Prova: ônus e negócio jurídico processual no Código de Processo Civil de 2015 - Por Luiza da Costa Alonso

27/10/2017

 Distribuição estática do ônus

A distribuição convencional do ônus da prova é denominada distribuição estática, ou seja, o autor deve provar a matéria fática que é trazida na petição inicial e que originou a relação jurídica postulada em juízo. Já no caso do réu, o ônus recai sobre o dever de mostrar a falta de veracidade dos fatos alegados pelo autor, apresentando fatos modificativos, impeditivos ou extintivos.

Importante observar que, caso o réu não cumpra com o ônus imposto a ele, não haverá nenhum prejuízo, a não ser que a parte autora consiga demostrar por meio de provas os fatos alegados em inicial.

Nesse sistema, o caso concreto não tem relevância para que seja definido o ônus probatório, ele já está previamente estabelecido.

Ainda em relação a distribuição estática do ônus, depreende-se que em caso de reconvenção, o ônus do fato constitutivo de direito passa a ser do réu, atuando nesse momento como reconvinte, e o ônus do autor, como reconvindo, passará a ser do fato modificativo, impeditivo e extintivo.

Conforme exposto por Daniel Amorim Assumpção Neves:

“Segundo a regra geral estabelecida pelos incisos do art. 373 do Novo CPC, cabe ao autor o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito, ou seja, deve provar a matéria fática que trazem sua petição inicial e que serve como origem da relação jurídica deduzida em juízo. Em relação ao réu, também o ordenamento processual dispõe sobre ônus probatórios, mas não aos fatos concernentes aos fatos constitutivos do direito do autor. Naturalmente, se desejar, poderá tentar demonstrar a inverdade das alegações de fato feitas pelo autor por meio de produção probatória, mas, caso não o faça, não será colocado em situação de desvantagem, a não ser que o autor comprove a veracidade de tais fatos. Nesse caso, entretanto, a situação prejudicial não se dará em consequência da ausência de produção de prova pelo réu, mas sim pela produção da prova pelo autor.” [1]

Distribuição dinâmica do ônus

Por sua vez, a distribuição dinâmica, novidade trazida pelo Código de Processo Civil de 2015, trata de um sistema misto. Embora exista uma forma de distribuição legalmente estipulada, essa poderá ser modificada pelo juiz.

No caso de o magistrado nada mencionar sobre a distribuição do ônus, este permanecerá conforme a estipulação estática prevista nos incisos do artigo 373 do dispositivo legal.

A distribuição dinâmica do ônus da prova está prevista nos parágrafos do artigo 373 do Código de Processo Civil:

§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

§ 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.”

Percebe-se que o sistema brasileiro, adotando tanto a distribuição estática quanto a distribuição dinâmica, passou a ser misto, a distribuição do ônus da prova deve ser feita com base em cada caso concreto observando as especificidades de cada lide.

Importantíssima ainda a determinação constante do parágrafo 2º do acima transcrito. Buscando preservar os princípios do contraditório e da ampla defesa, a inversão do ônus será vedada quando a desincumbência de tal encargo tornar a produção da prova excessivamente difícil ou até impossível.

A inversão convencional

Ainda em relação ao artigo 373, podemos observar outra importante inovação nos parágrafos que seguem:

“§ 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando:

I - recair sobre direito indisponível da parte;

II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.

§ 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo.”

Portanto, é garantido às partes o direito de dispor convencionalmente sobre o ônus das provas, desde que autor e réu estejam de acordo.

A proibição contida no inciso II, do parágrafo 3º se aplica em hipóteses de inversão do ônus probatório referente a fato negativo indeterminado, doutrinariamente denominado de “prova diabólica”.

Saneamento compartilhado

Em consonância com o artigo 373, o artigo 357 em seu inciso III estabelece que a distribuição do ônus da prova deve observar as regras trazidas naquele artigo:

“III - definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373;”

Ou seja, o momento em que se definirá a distribuição do ônus da prova observando-se o contraditório, evitando que as partes venham a ser surpreendidas e eventualmente prejudicadas, é no saneamento.

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe uma inovação em relação a esse momento processual, o denominado saneamento compartilhado.

Conforme parágrafo 3º, do artigo 357, do Código de Processo Civil, em casos com grande complexidade de matéria de fato e de direito, o juiz deverá designar audiência para que o saneamento seja feito de forma cooperativa entre o magistrado e as partes.

