Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Despidas do colorido que vivifica a ousadia fundida a figuras como Ada Lovelace, privadas da genialidade socialmente reprimida de prodígios como Alan Turing, desnudadas de qualquer dimensão impregnada à criatividade imantada a espíritos inquietos como o de Isaac Azimov e, certamente, sem a empatia e generosidade que tantos, equivocadamente, afirmam caracterizar o povo brasileiro[2], as linhas adiante esboçadas limitam-se a tentar estimular o(a) leitor(a) a meditar sobre alguns dos problemas vivenciados, hodiernamente, pelos consumidores no Brasil.
Elas buscam, ainda, com alguma chance de acerto, acerca de dilemas que virão a ser experimentados, em um futuro bastante próximo, em razão da crescente, irreprimível e incontrolável fusão de sistemas de inteligência artificial aos movimentos que impulsionam o consumo de seguros no Brasil, e, ainda, quiçá, a refletir sobre como o Direito brasileiro se propõe a resolver, ao menos, parte destas questões.
Tal desiderato torna imperioso propor um acordo semântico prévio, um pacto que impõe aceitar que no contexto das notas à frente cosidas, eventuais alusões à inteligência artificial deverão ser compreendidas como referências a sistemas capazes da tomada de decisões que dispensam a necessária intromissão de seres humanos, sistemas que raciocinam, melhor, que atuam tendo por lastro cálculos estatísticos e prognoses probabilísticas em um processo que envolve, pelo menos, o acoplamento de software, hardware e ideia[3].
Registre-se, ainda, no contexto deste curtíssimo escrito, que um sistema de inteligência artificial, mesmo que interaja com ambos, difere tanto da Internet das Coisas como do Big Data. Aquela, diz respeito a dispositivos com sensores e câmeras, a engrenagens que possuem dimensões e movem-se com ritmos e velocidades distintas, a objetos com rodas, rolamentos e diferenciais produzidos, fabricados com distintos tamanhos e materiais e, ainda, evidentemente, ao software que lhes dá vida e que permite tanto a coleta e envio dos dados que alimentarão os sistemas de inteligência artificial como que os objetos abarcados pela IoT sejam retroalimentados em um processo circular que busca a máxima eficiência. O Big Data, por sua vez, consiste em uma gigantesca base de dados[4], um conjunto de informações cuja dimensão transcende, em muito, os muitos saberes arquivados na mítica biblioteca de Babel arquitetada, décadas atrás, entremeio aos movimentos proféticos impulsionados pelo gênio de Jorge Luis Borges[5].
Sem ter como escapar de cenários compostos e recompostos, montados e desmontados nas flutuações dos humores da Fortuna, quem porventura aceitar percorrer, com vagar, a trilha metodológica elipticamente antecipada provavelmente resgatará dos porões da memória algumas das muitas possibilidades imanentes à inteligência artificial. Ao mesmo tempo, poderá intuir que, como no caso dos cisnes negros pensados por Popper[6], outras tantas situações sequer poderão ser antecipadas em sua existência.
Em paralelo, o exercício intelectual proposto na abertura do parágrafo anterior, eventualmente, levará a compreender que os triunfos e gratificações dispersos em um ambiente marcado por inconteste disrupção tecnológica só poderão ser ofuscados pelos perigos e riscos afetos às sístoles e diástoles que põem em movimento a inteligência artificial[7], estética que traz à mente a contradição ínsita aos Versos íntimos de Augusto dos Anjos.
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Ante a literal falta de espaço para maiores digressões e, especialmente, diante da inconteste ausência de legitimidade para fazê-lo, passa-se ao largo da discussão que se propõe a entender se as tecnologias são (ou não) ontologicamente neutras e, nesse contexto, se podem ser qualificadas como boas ou más. Opta-se, como antecipa o título deste opúsculo, por recorrer ao auxílio de Janus[8], logo, por compreender que paradoxos e aporias são um elemento imanente à Contemporaneidade.
