Quando o Ser Humano é um peixe fora do Ambiente – Por Wagner Carmo

19/02/2017

O Direito positivo do Brasil, estabelecido pelo devido processo legislativo – art. 59 da Constituição Federal de 1988 -, guarda profunda relação com as estruturas de poder e com a divisão de classes sociais presente no seio da sociedade brasileira; representadas e estabelecidas democraticamente no Congresso Nacional.

Na teoria do Direito, a influência das estruturas de poder foram explicada por Karl Marx. Para o filósofo, o direito constituía instrumento de dominação e de manutenção da ordem a partir da perspectiva da democracia burguesa. Roberto Lyra Filho, em o que é direito, analisando o fenômeno de dominação do direito, fixou que a lei é emanada do Estado e permanece, em ultima analise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção.

Na prática, o direito legislado representa a ideologia do Estado. O Estado, quando estabelece as normas jurídicas, representa a vontade daqueles que, em razão da estrutura econômica, ocupam os espaços de decisão e estão no cume da pirâmide das classes sociais. Assim, pode-se compreender melhor o motivo pelo qual a legislação brasileira, em regra, possui dificuldade de avançar na normatização de questões ligadas a ordem moral e religiosa; em assuntos relacionados a direitos sociais e reforma agrária; na garantia do desenvolvimento sustentável diante da ordem econômica ou, ainda, explicando por qual motivo regras jurídicas que restringem ou suprimem garantias e conquistas populares são aprovadas com agilidade.

As questões de ordem ideológica, portanto, influenciam na produção legislativa e, no que interessa ao Meio Ambiente, expõe os conflitos antropológicos e socioambientais do campo e da cidade. A título de exemplo, um dos últimos e mais importantes contrastes legislativos, em matéria ambiental, envolveu a discussão e aprovação do Código Florestal, Lei Federal n.º 12.651, de 25 de maio de 2012. Na ocasião, digladiavam-se ferozmente bancadas legislativas com ligações e interesses na defesa do meio ambiente e na defesa do crescimento econômico. E, ainda, em meio aos discursos, ambientalistas; ruralistas; indígenas; camponeses, médios e pequenos produtores rurais buscavam, apenas, salvaguardar vantagens de ordem corporativa.

E o Ser Humano, como é considerado no debate legislativo e ideológico da produção das leis ambientais?

Sob a ótica ecológica, o filósofo norueguês Arne Naess estabeleceu uma diferença entre ecologia rasa e ecologia profunda. Pela ecologia rasa a natureza possui valor apenas instrumental ou utilitário para o homem. Trata-se de uma perspectiva antropocêntrica que considera o homem o centro do universo e acima da natureza. Lado outro, a ecologia profunda, diferentemente, não separa o homem do ambiente, valorando-o apenas como um dos seres vivos da natureza.

Avançando, Joan Martinez Alier, sugere a existência de três correntes do chamado ecologísmo; assim denominadas: a) o culto à vida silvestre; b) o evangelho da ecoeficência e c) a justiça ambiental ou ecologísmo dos pobres.

A Professora da UFF, Alba Simon, explica que a corrente do culto à vida silvestre se caracteriza pela defesa da natureza intocada, com amor aos bosques e o louvor aos cursos d’agua. Em relação à corrente do evangelho da ecoeficiência, detalha que se caracteriza pela preocupação com os efeitos do crescimento econômico e foi responsável por cunhar o termo “desenvolvimento sustentável”. Por fim, em relação à corrente da justiça ambiental ou ecologísmo dos pobres, considera que “desgraçadamente o crescimento econômico implica maiores impactos no meio ambiente, chamando a atenção para o deslocamento geográfico das fontes de recursos e das áreas de descarte de resíduos. Isso gera impactos que não são solucionados pelas políticas econômicas ou por inovações tecnológicas e, portanto, atingem desproporcionalmente alguns grupos sociais (...)”.

Lobrigando a composição do Congresso Nacional e a legislação ambiental vigente, é possível registrar uma variação de discursos e conteúdos normativos ideológicos que oscilam entre a compreensão da ecologia rasa, do culto a natureza e do ecologísmo dos pobres.

