isso, se vê apenado (inferioridade moral: estado de pecado; inferioridade mecânica: estado perigoso), porém não é sua pessoa a única que não se reconhece: o discurso do direito penal de autor propõe aos operadores jurídicos a negação de sua própria condição de pessoas...” (ZAFFARONI. E. Raúl, BATISTA. Nilo, ALAGIA. Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: primeiro volume - Teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 131-133).
[8] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 1ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.
[9] Op. cit. p. 438.
[10] Op.cit. p. 441.
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