A partir daí, imaginemos, com Janus, o advento das chamadas Insuretechs, dentre as quais podem ser listadas a Lemonade, nos Estados Unidos, a Charles Taylor, na Inglaterra e a Youse, no Brasil, sociedades empresárias as quais, se ainda não o fazem, muito em breve, terão condições de precificar as coberturas securitárias por elas ofertadas de forma individualizada, em vez de recorrerem ao tradicional profiling e à correlata categorização dos segurados em grupos criados a partir da identificação de características comuns mais ou menos homogêneas[9] gestadas com o recurso a complexas e, nem sempre transparentes, fórmulas atuariais.
Como é possível intuir, em tal contexto, se de um lado, talvez, preços menores favoreçam algumas pessoas graças à redução dos custos operacionais obtida mediante a implementação do contato direto com os consumidores[10], ou ainda, por conta do acesso a informações mais detalhadas acerca dos segurados, de outro, dentre consequências nefastas[11] deveras factíveis, muitos terão que suportar ônus financeiros mais elevados para terem acesso às mesmas coberturas securitárias, migrarão para contratos menos vantajosos ou, em um cenário bastante obscuro quando se pensa no Brasil, passarão a depender dos sistemas de saúde e de seguridade social públicos, situações que, notadamente, de forma mais ou menos intensa fissuram a solidariedade social.
O recurso à inteligência artificial no âmbito securitário permite antever, ainda, a gênese ou agravamento de problemas afetos ao cada vez mais crível e questionável monitoramento dos hábitos dos consumidores, sobretudo, diante das possibilidades latentes da Internet das coisas com seus sensores, microfones e câmeras acopladas a celulares, relógios e notebooks, a automóveis e até mesmo a roupas, calçados e óculos e que, dentre outros, tem por escopo a coleta de dados sensíveis (ou não) que poderão influenciar a compreensão hermenêutica de aspectos contratuais em desfavor dos consumidores.
Um único exemplo bem ilustra a preocupação antecipada, hipótese essa afeta à decodificação semântica do que considera-se informação inexata ou, ainda, agravamento considerável dos riscos previstos no contrato e que fora buscada no factível cruzamento (a) das informações concedidas de boa-fé, pelo segurado, por ocasião do preenchimento da proposta com (b) dados capturados em contextos nos quais pode não haver a clara compreensão ou, ainda, prévia e válida permissão outorgada pelo consumidor –, dados pinçados com o fim de alimentar algoritmos que por terem sido moldados nas forjas da eficiência econômica tenderão a ampliar, dogmaticamente, as situações que afastam a necessidade de cobertura securitária nos termos dos artigos 766 e 769 do Código Civil brasileiro[12], sem considerar aspectos como a força normativa que pulsa do princípio da vulnerabilidade, ou mesmo o fato de que a proteção dos direitos da personalidade integra o núcleo duro do direito privado no Brasil, mormente, diante do seu regramento constitucional.
Ainda mais pontualmente, vislumbram-se os seguros que têm a pessoa e sua saúde como seu vértice gravitacional. Neles, se de um lado o acesso a informações detalhadas permite a realização de diagnósticos médicos antecipados que fomentam a prevenção e o tratamento precoce de distintos males, de outro, a captura de dados pessoais tornada factível pelo contato do Big Data com os algoritmos da inteligência artificial, para além de potencialmente influenciar o valor do prêmio – o que carrega consigo problemas como os antevistos –, toca, também, a questão dos dados sensíveis[13], tema esse que se encontra tutelado, em abstrato, pela Lei de Geral de Proteção de Dados, vigente no Brasil desde meados de 2020[14], mas cuja efetividade se desconhece até o momento.
Obviamente, o universo de situações que podem ser vislumbradas na sobreposição dos temas centrais que inspiram estas singelas notas é bastante mais amplo e ante o contato com molduras fenomênicas sem-fim – como antedito, dentre as quais muitas sequer podem ser antecipadas ante os limites impostos a imaginação humana –, seja dada permissão para que, antes de alocar um ponto final neste opúsculo, lembrar – de modo a dar um pouco mais de concretude a preocupações que, talvez, para espíritos negacionistas não passem de quimeras deveras distantes – que em torno de “85% de dados não estruturados – dentre os quais os principais exemplos talvez sejam os posts em redes sociais –, vídeos e informações de geolocalização” são material fecundante para exitosas ações publicitárias que têm levado o consumidor a gastar mais[15].