Em meio a tais perspectivas ideológicas, as estruturas governamentais do Estado brasileiro não definem, com clareza, como o Ser Humano deve ser considerado em face das politicas ambientais. Não é incomum encontrar resoluções, decretos e leis que proteja demasiadamente os recursos naturais ou, de forma diametralmente oposta, favoreça o uso e a interferência indiscriminada dos recursos naturais e do meio ambiente em nome da geração de emprego, renda e de um suposto desenvolvimento econômico e social.

Verifica-se, em mais de uma ocasião, que o Ser Humano é um peixe fora do ambiente, pois, o Estado brasileiro, em razão das estruturas de poder, privilegia a elaboração e o incremento de politicas de proteção da fauna, da flora e do crescimento/desenvolvimento econômico sem considerar adequadamente a presença do Ser Humano como parte intrínseca da natureza e do ambiente – seja natural, artificial, cultural e do trabalho.

Não é debalde obtemperar que há uma desproporcionalidade explicita nas diversas normas brasileiras quando se compara a proteção da natureza em relação à proteção do Ser Humano. Veja-se, por exemplo, a Lei de Crimes Ambientais, Lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, cuja presença da ideologia do culto a natureza elevou a proteção da fauna, da flora e dos recursos naturais a níveis mais rigorosos do que diversos tipos penais estabelecidos pelo Código Penal para ilícitos cometidos em desfavor do Ser Humano.

Igualmente, citem-se os problemas e os conflitos relacionados com a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, Lei n.º 9.985, de 18 de julho de 2000, quanto à existência prévia, nas unidades de conservação, de comunidades tradicionais ou de equipamentos instalados para atender a serviços públicos, como antenas de radio e de televisão.

De outro lado, pode-se destacar a influência na legislação do ecologísmo dos pobres, pois, frequentemente os órgãos ambientais são suplantados por vetores políticos e ideológicos que defendem a flexibilização dos instrumentos de proteção ambiental, especialmente as normas relativas ao licenciamento, com único viés de oportunizar o crescimento da economia, a atração de investimentos nacionais ou estrangeiros e a uma fictícia geração de renda.

Em tal hipótese, o Ser Humano, movido pelo aparato ideológico – inconscientemente; festeja a oportunidade do trabalho, acredita que os grandes projetos industriais e econômicos representam, por si só, a melhoria da qualidade de vida e, desconsidera as questões relacionadas à degradação dos recursos naturais e os problemas relacionados aos impactos no meio ambiente.

Noutras ocasiões, as politicas públicas e as legislações, em especial àquelas voltadas para ações locais, como o plano diretor urbano e zoneamento ambiental e agrícola, atendem a voracidade econômica e a defesa do consumo, subjugando a natureza à condição utilitarista da ecologia rasa. Na hipótese, parafraseando Thomas Hobbes, o Ser Humano é o lobo Ser Humano – o homem é o maior inimigo do próprio homem -, pois, não compreende que o Ser Humano é parte da natureza e que destruindo os recursos naturais acaba por comprometer a própria qualidade de vida e a subsistência no planeta.

Assim, problemas relacionados com o clima; com a falta de água; com a escassez de alimentos e a fome; como o aumento de pragas na agricultura; com o desaparecimento de espécies da fauna e da flora; com inundações e deslizamentos de encostas nas cidades, dentre outros, estão relacionados diretamente com a forma e o meio com que o Ser Humano participa e interage com o Meio Ambiente.

É indispensável à compreensão de que os atores do poder legislativos atuam com movimentos delimitados por fatores reais de poder; que o Direito exterioriza a vontade da classe social que alcança as estruturas de comando do Estado; que as politicas de meio ambiente e as legislações ambientais não refogem à ideologia presente no Estado; que o homem não é a fonte de todo valor; que a natureza (fauna, flora e recursos naturais) deve ser protegida com proporcionalidade, sem excluir o Ser Humano; que o crescimento econômico deve considerar o homem como parte da natureza.

O arcabouço conclusivo requer a intelecção da lição de Gramsci, ao recomendar que a visão dialética precisa alargar o foco do direito, abrangendo, no caso do meio ambiente, o conceito de sustentabilidade, ou seja, incluir o Ser Humano no ambiente, reconhecendo-o como um ser vivo da natureza, suprir suas necessidades do presente, imbrica-lo com o desenvolvimento econômico e não afetar a qualidade de vida da geração do futuro.


 

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