Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense com Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência      

04/08/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

Este artigo tem por objetivo apresentar os fundamentos e normativas que culminaram na criação do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense com Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência, lançado virtualmente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ); Fundo das Nações Unidas para a Infância no Brasil (UNICEF no Brasil) e Childhood Brasil, no dia 15 de julho do ano corrente[1], bem como indicar as principais características deste Protocolo Brasileiro.

1. O reconhecimento da criança e do adolescente enquanto sujeitos de direitos e a trajetória entre a garantia e a efetivação do direito à manifestação em processos judiciais que lhes digam respeito

O direito da criança e do adolescente de se manifestar e nesta ocasião ser ouvido em condições adequadas ao seu grau de desenvolvimento em processos judiciais que lhes digam respeito, o que pode ocorrer, por exemplo, nas Varas de Direito de Família, nas Varas Especializadas de Crimes contra Crianças e Adolescentes e em Varas de Violência Doméstica, está diretamente ligado e é decorrente do reconhecimento da condição de sujeitos de direitos conferido a crianças e adolescentes, alcançado no Brasil com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 227 inaugurou a Doutrina da Proteção Integral conferida à criança e ao adolescente e, em seguida, com a  Promulgação da Lei nº 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente  e da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, e que foi promulgada no Brasil em 1990, via Decreto nº 99.710.           

A respeito deste direito à manifestação, a Convenção sobre os Direitos da Criança, em seu artigo 12, dispõe o que segue:

1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade da criança.

2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional (BRASIL, 1990).

No mesmo sentido, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao adotarem a Doutrina da Proteção Integral conferida a todas as crianças e adolescentes determinam a responsabilidade compartilhada entre Estado, família e sociedade na proteção contra violações de direitos e na promoção de direitos direcionados a estas pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

Nesta perspectiva, a Resolução nº 20/2005, produzida pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas - ECOSOC, a qual dispõe acerca de diretrizes para a justiça em assuntos envolvendo crianças vítimas ou testemunhas de crimes, dentre outras disposições reconhece a importância da participação das vítimas para a instauração de processos judiciais criminais penais, “em particular quando a criança vítima pode ser a única testemunha” (NOVA YORK, 2005), afirmando ainda que:

todas as crianças têm, segundo o direito processual nacional, o direito de expressar livremente, com as suas próprias palavras, os seus pontos de vista, opiniões, crenças, e contribuir especialmente para as decisões que afetam a sua vida, incluindo as tomadas em qualquer processo judicial, e ter esses pontos de vista levados em consideração de acordo com a sua capacidade, idade, maturidade intelectual e condição de desenvolvimento (NOVA YORK, 2005).

Além das normativas apresentadas acima, a Metodologia Depoimento sem Dano[2] foi imprescindível para que atualmente no Brasil a oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência seja realizada de modo a almejar diminuir ao máximo a revitimização, bem como para que a violência institucional seja reconhecida legalmente como violação decorrente de intervenções inadequadas durante a colheita de depoimento em sede judicial e, por fim, a construção do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense com Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência.

A  Recomendação nº 33, de 23 de novembro de 2010 do Conselho Nacional de Justiça recomenda aos tribunais a criação de serviços especializados para a escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais e relaciona estes serviços especializados ao Depoimento Especial, consistindo, em linhas gerais, na criação de sala separada da sala de audiências; comunicação por meio de pontos de áudio e vídeo e o procedimento de inquirição é realizado primeiramente pelo acolhimento do depoente e em seguida a tomada do depoimento (BRASIL, 2010).

Em 04 de abril foi promulgada a Lei nº 13.431, conhecida como “Lei do Depoimento Especial”, responsável por estabelecer o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, marco normativo para a obrigatoriedade da oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência em um ambiente e com protocolo de entrevista não revitimizantes, fundamentada nas normas já citadas neste artigo e regulamentada pelo Decreto nº 9.603/2018.

A lei em comento, em seu artigo 11, estabelece que “o Depoimento Especial será regido por protocolos e, sempre que possível, será realizado uma única vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado” (BRASIL, 2017).

Por fim, a Resolução nº 299, de 05 de dezembro de 2019, do Conselho Nacional de Justiça dispõe sobre o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, de que trata a Lei 13.431, de 4 de abril de 2017 e, em seu artigo 20, dispõe que “a tomada do depoimento deve seguir protocolo validado cientificamente, assegurando esclarecimentos iniciais, livre narrativa e questões complementares, cabendo ao magistrado zelar pela concordância do referido protocolo” (BRASIL, 2019) e a respeito da obrigatoriedade da implantação de salas de depoimentos especial em todas as comarcas do território nacional.

Assim, o Depoimento Especial se configura como um direito da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, sujeito de direitos e não mero objeto de provas na seara cível ou criminal do judiciário, devendo ter a sua disposição, obrigatoriamente, um protocolo de entrevista que busque diminuir ao máximo a revitimização decorrente do depoimento.

