Que horas ela (a democracia) volta? Administração Pública de Austeridade e Estado de Exceção – Por Leonel Pires Ohlweiler

09/06/2016

Nos últimos dias participei do IV Encontro Internacional do CONPEDI, Direito e Sociedade: diálogos entre países centrais e periféricos, realizado em Oñati – Gipuzkoa – Espanha, cuja viagem de 10 horas para Lisboa-Portugal, nos “confortáveis” assentos da classe econômica, proporcionou-me assistir filmes não vistos aqui no Brasil, por absoluta imersão na cotidianidade do trabalho. O título deste artigo homenageia o filme brasileiro Que Horas ela Volta?, dirigido por Anna Muylaert, escolhido em 2015 pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil na Cerimônia do Oscar, categoria filme estrangeiro, mas cuja indicação não foi obtida. Ainda que com alguns clichês, a película problematiza questões interessantes sobre os conflitos da empregada doméstica, pernambucana, Val (Regina Casé) e os patrões Bárbara e José Carlos, e a filha Jéssica. Mas o sentido do filme ultrapassa essa questão, proporcionando críticas sobre as relações econômicas e sociais do próprio Brasil, além do sentimento de hipocrisia rondando as ações individuais e coletivas. A empregada Val caracteriza, de certo modo, cada um dos cidadãos excluídos, cujos processos agravaram-se nos últimos meses pela crise econômica e obrigam-se à submissão dos modelos construídos para manter o status quo de determinadas classes sociais. Durante boa parte do filme, em virtude das necessidades mais básicas, vive no coração de uma família de classe média alta, mas sempre transitando pelas bordas da superficialidade, especialmente com os patrões. Val circula entre o tratamento simpático, utilizando a linguagem “você faz parte da família”, para o cubículo onde descansa o corpo depois da estafante jornada de cuidar de todos, por vezes assumindo o papel de mãe, em relação ao filho do casal, suprindo ausências maternas. O comportamento do andar de cima é representado por Bárbara, pois adota a postura típica do verniz que mantém boa aparência, mas no fundo é marcada por saltos de desprezo. O ponto alto inicia com os constantes questionamentos da filha Jéssica, cuja frase “não me julgo superior, só também não sou inferior” invade como uma bomba o cotidiano de Val, agarrando-se ao fio de sustentação da relação com os patrões por motivos econômicos óbvios.

O filme Que Horas ela Volta? é significativo e relaciona-se de modo direto com o atual momento pelo qual nossa política passa, pois se evidencia no ar a Síndrome de Bárbara rondando o Governo Federal!

Veiculou-se no jornal Folha de São Paulo artigo de opinião de membros do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, cujo título é emblemático: Moradia, a primeira vítima de Temer, denunciando o início da temporada de caça aos direitos sociais. Ainda que negado pela Administração Pública tal postura de desconstrução do conjunto de programas e garantias sociais, tem-se a impressão de as relações mantidas com cidadãos beneficiados por tais programas alimentarem-se pela Síndrome de Bárbara. Nos contatos mais diretos mantém-se certa aparência, mas, como no filme, parece que até o perfume utilizado causa repugnância no andar de cima oficial.

O fato é que no dia 17 de maio de 2016 foi publicada no Diário Oficial da União, Ministério das Cidades, Gabinete do Ministro, a Portaria nº 186/2016, revogando as Portarias 173 e 180 que divulgaram propostas apresentadas no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida – Entidades, operado com recursos do Fundo de Desenvolvimento Social.

A justificativa apresentada para a edição do ato administrativo: “considerando a necessidade de readequação dos recursos orçamentários da União.”

O momento atual é de crise econômica, ninguém duvida, mas o fundamental é questionar o discurso veiculado de única alternativa possível para superá-la: o corte de gastos sociais. Inclusive, impressiona como a Administração Pública Federal foi audaz e veloz, sequer proporcionando o benefício da dúvida e submetendo a questão ao amplo debate público.

No IV Encontro Internacional do CONPEDI foi marcante a presença do Professor António Casimiro Ferreira, ao proferir a palestra sobre a Sociedade de Austeridade, questionando as posturas administrativas orientadas pela hipótese de que à concepção sobre despesas do Estado, privatização do setor público e diminuição de salários corresponde uma “lógica sociológica de naturalização das desigualdades”. Refere o autor de forma expressa:

“Argumento que o processo de ‘austerização’ da sociedade em geral, e da esfera laboral em particular, envolve uma dinâmica política nacional que resulta da atuação de um governo ocupado em difundir a mensagem de que ‘não há alternativa’. Neste sentido, transmite a ideia de que a culpa pela situação em que estamos mergulhados passa por todos os indivíduos, fazendo-os ‘pagar’ e acreditar que foram as suas ações e o seu modo de vida imprudente que contribuíram para a situação atual (cf. Baumann, 2002:87).” (FERREIRA, 2011, p. 122).

