Coordenador: Ricardo Calcini
“Ainda é tempo de refletir sobre a Reforma Trabalhista”. Destaca-se isso para, claramente, pontuar-se um posicionamento contrário à fala corrente no sentido de que, com a promulgação e publicação da Lei 13.467/2017 (a lei da Reforma), o assunto restaria superado, a inaugurar um novo período, circunscrito aos estudos sobre as alterações legais que vigorarão a partir de novembro deste ano e de “adaptação” à nova realidade das relações de trabalho.
Nada mais equivocado. De início, porque apaga as luzes para toda a realidade do processo no qual se desenvolveu a tramitação dos projetos que resultaram na alteração legislativa – causadora, ao nosso ver e com respeito às posições em contrário – desde que fundamentadas -, da mais clara ofensa aos direitos sociais na história do Brasil. Coloca-se uma “pedra” sobre isso, não se discute mais os impactos na vida e nas esperanças de ascensão social daqueles que, para sobreviver, contam unicamente com a sua força de trabalho, e, por fim, relega-se ao conveniente esquecimento questões subjetivas que marcaram esse momento histórico. Ademais, ignora-se, ao assim agir, a promessa de “ajustes” da lei, recentemente publicada, por meio de Medida Provisória – algo, por si, espantoso, mas que não será enfrentado diretamente neste pequeno ensaio, dedicado a outras “provocações” relevantes.
“Provocações”, sim, pois, aqui, buscar-se-á levantar algumas questões essenciais à compreensão do cenário no qual se deu a Reforma, de modo a contribuir para as necessárias reflexões. Afinal, na busca das melhores respostas, o trabalho inicial não pode olvidar a formulação de boas questões.
E a primeira das questões que se quer levantar é a seguinte: estamos preparados para a prevalência do negociado sobre o legislado, tão fomentada pela Reforma Trabalhista?
De início, saliente-se que vale a leitura atenta da nova lei para que não haja confusões quanto aos direitos que podem ser objeto de negociação, os que podem tê-la pela via individual e os que dependem de negociação coletiva – o que é muito relevante mas não será, diretamente, objeto deste ensaio, ficando para abordagens futuras.
Superado isso, há de se retornar à questão proposta, para o que algumas considerações devem ser feitas antes de se ofertar qualquer resposta direta. A primeira consideração necessária é no sentido de que a referida prevalência sempre existiu no atual cenário constitucional, o que se extrai tanto da Constituição Federal de 1988, no seu artigo 7º, caput e inciso XXVI, no que tange ao resultado da negociação coletiva - que deve ser respeitado e valorizado (reconhecimento) - quanto na própria CLT, artigo 444, no que se refere à negociação individual.
A diferença é o alcance do resultado desta negociação. No atual cenário, alguns princípios e regras buscam garantir que a negociação, no bojo das relações de trabalho, não conduza ao retrocesso social. Por isso, o artigo 7º da Constituição Federal, ao mesmo tempo em que fixa como direito dos trabalhadores urbanos e rurais o respeito e a valorização do resultado da negociação coletiva (no inciso XXVI, alude ao “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”), antes, no caput, fixa que tais direitos são elencados além de outros que propiciem a melhoria das condições sociais dos mesmos trabalhadores. Logo, considerada a impossibilidade de interpretação do inciso de modo desprendido e absolutamente divorciado do caput, tem-se que o resultado da negociação coletiva deve observar o mínimo garantido aos trabalhadores pela intervenção estatal básica (lei em sentido amplo, a abranger o próprio texto constitucional), destinando-se à conquista de novas e melhores condições para além desse patamar mínimo já alcançado historicamente, observadas as peculiaridades setoriais e do momento histórico vivido e as aberturas que o próprio sistema permite – ou seja, considerar a existência de direitos absolutamente indisponíveis e outros relativamente indisponíveis (estes, alguns aspectos do princípio da adequação setorial negociada – vide GODINHO, 2017: 1497-1499). Mesmo nos casos em que se está diante de direitos relativamente indisponíveis, há necessidade de clara contrapartida para que se tenha a negociação válida com redução de direitos.
Do mesmo modo, no plano individual, a negociação entre empregador e empregado para maximizar as condições sociais do trabalhador, com o estabelecimento de condições de labor mais favoráveis do que as garantidas em lei, sempre foi admitida como válida (CLT, artigo 444). A isso, some-se que as alterações contratuais, no atual cenário (antes de entrar em vigor o conjunto de alterações trazido pela Reforma), somente são válidas se consentidas pelo empregado e, mesmo assim, não representarem prejuízos a esse (regra da inalterabilidade lesiva do contrato – para muitos, com força principiológica no Direito do Trabalho).