 

2. Breves considerações acerca do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense com Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência

O Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense com Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência, doravante Protocolo Brasileiro, determina o procedimento padrão a ser utilizado na ocasião da escuta em âmbito judicial, contendo os limites do entrevistador, que deve reconhecer o depoente na condição de ator central da oitiva, de modo a ser respeitado e considerado na sua integralidade, ou seja, na condição de sujeito de direitos e tendo a sua condição de ser humano em condição peculiar de desenvolvimento preservada, sendo a atuação do profissional pautada na proteção integral e almejando a mínima revitimização possível, tendo em vista que o momento da fala da vítima ou testemunha de violência é um direito e uma ocasião que almeja a sua proteção, não constituindo apenas na colheita de provas a ser utilizada no intuito de condenar o agressor.

O Protocolo Brasileiro foi lançado virtualmente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ); Fundo das Nações Unidas para a Infância no Brasil (UNICEF no Brasil) e Childhood Brasil,  em dia 15 de julho de 2020 e, conceitualmente, a entrevista forense de uma criança ou adolescente é “um método de coleta de informações sobre fatos relacionados a denúncias de abuso ou exposição a situações de violência” (PÖTTER, 2019, p.318-319).

A respeito do Protocolo Brasileiro, sua construção e aperfeiçoamento, PÖTTER afirma que:

O novo Protocolo Brasileiro é baseado no Protocolo de Entrevista Forense do NCAC (National Chindren’s Advocacy Center). Este novo Protocolo foi adaptado pela Childhood Brasil em conjunto com a Universidade Católica de Brasília, e, também com o Conselho Nacional de Justiça e a UNICEF. O Protocolo NCAC foi estudado e repassado por meio de cursos desde 2011; foi traduzido, revisado e adaptado por entrevistadores e formadores em Entrevista Forense. O projeto de testagem e validação do novo Protocolo foi coordenado pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e pela Childhood Brasil. São três as Universidades Brasileiras que estavam envolvidas no projeto como colaboradoras: a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Universidade de Brasília e a Universidade Frassinetti do Recife. Contaram com o apoio do Conselho Nacional de Justiça e três Tribunais de Justiça, dos Estados de Pernambuco, Rio Grande do Sul e do Distrito Federal e, ainda, o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (PÖTTER, 2019, p.323).

Importante ressaltar que a criança ou o adolescente tem o direito de permanecer em silêncio durante a oitiva judicial, o que deve ser observado e respeitado pelo profissional responsável pela colheita do depoimento. Todavia, “esta possibilidade não retira a obrigação do Estado de disponibilizar ao depoente condições para que este se sinta seguro e, na medida do possível, confortável para a fala a respeito da violência sofrida” (MORAIS, 2020), atendendo a todos os requisitos legais da tomada do Depoimento Especial.

Considerações Finais

O lançamento do Protocolo Brasileiro representa um momento significativo na efetivação do direito à manifestação, citado reiteradamente neste artigo, porém para que alcance o seu objetivo de modo pleno é necessário que as salas de depoimento especial estejam presentes em todas as comarcas do país, de acordo com as normativas vigentes, e que sejam realizados treinamentos sistemáticos para que os profissionais responsáveis pela oitiva estejam tecnicamente preparados para esta função.

Portanto, a realização do Depoimento Especial com observância total aos seus preceitos – apresentados neste artigo tanto ao analisar as normativas e boas práticas que tornaram possível e obrigatória a produção deste Protocolo Brasileiro quanto ao apresentar breves considerações a respeito do Protocolo em tela – é uma dívida histórica com as crianças e adolescentes que após sofrerem os mais diversos tipos de violência e violação de direitos aguardaram, amargamente, três décadas para ter ao seu alcance todos os instrumentos necessários para uma oitiva que fuja da regra adultocêntrica e considere absolutamente a criança e o adolescente enquanto sujeitos de direitos.

 

Notas e Referências

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

BRASIL, Convenção sobre os Direitos da Criança. Adotada em Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10120.html.

BRASIL, Decreto Presidencial nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018. Regulamenta a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

BRASIL, Lei nº 13.431, de 04 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

BRASIL, Recomendação do Conselho Nacional de Justiça nº 33, de 23 de novembro de 2010. Recomenda aos Tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais.

BRASIL, Resolução n° 229, de 05 de novembro de 2019. Dispõe sobre o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, de que trata a lei nº 13.431/2017.

MORAIS, Ana Radig Denne Lobão Morais. O depoimento especial judicial de crianças e adolescentes vítimas de violência com deficiência auditiva no Estado do Pará: comarcas de Belém, Ananindeua e Chaves. Dissertação de mestrado em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional do Centro Universitário do Estado do Pará – CESUPA, 2020.

PÖTTER, Luciane. Vitimização secundária infantojuvenil e violência sexual intrafamiliar: por uma política pública de redução de danos. 3.ed. rev. atual e ampl. Salvador, Juspodivm, 2019.

[1] O vídeo de lançamento do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense com Crianças e Adolescentes está disponível no Canal do YouTube do Conselho Nacional de Justiça no seguinte endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=pCNxog7mPro.

[2] Para mais informações sobre o Projeto Depoimento sem Dano, acessar: http://jij.tjrs.jus.br/cij.php?pagina=cij-depoimento-especial.

 

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