Que país é esse?  

09/09/2018

 Coluna Direito e Rock / Coordenador Germano Schwartz

Foi ao som da música que dá título ao presente artigo, composta pelos integrantes do Legião Urbana nos longínquos anos 80, que acordei na manhã cinza de Porto Alegre. Essa infeliz coincidência se deu poucas horas depois da notícia do incêndio do Museu Nacional, na capital fluminense. Essa tragédia – anunciada – consumiu milhares de obras que compunham o maior acervo da América Latina.

Ao longo dessa semana, os usuários das redes sociais se manifestaram, com mensagens de ódio aos governantes, luto pelo ocorrido e também cobraram um atitude mesmo que tardia das autoridades competentes (?). A questão que incomoda, além da inequívoca perda cultural, é talvez não termos mais a história e o nosso passado “à disposição”. Uso tal expressão, pois provavelmente a maioria das pessoas que compartilharam sua revolta nas mídias sociais nunca tenha visitado o museu consumido pelas chamas em suas viagens à cidade maravilhosa. Talvez igualmente não tenham o hábito de prestigiar as exposições que se sucedem nos museus da cidade onde moram, relegando tais passeios a atividades escolares ou apenas como uma programação para turistas. Mas o que inquieta também é perceber que a cada chama, uma parte do passado e das referências históricas se perde. Não ter mais essa possibilidade amedronta, pois aqueles que não conhecem a história correm o risco de repetir os mesmos erros.

Se fizermos um paralelo com o direito ao esquecimento, o qual pode ser definido: “como a possibilidade de alijar-se do conhecimento de terceiros uma específica informação que, muito embora seja verdadeira e que, preteritamente, fosse considerada relevante, não mais ostenta interesse público em razão de anacronismo.” (Maldonado, 2017, p. 96-97) e que muitas vezes acaba por ser interpretado como se estivesse buscando “reescrever” fatos do passado, através da indisponibilização de dados, informações e outras referências cabíveis de fatos verídicos. Aqueles que buscam tal tutela alicerçam seu pleito através dos direitos de personalidade, em consonância com a proteção à vida privada, intimidade e privacidade. Demonstrando ainda que não haveria relevância no presente para manter-se aquelas referências pretéritas.

A crítica (rasa) que muitos fazem a essa busca se dá no sentido de que deve-se “arcar” por aquilo que fez no passado. Por outro lado, há a lúcida e profunda análise do tema através do conflito de princípios constitucionais, quais sejam: liberdade de informação e os direitos de personalidade. Diversos autores se debruçam diante desse tema, buscando delimitar – especialmente diante de casos concretos – quais seriam as circunstâncias em que o direito ao esquecimento poderia ser concedido ao individuo, sem caracterizar uma censura.

A memória, por sua vez, acessando lembranças (in)oportunas gera efeitos antagônicos entre as partes envolvidas, pois muitas vezes  não se desejam ser lembrado. Todavia, para a imprensa – ou mesmo a mídia digital – não permite o ostracismo que por vezes se pretende. O elo entre o passado e o presente, trazido a cada memória é justamente o que François Ost apresenta ao longo de sua obra. Para ele é através da memória a primeira referência do tempo jurídico, pois cabe ao direito (e aos juristas) instituir uma memória da coletividade. Todavia, essa memória não é absoluta, pois há uma abundância de informações e uma queda da memória coletiva em contraposição a memória individual. O autor prossegue a análise, fazendo a distinção da memória através de quatro paradoxos, quais sejam: memória social, que difere da memória individual; a memória do presente; a memória ativa (voluntária), e o esquecimento, que vem a ser um pressuposto da própria memória ( 2005, p. 137/138).

Assim, aceitar o esquecimento como parte relevante da memória pode auxiliar a compreender as oportunidades em que a possibilidade de ser “deixado em paz (ou só)” deve ser contemplada. Para Paul Ricoeur igualmente a memória e o esquecimento possuem caráter relevante, pois ela é responsável também pela construção da história e das pessoas que a compõe (2007, p. 41).

 

Quando um museu queima, tudo arde nas chamas: o passado, a história, a memória. Percebe-se nas labaredas todas as referências culturais serem saqueadas de cada pessoa, mesmo daquelas que sequer sabiam da existência daquele local e do seu valioso acervo. Diferente do que sugeriu o Capital Inicial, não “vamos saquear Brasília”. Mais uma vez foi ela que nos saqueou.

 

Notas e Referências

MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. São Paulo: Novo Século Editora, 2017.

OST, François. O tempo do direito; tradução: Élcio Fernandes. Bauru. São Paulo: Edusc, 2005.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Mesa Boogie // Foto de: Elías Gómez // Sem alterações

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