Putas, moral cristã, justiça, hipocrisia   

20/04/2022

Justiniano reinou sobre o mundo que forma a Tradição Ocidental de 527 a 565. Morreu em Constantinopla. O nome da cidade foi homenagem a Constantino, outro imperador de Roma (de 306 a 337), instaurador do catolicismo e editor da Bíblia (em Niceia, 325). Ambos, a ferro e fogo, fizeram das suas as vontades gerais.

Constantino impôs a crença católica como única. Simplesmente destruiu os templos das demais religiões, perseguiu e matou os discrepantes de seu adotado credo. Justiniano aprofundou a severidade católica e a fez método de vida. Dentre outras coisas, Justiniano estabeleceu a moral de restrição aos prazeres do corpo.

A inspiração de Justiniano era Teodora, a imperatriz. Ela fora bailarina, atriz e gostava de sexo. Tinha vida “desregrada”. Justiniano e Teodora compreenderam que a religião seria uma “liga” para os povos sob seu domínio. Investiram nisso. Teodora morreu, Justiniano mandou que se fechassem todos os lugares em que se risse.

Eis a conta: o modo católico de pensar perdurou de 306 até 1789 (Revolução Francesa). São 1.600 anos, portanto. Se lembrarmos que o Iluminismo não se estabeleceu desse logo em Espanha e Portugal, temos que a herança ibérica nos lega mais desse ascetismo. Nossa compreensão do corpo é a de um lugar de pecado.

Esse “pensamento” regia as instituições e os costumes. O Direito Romano (Justiniano o recuperou) instruía o patriarcado. A ascese (austeridades, disciplinas, rituais, evitações morais etc. prescritas aos fiéis, tendo em vista a observação de desígnios “divinos” e mandamentos “sagrados”) padronizava os indivíduos.

Todos, mais ou menos, estamos ainda prenhes dessa moral que se denomina de cristã. Os locais em que se ri continuam sob suspeição. Embora Cristo tenha absolvido Madalena (que nem era puta, mas cometeu adultério), os cristãos atiram primeiras pedras nos prostíbulos através dos tempos, conquanto os frequentem.

Só recentemente a Justiça compreendeu a coisa de outra maneira. Leio no Empório do Direito: “Casa de prostituição não é crime, diz juiz em sentença inspirada em literatura” (http://migre.me/r5yRE). O magistrado, Denival da Silva, explicita a hipocrisia da moral religiosa e prestigia a Constituição. Edito:

“Ao mesmo tempo que cultuavam o aparente zelo e apreço pela instituição familiar, impondo severas doutrinas machistas como forma de preservação da moralidade e ética, satisfaziam suas orgias e fantasias recônditas nas casas de tolerância, que a sociedade, como o nome está a indicar, permitiu que existissem.

A mulher de prostíbulo, antes de ofender qualquer bem jurídico, é a grande ofendida, porque dispõe de sua própria dignidade. E não há bem jurídico mais nobre que a dignidade humana, tanto que eleito com eixo gravitacional de todas as garantias constitucionais (art. 1º, III, Constituição Federal de 1988).

O Código Penal preocupou-se com a prostituição acolhendo a moral-cristã de antão (e de agora ainda), para ‘preservar’ os valores familiares e sociais. Basta observar que o legislador intitulou os crimes contra a liberdade sexual e a esta moralidade com o sugestivo nome: Os Crimes Contra os Costumes (Título VI).

A legislação preocupou-se claramente com a moral-cristã, porquanto de nenhuma relevância jurídico-penal. Para com a mulher prostituta (ou prostituída) não há preocupação da lei, ainda que a Constituição Federal diga que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza… (art. 5º, caput)”.

Em Jus leio decisão do juiz André Luiz Nicolitt (edito): “Com a modernidade, busca-se intensificar o princípio da secularização, segundo o qual se produz uma ruptura entre direito e moral, destacadamente a moral eclesiástica. No que tange o direito penal, distinguindo crime e pecado”.

Nas sentenças, o fundamento republicano da vida social. Não obstante nos declararmos República em 1889, o republicanismo não nos alcançou plenamente os costumes. Curioso como o Judiciário, ou parte dele – o STF, sobretudo –, tem imposto à nossa conservadora sociedade patamares mais civilizados. Ainda bem.

Da doutrina, edito Tatiana Yamaçake (https://bityli.com/IAxAs): “A prostituição, fenômeno multifacetado, apresenta-se como tema polêmico. Proibir a casa de prostituição não é controlar nem prevenir, mas simplesmente remeter a atividade proibida para a clandestinidade, onde não existe absolutamente nenhum controle (oficial).

Na dinâmica social contemporânea, em que a dignidade do ser humano emerge como princípio ou valor da mais alta densidade, o Direito – não o penal – deve avaliar e enfrentar o desafio da socialização dessa antiga personagem, que não mais deve vagar desamparada neste questionável esforço de mera subsistência”.

Na defesa de reacionários predicados morais, defensores da criminalização da prostituição, sobretudo das casas de prostituição, alegam exploração da dignidade da mulher. Ora, a dignidade humana é explorada por diversos e perversos meios, mas só há insurgência contra o que seria exploração sexual. Hipócritas, não?

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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