Nota-se a proteção ao trabalhador, que faz do Direito do Trabalho verdadeiro berço do que, hoje, pode ser encontrado na realidade de diversas outras relações jurídicas-contratuais: o reconhecimento do desequilíbrio natural de forças intrínseco à determinada relação negocial, por suas características. Tal se dá, também, dentre outras e, aqui, à guisa de exemplo, nas relações de consumo – a justificar a existência do Código de Defesa do Consumidor, diploma também protetivo, em especial, de um dos polos da correspondente relação jurídica por ele regida, qual seja, o consumidor.
Mas o que justifica essa realidade protetiva no âmbito das relações contratuais?
A resposta é evidente: o reconhecimento de que, em tais relações, uma das partes é claramente vulnerável frente à outra. Essa vulnerabilidade desequilibra a relação negocial, por vezes a tal ponto que, no plano da realidade, fulmina qualquer verdadeira expressão de negociação entre as referidas partes, a viabilizar quadro no qual uma das partes impõe as condições e a outra simplesmente aceita.
Vale destacar que, ao enfrentar essa realidade, na busca de defender as propostas e as “conquistas” da Reforma havida, muitos foram os que bradaram pela realidade do século XXI, os novos tempos e a necessidade de “modernização” das relações de trabalho, nas quais a “vontade” do trabalhador deve ser considerada, dentre outras pontuações que, no final, acabam por retornar à questão da autonomia da dita vontade.
Porém, há uma questão que emerge quando se alude à “vontade”, em qualquer trato negocial: qual a importância da “liberdade” em um Estado Democrático? Não há democracia sem liberdade!
Alude-se à liberdade pois, ao lado da vontade, tem sido “defendida” com veemência pelos entusiastas da Reforma: a liberdade das partes; a liberdade do trabalhador no bojo da relação empregatícia ou laboral para definir o que é melhor para ele próprio, dentre outras.
Disso tudo, mais uma questão: tem “liberdade” negocial aquele que tem “necessidade” de contratar?
Ora, se o trabalhador depende do salário para sobreviver, já que não detém os meios de produção, conta apenas com a sua força de trabalho para obter recursos indispensáveis ao custeio de suas necessidades básicas e, por isso, depende de sua contratação por terceiros para fim de conseguir obtê-los, será que tem “liberdade” real no processo negocial com seu possível empregador, no ato da admissão, para pontuar os seus interesses e buscar condições que considere adequadas? Ou será que a maioria dos trabalhadores, nesse momento, diante da “vaga” e da possibilidade de obtenção do emprego, tende a aceitar o que lhe for ofertado? Parece que a “liberdade” do trabalhador não tem a mesma extensão da que toca ao possível empregador, o que, por si, já demonstra o desequilíbrio de forças na referida relação.
Vale avançar. Durante todo o contrato de trabalho, ressalvadas os pontuais casos de garantia no emprego ou estabilidade, os empregados não sabem até quando terão os seus empregos, afinal, no sistema brasileiro, a dispensa imotivada é permitida ao empregador. Que resistência pode ter um empregado frente a propostas de alteração nas condições contratuais - mesmo que se mostrem lesivas? Se há necessidade do emprego para sobreviver e garantir a vida ou sobrevida digna à família – a depender do caso -, frente à possibilidade de dispensa, o trabalhador cederá (não por “vontade”, não de modo efetivamente “livre”, mas pela “necessidade”).
A conclusão óbvia aponta para a inexistência de efetiva manifestação de vontade ou expressão de liberdade quando alguém é chamado a decidir em uma situação de necessidade. Aliás, o sistema, em outras searas, tantas vezes já reconheceu isso, relativizando os efeitos dos atos daquele que age movido por tal ordem de estado pessoal ou de terceiro.
Para resguardar a mínima justiça e tentar aproximar a relação do “equilíbrio”, ao menos um pouco, em determinado momento histórico notou-se a relevância da intervenção estatal básica protetiva do vulnerável, de modo a romper as amarras do liberalismo exacerbado, causador de superexploração dos desprovidos de melhores recursos e condições patrimoniais/pessoais.
Nesse passo, o Direito do Trabalho surgiu, pioneiro, servindo de exemplo para tantas outros campos das relações contratuais, em contexto que culminou na aceitação do dirigismo contratual na teoria geral dos contratos e na evolução do princípio da autonomia da vontade para a noção de autonomia privada.
