QUATRO ANOS SEM MARIELLE FRANCO E A DENÚNCIA CONTRA UM ESTADO ESTRUTURALMENTE RACISTA

08/03/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

No próximo dia 14 de março completará quatro anos do brutal assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Marielle se tornou um grande símbolo de resistência e de luta pela garantia de direitos humanos fundamentais, sobretudo contra as diversas violações de direitos e violências que exterminam milhares de jovens negros e pobres nas periferias do país todos os dias. Porém, mesmo passados quatro anos desse homicídio brutal, as denúncias que eram constantemente feitas por Marielle fazem ainda mais sentido atualmente.

É importante ressaltar que o grave assassinato da vereadora parecia já anunciar o que viria logo em seguida para toda a população brasileira. Durante os últimos quatro anos, o discurso criminal contra a população pobre cresceu e a agenda de retirada de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras avançou de maneira significativa, representando um retrocesso social sem precedentes na história recente do país. A consolidação da reforma trabalhista, a aprovação da reforma da previdência, o desmonte das políticas de cultura, o corte de verbas no ensino público e cerceamento da liberdade política das universidades, o descontrole da inflação e desvalorização do salário mínimo, o fomento à indústria bélica e à posse de armas por civis e o negacionismo científico no combate à pandemia da covid-19 são alguns desses grandes retrocessos que atingiram em cheio a classe trabalhadora.

O resultado disso tudo é o aumento da criminalização de jovens pobres e pretos das periferias, a crescente de pessoas em situação de desemprego, vivendo nas ruas e com o acesso cada vez mais restrito a itens básicos para sobrevivência. Dessa maneira é que segue o projeto político de extermínio contra a população, que foi denunciado por Marielle até o dia de sua morte.

É preciso salientar que a formação social brasileira é eminentemente racista e se estrutura a partir da violência racial e de classe. Desde a invasão no século XVI e o posterior processo de colonização, a violência contra a população preta e indígena estruturou a formação do Brasil até chegar na condição de capitalismo dependente que temos hoje. Foram quase quatrocentos anos de escravismo colonial, logo, como alerta Clóvis Moura (1983), é fundamental ligar a situação das pessoas negras atualmente a todo esse processo histórico escravista que ainda representa a maior parte da nossa formação. Sendo assim, é o racismo que estrutura nossa sociedade, servindo de sustentação para manutenção de modelos econômicos, sociais e políticos até hoje.

Dessa forma, o Brasil manifesta o seu racismo econômico de forma objetiva ao estabelecer privilégios para grupos sociais dominantes A política tributária, por exemplo, segue à risca essa lógica. O fato da carga tributária se dar, em sua maioria, a partir do consumo faz com que pessoas com menor renda e grupos mais vulneráveis paguem proporcionalmente um maior valor do que aquelas pessoas com renda elevada (ALMEIDA, 2018). Além disso, desde 2016 o Brasil vive um aprofundamento do desmonte em suas políticas sociais e, sobretudo a partir de 2018, um arrocho econômico que atinge em cheio a classe trabalhadora. Esse arrocho nas políticas econômicas, que consiste basicamente em cortar investimentos públicos direcionados para parcela mais pauperizada da sociedade, vem trazendo profundos agravamentos nos índices sociais.

Os primeiros reflexos dos desmontes sociais e econômicos já são facilmente visíveis nas ruas das grandes cidades do país. De acordo com os dados do PNAD Covid-19 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), a taxa de desemprego no Brasil já atinge 14,4% da população, onde os jovens são a maioria dessas pessoas (IBGE, 2021). Ademais, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em março de 2021, 14,2 milhões de pessoas estavam vivendo em situação de extrema pobreza, onde cerca de 1,2 milhão delas passaram a estar nessa situação entre os anos de 2019 e 2021¹. A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) ainda coloca que o número de pessoas que convivem diariamente com a fome chega a 19 milhões e completa que, a partir de pesquisa realizada no final de 2020, em cerca de 55,2% dos domicílios brasileiros os habitantes convivem com a insegurança alimenta, um aumento de 54% desde 2018².