Notas e Referências
[1] As ideias ora fundidas buscando dar vida a este opúsculo serviram como lastro da comunicação intitulada Artificial intelligence and consumer protection in Brazilian law, proferida por ocasião da International Conference on Artificial Intelligence and Law havida em janeiro de 2021 na Universidade de Rzeszów, Polônia. Agradeço o carinho externado por Angélica Carlini que me ajudou a seguir pensando algumas das questões postas neste opúsculo e, ainda, por Suzana Rahde Gerchmann por ocasião do precioso auxílio com a versão final.
[2] Para interessante e atualíssima crítica formulada visando a desconstruir o senso comum erigido em torno dessa ideia, v. SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.
[3] STEIBEL, Fabro et al. Possibilidades e potenciais da utilização da inteligência artificial. In: MULHOLLAND, Caitlin; FRAZÃO, Ana (Coord.). Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 51-52. “Imaginar a inteligência artificial como software nos ajuda a concebê-la como uma sequência de códigos e instruções que pode, por exemplo, realizar tarefas humanas, como encontrar associações entre dados e fazer previsões de eventos futuros. Conceber a inteligência artificial como hardware nos força a ponderar a capacidade de processamento de informações que é sempre feita em computadores fisicamente presentes em algum lugar – mesmo que no seu celular – e que a inteligência artificial pode ainda ser associada às inovações da robótica, levando o software a poder coletar informações ou executar ações de forma autônoma. Por fim, a inteligência artificial precisa ser pensada como ideia, algo que não seja apenas um substituto da mente humana, mas paralelo”.
[4] STEIBEL, Fabro et al. Possibilidades e potenciais da utilização da inteligência artificial. In: MULHOLLAND, Caitlin; FRAZÃO, Ana (Coord.). Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 51-52.
[5] BORGES, Jorge Luis. Ficções. Trad. Carlos Nejar. São Paulo: Abril, 1972
[6] POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Trad. Leônidas Hegenberg et al. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
[7] BOSTROM, Nick. Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Trad. Aurélio Antônio Monteiro et al. Rio de Janeiro: Darkside, 2018.
[8] Janus, comumente identificado por suas duas faces – uma delas olhando para trás – reside no panteão mitológico romano e é responsável por governar as transições, os câmbios e as flutuações cotidianas. O radical, na esfera filológica, pode ser pinçado no nome dado ao primeiro mês de cada ano: janeiro. Informe-se, ainda, que pouco após encontrar em Janus a metáfora que, semioticamente, serviu como fio condutor no enfrentamento de algumas das contradições impregnadas ao tempo presente, reforçando-a, este belo texto nos foi legado pela Fortuna: MESA, Marcelo López. El nuevo Código Civil y Comercial y la responsabilidad civil: de intenciones, realidades, concreciones y mitologías. Revista Anales de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales, La Plata, a. 13, n. 46, p. 47-53, 2016. p. 60-61.
[9] TZIRULNIK, Ernesto; BOAVENTURA, Vítor. Uma indústria em transformação: o seguro e a inteligência artificial. In: MULHOLLAND, Caitlin; FRAZÃO, Ana (Coord.). Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 544-551.
[10] Id. p. 546-547.
[11] NUNES, Gustavo Finotti dos Reis. Dados pessoais e sua tutela como direitos da personalidade. In: TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo et al (Orgs.). Inteligência artificial, proteção de dados e cidadania. Cruz Alta: Ilustração, 2020. v. 2. p. 141-142.
[12] CC. Arts. 766 e 769.
[13] LGPD. Art. 5º.
[14] LGPD, Art. 11, § 4º e § 5º.
[15] HANS, Daniela Kutschat. Experimentações contemporâneas: um olhar sobre tecnologia e consumo. In: HANS, Daniela Kutschat; GARCIA, Wilton. #consumo_tecnologico. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2015. p. 24.
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