Portanto, na medida em que se mostre necessária a intervenção básica do Estado para garantir o sistema de direitos sociais, na extensão exigida pelo grau de vulnerabilidade verificado e pelo consequente desequilíbrio intrínseco que marque a relação negocial, há de se verificar essa necessária mitigação da autonomia, em reconhecimento ao fato de que, para muitos, no plano da realidade, não há autonomia quando se está diante da necessidade, mitigadas que restam a liberdade e a própria vontade.
As singelas provocações aqui apresentadas, seguidas de pontuais e muito básicas reflexões, bastam para que se conclua quanto ao risco do alargamento da liberdade do empregado para negociar a flexibilização in pejus de sua condição contratual, no plano individual.
Será que no âmbito das negociações coletivas haveria, então, campo para a prevalência do negociado sobre o legislado, de um modo diferente do que se tem atualmente? Pois, como vimos, a própria Constituição Federal nos mostra que o negociado prevalece sobre o legislado, desde que traga aos trabalhadores melhoria nas suas condições sociais.
Sem adentrar à análise pontual do que a Reforma trouxe de mudanças específicas neste tema, o fato é que o negociado coletivamente somente poderia prevalecer sobre o legislado se constatada efetiva negociação.
Como assim? Somente negocia quem tem “força” para tanto e demonstra, no plano da negociação, que representa os trabalhadores.
Para tanto, é indispensável que o sindicato tenha condições estruturais adequadas para a sua atuação. Essa é a realidade de todos os sindicatos no Brasil? Parece que não.
Como, então, aceitar a prevalência do negociado sobre o legislado? O resultado pode ser muito prejudicial aos trabalhadores caso não se dê aos sindicatos essas condições acima referidas.
A solução seria, “antes” de se admitir a referida prevalência – repita-se, com maior liberdade negocial, pois, o resultado do negociado em acréscimo ao piso mínimo de direitos trabalhistas garantidos na lei já é admitido há muito tempo -, dotar-se os sindicatos de condições para efetivar a referida negociação “da forma como dever ser feita”, com lealdade e transparência, mas com combatividade frente a eventuais tentativas de afronta aos interesses dos trabalhadores.
Nesse diapasão, fazia-se necessária a “prévia” Reforma Sindical na qual, ao menos, alguns pilares do atual sistema constitucional fossem (nesse caso, sim) “modernizados”. A começar pelo fim da unicidade sindical. É inadmissível que se pretenda ter um “discurso de liberdades” nas relações de trabalho se mantidas as amarras da representação coletiva a um único sindicato por categoria e por base territorial mínima equivalente a um município. É imperioso que se tenha o afastamento dessa realidade, com a admissão do pluralismo sindical, dando aos trabalhadores a opção de escolha quanto ao sindicato que os representará nas negociações coletivas com os empregadores. Lembre-se que a empresa é um ser coletivo por natureza (GODINHO, 2017: 1489) e que, para que haja equilíbrio nas negociações, sem o que não há real liberdade ou vontade, é preciso garantir ao outro polo a mesma ordem de força: uma efetiva representação coletiva. A efetividade em questão depende, muito, da representatividade do sindicato no processo negocial, da sua atuação concreta no sentido da salvaguarda dos interesses dos seus representados. Para tanto, os trabalhadores devem ter a “liberdade” para definir quem será o seu representante coletivo, com a vantagem de que, desse modo, a tendência natural será o caminhar para a “unidade” sindical, pois, somente os sindicatos efetivamente representativos é que conseguirão manter-se em atividade. Até pelo fato de que a segunda alteração necessária em sede de Reforma Sindical aponta para o fim da contribuição sindical obrigatória.
Alguém pode afirmar que, isso, a lei da Reforma Trabalhista já resolveu, ao fixar uma facultatividade de pagamento da contribuição que, na prática, representa o seu fim. Todavia, não se pode ignorar que o fim da referida contribuição deveria ser acompanhado da mudança do sistema de unicidade para o de pluralismo ou pluralidade sindical. Afirma-se isso, pois, colocar fim a esta que é uma das principais fontes de custeio do sistema sindical sem garantir outras formas de obtenção de recursos necessários à manutenção dos sindicatos e de suas atividades representa o derradeiro “engessamento” destes, mitigando as possibilidades de atuação.