Enquanto há alguns anos o Brasil conseguia sair do mapa da fome e se vangloriava das suas políticas nessa área, atualmente o país se depara com um retrocesso inédito, onde o atual governo federal conduz uma política desenfreada de combate às inciativas que visam atuar contra a fome no país³. E para completar, ao passo desse desmonte social, o salário mínimo segue em franca desvalorização diante do custo necessário para que se possa ter acesso a itens básicos de sobrevivência. Já agora em janeiro de 2022 foi registrado o aumento no valor da cesta básica em 16 das 17 capitais onde o DIEESE realiza a pesquisa mensal sobre o valor do conjunto de alimentos básicos⁴. E ainda segundo o mesmo órgão, o valor do salário mínimo necessário em janeiro de 2022 era avaliado em R$ 5.997,14, enquanto o salário mínimo nominal é de apenas R$ 1.212,00⁵.

É preciso comentar que as vítimas dessas políticas de restrição econômica a partir dos arrochos salariais são especialmente as pessoas pobres, homens e mulheres que vivem nas periferias do país e trabalham basicamente para sobreviver, sendo que isso se tornou um desafio cada vez mais difícil para classe trabalhadora. Esses dados trazidos aqui só ajudam a evidenciar como se dá a divisão social do trabalho no país e que essa lógica que faz com que pessoas pretas e pobres tenham menores salários e piores condições de trabalho tem tudo a ver com as relações firmadas ainda no período da escravidão. Porém, nesse cenário, o racismo se coloca como elemento funcional às classes dominantes, justamente porque faz com que a pobreza e todas essas desigualdades não sejam entendidas como anormais. Logo, o racismo é elemento fundamental para formação de qualquer Estado capitalista, estruturando as relações políticas e econômicas (ALMEIDA, 2018).

Dessa forma, quando Marielle denunciava o homicídio de jovens pretos nas favelas do Rio de Janeiro, como fez na véspera de sua morte⁶, é a denúncia contra todo esse sistema político e econômico que estrutura o capitalismo que ganha voz. O homicídio é a última das violências que atinge essa juventude. A trajetória das pessoas nesses territórios é marcada por diversas violações de direitos, pela intensificação dos arrochos econômicos que atingem o salário mínimo e precariza as relações de trabalho para que essa política econômica continue atuando para o aumento da fortuna da burguesia. Ou seja, a denúncia e a luta política de Marielle também é contra essa estrutura de capitalismo dependente brasileiro, caracterizada quase como uma atualização da colonização escravista e que imputa à população preta condições degradantes e violentas de trabalho e de vida, sendo incapaz de promover a garantia do acesso dessas pessoas ao básico para uma vida com dignidade. E foi essa estrutura racista que atravessa toda nossa formação social que não aguentou se deparar com a atuação de uma mulher preta e periférica como a vereadora mais votada da segunda maior cidade do país.

Hoje sabemos que seu assassinato brutal tem muito mais proximidade com o palácio do planalto do que com qualquer comunidade carioca. Dessa forma, é fundamental que a denúncia feita por Marielle na véspera de seu assassinato continue tomando força em toda luta contra o avanço da agenda capitalista e de todas as retiradas de direitos que essa agenda quer impor aos trabalhadores. Quantos mais terão que morrer com fome, sem casa e sem trabalho digno para que essa guerra acabe?

 

Notas e referências

ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Covid-19 – PNAD Covid-19. Rio de Janeiro: IBGE, 2021.

MOURA, C. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. São Paulo: IBEA Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas, 1983.

[1] https://www.dieese.org.br/boletimdeconjuntura/2021/boletimconjuntura29.html

[2] http://olheparaafome.com.br/

[3] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/01/volta-do-brasil-ao-mapa-da-fome-e-retrocesso-inedito-no-mundo-diz-economista.shtml

[4] https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2022/202201cestabasica.pdf.

[5] https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html#2021

[6] https://oglobo.globo.com/rio/quantos-mais-vao-precisar-morrer-para-que-essa-guerra-acabe-escreveu-marielle-um-dia-antes-de-ser-morta-22491127

 

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