Punir os pobres antes do trânsito em julgado: o que está em jogo no julgamento das ADCs 43 e 44 pelo Supremo Tribunal Federal - Por Jader Marques

29/01/2018

O Partido Ecológico Nacional e a Ordem dos Advogados do Brasil ingressaram com Ações Diretas de Constitucionalidade para discutir a impossibilidade de prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Em ambas, os autores pedem a declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal[1], com a consequente alteração do entendimento exposto no julgamento do HC nº 126.292, quando a Suprema Corte passou a admitir a prisão logo depois do julgamento de segunda instância. O pedido liminar de suspensão das execuções provisórias foi negado na Corte, por maioria.

Recentemente, a Ministra Carmem Lúcia anunciou que as ADCs nº 43 e 44 estão prontas para julgamento, o que acarreta uma série de especulações a respeito de qual será a posição do STF em relação ao tema.

Em sessão da Primeira Turma do Supremo, o Ministro Alexandre de Moraes, que assumiu na vaga do Ministro Teori Zavascki, afirmou que o tribunal está hoje dividido, havendo fortes rumores de que votará contra a possibilidade de execução antecipada da pena a partir da segunda instância. Também em recente decisão, proferida no julgamento do HC 142.173/SP (sessão da Segunda Turma de 23.5.2017), o Ministro Gilmar Mendes deixou clara sua tendência de mudar a posição inicial, já que votou com a maioria.

Prisão só depois do julgamento do Recurso Especial.

Além do pedido central, os autores postulam, alternativamente, a modulação da decisão, no sentido de a execução da pena iniciar apenas depois do julgamento do recurso especial perante o STJ. Constou expressamente na petição inicial da ADC nº 43: “Por essas razões, requer-se a concessão de cautelar, nos termos do artigo 21 da Lei n. 9.868/99, para se determinar que: (...) c. por fim – se os pedidos cautelares formulados nos itens a e b não forem acolhidos – requer-se seja realizada interpretação conforme a Constituição do artigo 637 do CPP, restringindo, enquanto não for julgado o mérito desta ação, a não produção do efeito suspensivo aos recursos extraordinários, e condicionando a aplicação da pena à análise da causa criminal pelo STJ quando houver a interposição de recurso especial.”

Esta poderá ser a saída adotada pelo STF, que ficaria no meio termo entre a prisão na segunda instância e a prisão depois do julgamento do recurso extraordinário no STF (trânsito em julgado).

No meio do caminho, o STJ.

Quando do julgamento da cautelar, o Ministro Dias Toffoli, em seu voto, admite a modulação requerida na inicial, registrando que: “De toda sorte, em meu sentir, é possível interpretar-se o requisito do trânsito em julgado, previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, como exigência de certeza na formação da culpa, para, ato contínuo, precisar o momento em que se atinge essa certeza.”

Conforme o Ministro, por força do art. 102, § 3º, da Constituição Federal, o recurso extraordinário, ao exigir repercussão geral, não se presta à correção de ilegalidades de cunho meramente individual, não havendo razão para impedir a execução da condenação na pendência de seu julgamento (ou de agravo em recurso extraordinário). Já no caso do recurso especial, importa ver que está voltado à tutela do direito federal e à correção de ilegalidades de cunho individual, desde que a decisão condenatória contrarie tratado ou lei federal, negue vigência a eles ou dê à lei federal interpretação divergente da que lhe haja dado outro tribunal, nos termos do art. 105, III, a e c, CF.

Para o Ministro Toffoli: “(...) se o trânsito em julgado se equipara à constituição da certeza a respeito da culpa – enquanto estabelecimento de uma verdade processualmente válida, para além de qualquer dúvida razoável -, reputo viável que a execução provisória da condenação se inicie com o julgamento do recurso especial ou do agravo em recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça.”

E por assim ser, conclui seu voto, assentando que: “Com essas considerações, voto pela concessão, em parte, da medida cautelar, para o fim de i) se determinar a suspensão das execuções provisórias de decisões penais ordenadas na pendência de julgamento de recurso especial (REsp) ou de agravo em recurso especial (AREsp) que tenham por fundamento as mesmas razões de decidir do julgado proferido pelo Plenário do STF no HC nº 126.292/SP; e ii) se obstar que, na pendência de julgamento de recursos daquela natureza, sejam deflagradas novas execuções provisórias com base nas mesmas razões.”

Mas afinal o que está, verdadeiramente, em jogo nessa questão?

Os subscritores da petição inicial da ADC nº 43, a partir de alentado estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas, apontam que a taxa média de concessão da ordem de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, após o julgamento em duas instâncias ordinárias, alcança a marca de 27,86%, podendo chegar, em algumas matérias (como na exigência de fundamentação concreta para o agravamento do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade, por exemplo) à taxa de sucesso de 62% nos RHC e HC relacionados ao Tribunal de Justiça de São Paulo.[2]

Verificando alguns dados do recente levantamento apresentado pelo CNJ a respeito dos presos provisórios, é possível perceber que a questão do início da execução da pena está muito longe de atingir os ricos, poderosos, políticos, empresários, os investigados e condenados na Lava-jato, como disse o então Procurador Janot, quando defendeu a execução antecipada da pena.