O ideal, não se negue, é que os sindicatos restem mantidos pelas contribuições dos trabalhadores associados – associação que é fomentada pelas conquistas do sindicato na representação coletiva dos trabalhadores – e por uma possível “taxa negocial” - de modo que as conquistas ditem os aportes que o sindicato terá direito de receber. Ocorre que, como visto, tudo acaba passando pelas “conquistas” do sindicato, que não serão obtidas sem recursos suficientes para custear as atividades necessárias. Portanto, há de se ter o fim da contribuição sindical obrigatória, mas, antes, imperioso se mostra estruturar os sindicatos para que possam buscar nas demais possíveis fontes de custeio o necessário para que possam atuar adequadamente. O fim da unicidade contribui para isso na medida em que o sindicato que mostrar melhores trabalhos certamente irá atrair filiações, obterá mais recursos pela via das taxas negociais, enfim, ganhará condições para exercer o seu relevante papel na relação entre empregados e empregadores. Já aqueles que não se mostram atuantes, restarão fadados ao encerramento das atividades. Por essa via, chegar-se-á ao tão propagado propósito de diminuição do número de sindicatos com ganhos para os trabalhadores.
Interessante, também, a mudança do atual sistema vertical com a promoção da horizontalização, a partir do afastamento do critério de divisão/organização por categorias. O advento de grandes sindicatos de trabalhadores, de atuação concreta, proativa, benéfica aos representados, em um sistema de pluralidade que permita ao trabalhador optar por seu representante coletivo de modo a fazer com que os sindicatos mais representativos congreguem cada vez mais filiados, conduzindo ao “fechamento” aqueles que não atuem com a mesma força e resultados no interesse dos trabalhadores, mantidos pelo reconhecimento recebido a partir das filiações e dos resultados alcançados, pela via da taxa negocial, certamente ganharia força com o fim das amarras das divisões por categorias. Ademais, quanto menor o número de “divisões” entre os trabalhadores, menos numerosos (e, também, menores) serão os obstáculos para a mobilização. A unidade de representação conduz à união, o que, no caso, leva ao reforço do caráter coletivo da representação sindical e, com isso, proporciona mais e mais equilíbrio na relação negocial com os empregadores.
Estas, dentre outras, mudanças indispensáveis à efetiva modernização das relações de trabalho. A pretensão é a prevalência do negociado? Que se dê condições para uma real e igualitária negociação! Logo, antes da “Reforma Trabalhista”, que se tenha a “Reforma Sindical”.
Apenas retirar a contribuição sindical obrigatória consiste em enfraquecer ainda mais a representação coletiva dos trabalhadores: que se faça acompanhar do fim tanto da unicidade quanto da organização verticalizada e por categorias (por PEC, evidentemente); e (ou) que se tenha a ratificação da Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A pergunta que fica: por que não se toca nesse assunto? A quem interessa a “prevalência do negociado sobre o legislado” sem o fortalecimento dos sindicatos, com os quais se darão as ditas negociações?
Por fim, no plano das negociações individuais: por que não ratificar a Convenção 158 da OIT e acabar com a situação de dúvida causada pela pendência do julgamento acerca da matéria? Se é também para “garantir empregos” que se deu a Reforma Trabalhista, o que justifica manter o direito patronal de dispensa imotivada? Não se pretende, aqui, defender o fim do direito de dispensa sem justa causa mas, sim, garantir aos trabalhadores o direito de saber o motivo da sua dispensa bem como o de “não serem dispensados” se não houver justo motivo de ordem econômica, financeira, jurídica ou disciplinar. O que se abomina é o direito à dispensa arbitrária.
Fica o convite para a reflexão. Para a busca de respostas fundamentadas a essas questões aqui levantadas – e não para o “grito” de desconforto daqueles que leram o que não gostariam de ler. É tempo de “parrésia”, fala franca sem medo de retaliações. É tempo de debate jurídico. Nesse nosso campo, não há como se socorrer de discursos inflamados e vazios, pautados por ideologia ou interesses apenas.
Vamos ao debate! Recomendo a leitura do Curso de Direito do Trabalho do Ministro Maurício Godinho Delgado, em especial das páginas 1475 a 1531, que revisitei recentemente, e, por certo, cujo teor foi considerado nessas reflexões.
No mais, por enquanto e nesse ensaio, foram provocações... apenas provocações.
Notas e Referências:
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16.ed. São Paulo: LTr, 2017.
MAISTRO JUNIOR, Gilberto Carlos. O princípio da boa-fé objetiva na negociação coletiva. São Paulo: LTr, 2012.
Imagem Ilustrativa do Post: Construction Worker Potrait // Foto de: Saad Akhtar // Sem alterações
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