A discussão é relevante para a Administração Pública brasileira, pois de fato, e a Portaria 186/2016 é pequeno exemplo disso, desconsiderando a questão democrática duramente explicitada ao longo de todo o texto da Constituição Federal, introduz a política do medo, da incerteza e insegurança, vendendo a necessidade de instalar no Brasil uma espécie de “Estado de Emergência Social”, como alude Antonio Casimiro Ferreira, cujos direitos sociais e respectivos programas recebem o primeiro chamado da fila. O citado sociólogo português coloca a gravidade de todo o processo alimentar-se pela lógica do poder dos não-eleitos, referindo-se aos atores não governamentais contribuindo para instaurar o modelo de austeridade, como mercados, organizações financeiras internacionais, agências de regulação, etc.

Palas bandas de cá a situação é mais aflitiva ainda, a atual “política de austeridade” resulta não apenas deste quadro da influência da lógica institucionalizada por atores não-governamentais, mas no próprio plano governamental, por mais paradoxal que seja, também há o exercício do poder dos não-eleitos, considerando o caráter de interinidade do atual gestor público.

Ora, se há um prazo previamente estabelecido de exercício do poder – duração do afastamento da atual Presidente da República por motivo do processo de impeachment – como admitir-se de modo legítimo a atuação administrativa definitiva solapando programas sociais?

Mais uma vez colaciono o entendimento de Casimiro quando refere interligado com a política de austeridade um verdadeiro Direito de Exceção, surgindo como incontornável e disposto a remover, inclusive, obstáculos constitucionais para melhor instalar posturas de austeridade no que tange aos direitos sociais, institucionalizando de modo ilegítimo cada vez mais exceções e desconstruindo a proteção social do cidadão. Como refere o autor:

“O direito daqui emergente segue padrões do atual capitalismo financeiro como um modelo forçoso de organização das relações, não apenas económicas, mas humanas em geral. O direito de exceção surge agora como incontornável, não podendo contra ele valer a soberania popular ou o princípio da produção democrática do direito.” (FERREIRA, 2011, p. 130).

A Administração Pública brasileira, portanto, não pode divorciar-se, para dizer o mínimo, do artigo 1º da Constituição Federal, segundo o qual se constitui em Estado Democrático de Direito, mostrando-se incompatível editar atos administrativos e legislativos, sob a roupagem de Governo Provisório, mas solapando conquistas históricas, construídas democraticamente, aproveitando-se do enfraquecimento dos vínculos sociais, fruto do discurso monocórdico do medo como a nova fórmula de organizar a vida social (FERREIRA, 2011, p. 132).

O senso comum hodierno no âmbito administrativo olvida a importância para a construção civilizatória da proteção social, como aduz Robert Castel:

“A proteção social é, portanto, a condição de possibilidade para formar o que chamei, na esteira de Léon Bourgeois, uma sociedade de semelhantes: um tipo de formação social no meio da qual ninguém é excluído, porque cada um dispõe dos recursos e dos direitos necessários para manter relações de interdependência (e não somente de dependência) com todos. É uma possível definição da cidadania social. É também uma formulação sociológica do que em termos políticos se chama uma democracia.” (CASTEL, 2005, p. 92-93.)

Caso não ocorram mudanças profundas no atual estágio de provisoriedade governamental, a proteção social segue o estilo do filme inicialmente retratado, o Estilo Val, marcado pela cosmética social do discurso, ou seja, protege-se naquilo que de fato não faz diferença para o andar de cima, não produz maiores ruídos, e menospreza-se – por meio do Estado de Exceção e Políticas de Austeridade – aquilo que realmente importa.

Dai a pergunta que não quer calar: Que horas ela (a democracia) volta?


Notas e Referências: 

FERREIRA, António Casimiro. A Sociedade de Austeridade: Poder, medo e direito do trabalho de exceção, in Revista Crítica de Ciências Sociais, 95(2011), Dezembro, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, p. 119-136.

CASTEL, Robert. A Insegurança Social. O que é ser protegido? Petrópolis: Vozes, 2005.


 

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