QUE 2018 NÃO REPITA 2012! A “OCUPAÇÃO POVO SEM MEDO” NA LUTA PELO DIREITO À MORADIA

25/12/2017

Nas portas de 2018, cabe lembrar os 6 anos do massacre de Pinheirinho. Em 22 de janeiro de 2012, a Polícia Militar do Estado de São Paulo removeu violentamente os moradores da Ocupação Pinheirinho, organizada pelo Movimento Urbano dos Sem-Teto (MUST), em São José dos Campos (SP): cerca de 1.500 famílias, 9 mil pessoas, foram retiradas à força, por 1,8 mil policiais de um terreno de 1,3 milhão de metros quadrados[1].

A ocupação teve início em 2004 e reunia famílias despejadas de suas casas que, sem escolha e sem assistência do Estado, ocuparam uma área até então abandonada adquirida por grilagem pela empresa Selecta S/A,. Esta, de propriedade do empresário libanês Naji Nahas, envolvido na operação Satiagraha da Polícia Federal.

A ação policial de desocupação em Pinheirinho teve aval do Executivo e do Judiciário, do então prefeito de São José dos Campos, Eduardo Cury, do governador Geraldo Alckmin, e  do presidente TJ-SP, Ivan Sartori. Contrariando decisão anterior da Justiça Federal, o TJ-SP ordenou a execução decisão judicial de reintegração de posse em favor da massa falida do grupo Selecta S/A.

O governo estadual mobilizou cerca de 1,8 mil policiais militares, que promoveram um verdadeiro massacre, repleto de violações de direitos humanos: abuso sexual, roubo, destruição de bens, uso abusivo de violência e até morte (Ivo Teles dos Santos, por traumatismo craniano decorrente de espancamento). O Ministério Público Federal apontou omissão e resistência das autoridades joseenses, que dificultaram uma solução pacífica.

Os ocupantes acabaram alojados no conjunto habitacional Pinheirinho dos Palmares, em uma área periférica, afastada do centro da cidade e da região da ocupação. Muitas famílias ainda aguardam o deslinde de processos judiciais nos quais pleiteiam o recebimento de indenizações por danos morais e materiais sofridos na ocasião do despejo.

Em 2017 nasceu outra grande ocupação urbana: a Ocupação Povo Sem Medo. Na madrugada do dia 01 para o dia 02 de setembro de 2017, por volta de meia noite, cerca de 6 ônibus e um caminhão estacionaram diante da fábrica da montadora Scania, na Rua José Odorizzi, em São Bernardo do Campo, região metropolitana da cidade de São Paulo (ABC paulista), um dos mais importantes polos industriais do Brasil.

 Nos ônibus, cerca de 500 famílias sabiam exatamente o porquê de estarem ali e  recebiam as últimas instruções da militância do MTST sobre a ação que viria a ocupar o terreno de 70 mil m² - sem função social há 40 anos e com uma dívida de IPTU de R$500.000,00 -, de propriedade da Construtora MZM; no caminhão, estacas de madeira e lonas suficientes para construção inicial de 500 barracos.

          Na retaguarda, após a indicação dos militantes do MTST responsáveis pela “tarefa” de “autodefesa”, os ocupantes saíram dos ônibus e rumaram à porteira do terreno pela Rua João Augusto de Souza, gritando repetidamente a palavra “sem-teto” e acordando a vizinhança. “Quando o portão foi estourado foi aquele formigueiro”. “O Formigueiro”, inclusive, é o nome do jornal da ocupação e um dos gritos de guerra entoado pelos acampados.

            Uma hora depois, a dianteira do terreno já estava repleta de barracos e a cozinha central - local de preparação das refeições de todos os acampados que ali já estavam e dos que ainda iriam chegar - restava devidamente construída. Nascia a Ocupação Povo Sem Medo, “território da resistência” apelidado de “formigueiro” pelos seus participantes, que hoje conta com 12.123 famílias participantes e 33.883 cidadãs e cidadãos[2].

           O terreno situado no final de uma rua em formato de “U”: a Rua João Augusto de Souza, que desemboca na Avenida José Odorizzi, e tem como vizinha de fundos a Avenida Dom Jaime de Barros Câmara. Apesar de abrigar a fábrica da montadora Scania e a Tome Equipamentos e Transportes, o bairro é considerado residencial de classe média e classe média alta, integrando a área nobre da cidade de São Bernardo do Campo.