Tal determinação nos remete ao artigo 6º, do dispositivo em questão, que estabelece a cooperação entre todos os sujeitos do processo:

Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”

A redação do parágrafo 3º, já mencionado, traz a palavra “deverá”, ou seja, a designação dessa audiência para que o juiz e as partes dialoguem esclarecendo a complexidade das provas e a melhor forma para sua produção, deveria ser obrigatória, e não uma faculdade jurisdicional.

Contudo, embora prevista a obrigatoriedade, as expectativas quanto a esse dispositivo e a realização da audiência para o saneamento compartilhado são baixíssimas.

Baseando-se na audiência preliminar prevista no artigo 331, do CPC de 1973 e no congestionamento forense, é de se esperar que tal previsão não venha a ocorrer.

A exemplo da audiência de conciliação ou mediação do artigo 334, do Código de Processo Civil, os magistrados se negam a realizar tais audiências por acreditarem que estariam perdendo tempo e tumultuando a já conturbada rotina forense.

Embora essas audiências de fato tomem certo tempo, é preciso que os juízes compreendam que, por mais que o andamento processual venha a ser um pouco mais lento no início por conta da audiência de conciliação ou mediação, ou pela audiência designada visando a realização do saneamento compartilhado, a longo prazo os benefícios seriam enormes e compensariam o tempo “perdido” inicialmente.

Nesse sentido:

“O que parece ser de maior relevo é entender que a regra merece ser aplicada em prol do próprio serviço judiciário, viabilizando, é essa a grande verdade, ao próprio magistrado uma mais adequada e concreta perspectiva do problema em suas diversas facetas, fáticas ou jurídicas, coisa que, por vezes, do exame dos autos, pura e simplesmente, sobretudo quando complexas as questões, pode não se mostrar tarefa tão simples. É pensar, destarte, na utilidade que esta ‘audiência de saneamento’ terá para o próprio magistrado na compreensão do problema em litígio.”[2]

Ter uma melhor visão dos fatos e do caso específico, facilitará o trabalho do magistrado.

Além disso, como posto pela professora Ana Beatriz Presgrave em aula da Pós-Graduação de Processo Civil na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, quando as partes participam de forma conjunta com o juiz do saneamento, e todos decidem de comum acordo quais as provas a serem produzidas, como elas serão produzidas e por quem, a chance das partes se sentirem prejudicadas é muito menor, o que evitaria a interposição de eventual recurso, corroborando tanto com a celeridade quanto com a economia processual.

A intenção do artigo não é afastar a necessidade da realização de audiência de saneamento em casos menos complexos, pelo contrário, tal dispositivo tem como principal objetivo aplicar os preceitos do processo cooperativo, aproximando juiz e partes.

O conceito de processo cooperativo não deve ser aplicado somente no início da lide buscando uma solução consensual, mas durante todo o trâmite processual, tornando o litigio menos desgastante para as partes e para o judiciário.

Outro ponto muito importante em relação ao saneamento é a previsão do parágrafo 5º, do artigo 357, do Código de Processo Civil. No caso da realização da audiência prevista no parágrafo 3º, as partes deverão levar o respectivo rol de testemunhas.

Tais testemunhas referem-se àquelas necessárias para esclarecimento das questões complexas que serão discutidas em virtude do saneamento, e não das testemunhas a serem ouvidas na audiência de instrução e julgamento.

Negócio Jurídico Processual

Por fim, outro instituto inovador e importantíssimo ao qual o artigo 357, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil, se refere é o Negócio Jurídico Processual.

No mencionado parágrafo, estipula-se que as partes tem liberdade para, consensualmente, delimitar questões de fato e de direito sobre as quais recairão o ônus da prova e as questões relevantes para a decisão de mérito que serão apresentadas ao juiz. Caso tal delimitação seja homologada, tanto as partes quanto o juiz estarão vinculados.

Tal possibilidade também é mencionada no parágrafo 4º do artigo 373:

§ 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo.”

Não restam dúvidas de que o atual Código de Processo Civil busca a aproximação das partes ao processo, fazendo com que estas participem mais efetivamente da lide com o objetivo de trazer inúmeras vantagens, além de conceder uma maior autonomia aos litigantes.

Com base nesse instituto, as partes podem acordar sobre certos pontos durante o tramite judicial, ou até mesmo antes de ser instaurada a lide, como a eleição contratual de foro, já amplamente utilizada.

Ou seja, utilizando o negócio jurídico processual as partes poderiam determinar como as provas seriam produzidas, em que momento seriam produzidas, e até mesmo sobre quem recairia o ônus.