Conforme os dados apresentados, dos 654.372 presos, 221.054 são provisórios (34%). Deste total de presos ainda não definitivamente condenados: 29% são processados pela Lei de Drogas; 28% roubo e latrocínio; 8% pela Lei de Armas; 11% por furto e receptação. Do montante geral, cerca de 76% dos presos provisórios respondem a crimes de drogas, armas ou patrimoniais (com ou sem violência). Pela natureza dos crimes, fica evidente o pertencimento desses acusados às camadas mais pobres da sociedade.[3]

Outro estudo importante para a análise aqui desenvolvida, realizado pela rede Politize, mostra que jovens entre 18 e 29 anos representam 55,08% da população carcerária no Brasil. Além disso, 61,67% desta população é de cor negra, preta ou parda. Quanto à escolaridade, 53% não concluiu o ensino fundamental.[4]

Pobres, pretos e analfabetos.

É da população pobre, de baixa escolaridade, envolvida em crimes de droga, arma ou patrimoniais e em sua maioria negros/pardos que estamos falando. É dos clientes da defensoria pública ou da advocacia dativa em todo o Brasil que estamos falando. É o usuário preferencial (que denuncia a violenta seletividade) do sistema penal. É disso que se trata.

A decisões reformadas, as penas alteradas, as reduções de pena, as trocas de regimes, enfim, todas as formas de reversão das decisões de segunda instância pelo Superior Tribunal de Justiça afetam, pois, a massa de despossuídos que superlota as masmorras cheias de ratos e baratas pelo Brasil afora. Gente sem eira nem beira, sem sobrenome, sem raça definida, sem diploma e sem importância.

Quando se fala em iniciar de forma antecipada o cumprimento da pena privativa de liberdade no País, inclusive antes do julgamento dos recursos especiais, é das pessoas pobres que estamos tratando, é dos refugados (Zygmunt Bauman).[5]

Refugo é tudo aquilo que não serve. É o que foi deixado de lado, porque não foi usado, porque foi usado e perdeu a serventia, porque sobrou, enfim, é tudo que tenha o lixo por destino. E não somos educados para nos importarmos com o lixo. Sabemos que ele é inevitável, que é a sobra de tudo o que consumimos ou o que não conseguimos consumir, porque pereceu, porque envelheceu, porque saiu da moda. Não há luxo no lixo. E não há culpa. É tudo muito natural. Desprezamos o que não tem utilidade em detrimento daquilo que se afigura importante para o momento. Fazemos isto com os alimentos, com as máquinas, com as roupas, com as informações.

Mas e o ser humano?

Será possível imaginarmos que haja seres humanos classificados como refugos, porque não têm serventia, porque perderam a utilidade, porque não produzem, porque geram despesas, porque se apresentam, tal como o lixo, desajeitados, fétidos, inúteis, amontoados nos lugares mais afastados, como sobra de comida, sobra de produção, como o excedente?

Tantas vezes, passamos por estes seres humanos que viraram dejetos, vítimas da exclusão, da falta de espaço, da falta de sorte, da falta de assistência e, de passagem, não enxergamos a sua condição de refugo. Não queremos ver o lixo. O problema é que o vento muda de direção e o cheiro de podre invade a nossa sala de estar. O lixo derrama, invade a grama aparada do nosso quintal. Quando a montanha de lixo depositado atravessa a nossa vida, queremos que o estado recolha o lixo, resolva o problema, porque o lixo não é nosso. O lixo não tem dono. Cabe ao estado manter o lixo no lugar apropriado, afastado das pessoas brancas, limpas, arrumadas, inseridas.

O preso é o lixo. A penitenciária é o depósito. O idoso é o lixo. O asilo é o depósito. O louco é o lixo. O manicômio é o depósito. O pobre é o lixo. O gueto é o depósito. Enquanto todos respeitam a territorialidade que demarca os lugares da exclusão social, a ordem será mantida e preservada. Encarcerar os pobres, os diferentes, os refugados é a marca contemporânea da política criminal, inclusive em nível internacional.[6]

O que está em jogo, portanto, no debate sobre a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, é o direito de liberdade das pessoas mais pobres e marginalizadas.

É inadmissível, por ser falso e ardiloso, que o argumento da efetividade da Operação Lava-jato (e congêneres)  seja utilizado como motivo para mandar prender logo depois do julgamento pela segunda instância, pois quem continua a ser punido de forma injusta são os mesmos excluídos de sempre.

Mais não digo.

 

Notas e Referências:

[1] Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

[2] Conforme: “Panaceia universal ou remédio constitucional? Habeas corpus nos Tribunais Superiores” da FGV-RIO, coordenado pelo Prof. Dr. Thiago Bottino: http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/u100/relatorio_final_pesquisa_hc_ipea-mj_- _junho_-_2014_-_para_publicacao.pdf, P. 59.

[3] Conforme: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84371-levantamento-dos-presos-provisorios-do-pais-e-plano-de-acao-dos-tribunais (Acessado em 28/01/2018)

[4] http://www.politize.com.br/populacao-carceraria-brasileira-perfil/ (Acessado em 28/01/2018)

[5] BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2005.

[6] WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

 

Imagem Ilustrativa do Post: STF // Foto de: Mariana Heinz // Sem alterações

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