            Em geral, os ocupantes são pessoas despejadas de suas casas, que não têm onde morar, que viviam ou vivem em pequenos cômodos alugados, ou de favor na casa de parentes, ou pagam alugueis e não têm mais condições de mantê-los.[3]

            A proprietária do terreno propôs ação judicial de reintegração de posse, suspensa até o dia 11 de dezembro de 2017, quando foi realizada, pelo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (GAORP) do TJ-SP, uma reunião entre os ocupantes, os líderes do MTST e seus advogados, o governo estadual, a prefeitura municipal e a construtora MZM. Na reunião, embora a prefeitura e a construtora tenham defendido o despejo imediato das famílias, restou acordado um prazo de 120 dias para os ocupantes permanecerem no terreno. Enquanto isso, deverá será realizado o cadastro das famílias pelo governo do Estado e a continuação das negociações para solução da questão.

            A Ocupação Pinheirinho, liderada pelo Movimento Urbano dos Sem-Teto (MUST), e a Ocupação Povo Sem Medo, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST)[4], possuem muitos elementos em comum: desenvolveram-se em grandes terrenos desocupados, que não cumpriam função social e localizados em áreas nobres de cidades importantes do Estado de São Paulo; os prefeitos de ambas as cidades e o governador são filiados ao mesmo partido (PSDB); denunciam a precariedade do acesso à moradia e a omissão do Estado em solucionar a questão habitacional no Brasil; e, demonstram que Direito e Estado pendem, para o lado do capital, especificamente o patrimônio dos construtores, incorporadores e proprietários da terra.

 Os municípios de São José dos Campos e São Bernardo do Campo, com os prefeitos Eduardo Cury e Orlando Morando, lançaram mão do aparato policial do governador Alckmin, e de um discurso falacioso de que ilegalidade das ocupações: estas violariam a propriedade privada, garantida constitucionalmente (5º, XII), que deslegitimaria as ocupações e ensejaria a remoção forçada dos acampados. No entanto, não consideram que a Constituição Federal também garante o direito de acesso à moradia (art. 6º), que deve ser promovido através de políticas habitacionais pela União, Estados e Municípios (art. 23, caput, X e XI). Ademais, o direito de propriedade não é absoluto, sendo garantido na medida da sua função social.

Nos casos das ocupações Pinheirinho, Povo Sem Medo e tantas outras pelo Brasil, a Constituição é invocada somente para garantir os interesses dos proprietários de terras sem função social. Quando o povo (pobre, sem-teto e desamparado pelo Estado) tenta, por meio da cidadania ativa, garantir seus direitos que o Estado devedor não provê, as disposições constitucionais são ignoradas pelas instituições estatais.

            Assim, esperamos que o período festivo de Natal, Ano-Novo e dos meses seguintes não seja aproveitado para que mais elementos em comum surjam entre a ocupação Pinheirinho e a Povo Sem Medo: a violência institucional; e que o ano de 2018 represente, para os acampados[5] da Ocupação Povo Sem Medo, a concretização do direito de acesso à moradia de maneira efetiva e pacífica, como deve ser.

 

REFERÊNCIAS

BOULOS, Guilherme. Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto. 3. Ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2014.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 18. dez. 2017.

CARTA CAPITAL. Clima de guerra na ocupação Pinheirinho. Carta Capital On Line. 22/01/2012. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/pm-e-moradores-se-enfrentam-durante-reintegracao> Acesso em: 18 dez. 2017.

FERNANDES, Sarah. Organização e resistência: os dois meses da ocupação Povo Sem Medo. Portal Brasil de Fato. 01/11/2017. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2017/11/01/organizacao-e-resistencia-os-2-meses-da-ocupacao-povo-sem-medo/> Acesso em: 18 dez. 2017.

MAIEROVITCH, Walter. No Pinheirinho, o Brasil das trevas. Carta Capital. 28/01/2012. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-pinheirinho-o-brasil-das-trevas>. Acesso em: 18 dez. 2017.

SENADO FEDERAL. Entenda o caso Pinheirinho. Portal de notícias do Senado Federal. 23/02/2012. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2012/02/23/entenda-o-caso-pinheirinho>. Acesso em: 18 dez. 2017.

 

[1] MAIEROVITCH, Walter. No Pinheirinho, o Brasil das trevas. Carta Capital. 28/01/2012. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-pinheirinho-o-brasil-das-trevas

[2] Tal descrição é baseada em relatos obtidos pessoalmente entre 30 de setembro de 2017 e 05 de novembro de 2017 na Ocupação Povo Sem Medo e na vizinhança.

[3] Alguns ocupantes continuam pagando aluguel de casas ou cômodos para que os filhos não precisem ficar na ocupação, mas nela se mantêm porque sabem que, em breve, não terão mais condições de arcar com os alugueis.

[4] http://www.mtst.org/quem-somos/as-linhas-politicas-do-mtst/

[5] O termo “acampados” é usado pelos próprios ocupantes para se definirem.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lula visita a Ocupação Povo Sem Medo, em São Bernardo do Campo (SP). // Foto de: Instituto Lula // Sem alterações

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