Citando mais uma vez as aulas da professora Ana Beatriz Presgrave, o maior empecilho em relação a utilização negócio jurídico processual no instituto probatório gira em torno da ideia de “propriedade” das provas.

No entender do professor Paulo Nasser, expressos em debate realizado na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, as provas são feitas para o juiz, ele quem deve ser convencido, portanto, ele tem todo o poder para determinar a produção de uma prova ou impedir que uma prova seja produzida ou utilizada.

Em que pese o Código de Processo Civil autorizar a determinação de provas de ofício caso o juiz assim entenda (artigo 370) o magistrado não deveria possuir tal poder.

Os maiores interessados são os litigantes, a faculdade de provar algum fato alegado é das partes. Uma prova inequívoca disso é a possibilidade de o réu apresentar contestação, ninguém é obrigado a se defender caso não queira. Além disso, caso o réu não se defenda e o autor não consiga comprovar o que alegou, nenhum efeito será suportado pela parte contrária.  

Dessa forma, as provas pertenceriam às partes. Se os litigantes tem o direito de empregar todos os meios legais para provar a verdade dos fatos, também deveriam ter o direito de abrir mão de uma prova.

O grande problema da determinação da produção de provas de ofício seria o benefício concedido a uma das partes, uma vez que se determine que a parte produza uma prova, esta estaria sendo beneficiada, pois deixou de cumprir de maneira voluntária com seu ônus, o que poderia acarretar na perda de sua pretensão por falta de prova. A partir desse momento, a parte contrária, que seria vencedora em relação a esse ponto em virtude de um lapso do outro litigante, será prejudicada, invertendo-se o resultado do processo.

Com um entendimento um pouco diferente, o professor Ricardo de Carvalho Aprigliano, defende a ideia de que, em uma determinação de produção de prova de ofício, o juiz não estaria tomando partido, além de nenhuma das partes ser prejudicada ou beneficiada. Para ele, no momento em que o juiz determina a produção da prova, ele não sabe qual o resultado desta, não há como saber qual das partes será beneficiada, portanto, isso não comprometeria a imparcialidade do juiz.

Ademais, conforme já mencionado, ele defende a ideia de que as provas pertencem ao processo, uma vez produzidas, as provas não são para o juiz, nem para as partes, mas sim para o processo, todos os envolvidos poderão se utilizar dela.

Contudo, baseando-se no que está disposto no Código de Processo Civil e no negócio jurídico processual, não há como dizer que a prova pertence ao processo ou ao juiz. Se as partes podem determinar como produzi-las, sobre quem recairia o ônus e até mesmo abrir mão da produção de uma prova, evidente que ela pertence às partes.

Podemos perceber, portanto, que o código se equivocou ao conceder certos poderes ao juiz permitindo a determinação de uma prova de ofício. Ao ter tal poder, o juiz vai contra o negócio jurídico processual, se a prova é das partes e elas decidem não produzi-la, o juiz não tem o direito de determinar que esta seja produzida, se as partes assim acordarem, é um direito delas.

Tal contradição em nosso dispositivo legal acaba por tornar o negócio jurídico processual um instituto incerto e inseguro. Embora as partes convencionem algo, isso poderá ser alterado de modo arbitrário baseando-se somente na vontade do juiz.

Conclusão

O Código de Processo Civil trouxe inúmeras inovações importantíssimas e muito vantajosas para o sistema judiciário brasileiro.

No entanto, muitas vezes os magistrados deixam de cumprir com tais disposições por não acreditarem na efetividade de tais institutos, ou simplesmente por não concordarem com o que foi previamente ajustado entre as partes.

O importante é fazer com que tanto as partes quanto os magistrados percebam que as mudanças são importantes e devem ser respeitadas, se institutos como o negócio jurídico processual não forem levados em conta, muitas estipulações feitas em contratos não serão respeitadas, o que acarretará uma enorme insegurança jurídica e, consequentemente, enormes prejuízos econômicos para as relações privadas.

Assim, evidente que a modernização do judiciário não só é importante para a evolução como fundamental para a subsistência do sistema.

Bibliografia:

BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. 3ª ed. Editora Saraiva, 2017, v. único.

LOURENÇO, Haroldo. Teoria Dinâmica do Ônus da Prova no nono CPC. 1ª ed. Grupo Editorial Nacional, 2015, v. único.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e Convicção de Acordo com o CPC de 2015. 3ª ed. Revista dos Tribunais, 2015, v. único.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. 2ª ed. Editora JusPODIVM, 2017, v. único.


[1] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, 2017, p. 685 e 686.

[2] BUENO, Cassio Scarpinella, 2017, p. 359.

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