Proteção de Dados e Direito de Imagem no âmbito familiar: o caso dos Países Baixos

23/05/2020

Na sociedade da informação, o ouro não é mais amarelo ou preto (petróleo). Não é sequer físico ou tangível. O ouro da sociedade atual é incorpóreo, intangível e abstrato. Seu valor apenas pode ser estimado com o auxílio de sistemas computacionais (hardware) e de modelos matemáticos previamente desenvolvidos para determinada finalidade (algoritmos - software).

Quanto maior a base de dados, maior a capacidade de extrair informações úteis e cruciais para as empresas traçarem perfis virtuais da sociedade. Estes perfis são utilizados para marketing direto, mapear opiniões políticas, análise de crédito, mapear pessoas consideradas críticas para o Estado, dentre outras inúmeras finalidades.

Mas, afinal, o que são dados pessoais? Antes de responder a questão, deve-se atentar que dados não são informação; as informações são extraídas da análise a respeito do processamento dos dados. No sentido técnico, dado é toda a representação fenomenológica ocorrida no mundo. O mundo é permeado de dados; dados estes prontos para serem analisados e processados, de onde a informação será extraída.

Exemplo simples de ser compreendido ocorre com a linguagem. As letras do alfabeto e os sons de determinado idioma constituem, cada um deles, dados. Apenas a organização deles permitirá que uma pessoa possa se comunicar com outra de maneira satisfatória; essa organização das letras e sons é conhecida como linguagem. Assim, a linguagem é o resultado do processamento e análise de um conjunto de dados, os quais, uma vez estruturados e conhecidos, permitem a comunicação entre pessoas. A linguagem, por outro lado, é também um dado. Um dado constituído e formado através de centenas de outros dados.

Não existem idiomas iguais, a diferenciação entre um e outro está na organização e estruturação dos dados linguísticos de cada povo e região.

Desta mesma forma, afirma-se que não existem pessoas iguais. Cada pessoa é única e individualizável. Ainda que características físicas possam ser iguais (gêmeos univitelinos, por exemplo), a psique, o modo de pensar, o modo de andar e outras características serão sempre únicas. A pessoa é individualizada na sociedade através da estruturação de seus dados (toda e qualquer característica que ela apresente).

Dados pessoais são, portanto, toda característica que permita, ou possa permitir (dados identificáveis) a identificação de uma pessoa. Daí a questão da privacidade.

Se a possível a identificação de uma pessoa pelos seus dados pessoais, é imperioso que se proteja a pessoa da coleta e análise de seus dados pessoais de maneira indevida.

Não é por outra razão que cada vez mais os problemas decorrentes do vazamento da base de dados de empresas que implicam na possibilidade de identificação de transações comerciais, gostos pessoais, perfis virtuais, etc., de milhares de pessoas ao redor do mundo tenham ganhado tanto espaço na mídia e virado objeto de preocupação global[1].

A questão, agora, parece ter chegado ao direito de família. Essa semana, um Tribunal dos Países Baixos (tenho evitado a nomenclatura Holanda, na medida em que o Governo já manifestou publicamente que deseja abandonar essa nomenclatura[2]) determinou que uma avó excluísse fotos de sua neta das redes sociais, a pedido da nora[3].

Até aí nada demais. Há alguns anos – exemplo que uso de referência em sala de aula – uma jovem austríaca processou os pais por violação de privacidade porque eles se negaram a remover as fotos (mais de 500) dela criança, postadas por eles anos antes[4]. O Tribunal austríaco, sob o fundamento do direito de imagem, deu razão à jovem austríaca.

Em 2017, a mesma situação ocorreu na Itália, com o Tribunal de Roma aplicando multa de 9 mil euros se a mãe de uma adolescente não removesse as fotos de suas redes sociais. O fundamento foi a Lei de Direito Autoral, que determina que uma foto só pode ser publicada com a concordância da pessoa fotografada[5].

A situação na França mereceu, inclusive, tutela específica no Código Penal (art. 226-1), que estabelece multa de até 45 mil euros, além de prisão por até 1 (um) ano aos pais que se negarem a remover as fotos dos filhos das redes sociais, sob o fundamento de violação da intimidade e da vida privada.

O caso ocorrido nos Países Baixos, entretanto, merece um destaque especial, já que foi, ao que parece pela primeira vez, fundamentado na temática da proteção de dados pessoais e mais particularmente no Regulamento Europeu de Proteção de Dados.

O juiz da causa pontuou que embora o RGPD não se aplique ao tratamento de dados de situações puramente pessoais (e não profissionais), a sua inserção nas mídias sociais permitiria que essas plataformas compartilhassem dados com terceiros. Vale lembrar que não se aplica o RGPD aos dados voluntariamente tornados públicos. Em outras palavras, a avó foi condenada não por ter tornado pública a foto, mas sim porque ao assim fazê-lo em uma plataforma de mídia social, permitiu que os dados pessoais da neta pudessem ser coletados e tratados pela própria plataforma e por terceiros.

A questão, no Brasil, mereceria tratamento jurídico diverso. Isso porque a Lei Geral de Proteção de Dados prevê expressamente a aplicação da Lei aos dados tornados públicos pelo titular, ao contrário do Regulamento Europeu.

Assim, o art. 7º, §4º da LGPD estabelece que muito embora seja desnecessário o consentimento para a coleta e tratamento de dados pessoais tornados públicos pelo próprio titular, a ele ainda são garantidos os direitos e princípios previstos na legislação. Assim, o coração da Lei é inteiramente aplicável aos dados tornados públicos pelo titular.

Por esta razão, qualquer atividade de coleta e tratamento de dados pessoais (inclusive a atividade de enriquecimento de dados) que se utilizar de plataformas de mídias sociais deverá sim obedecer e seguir os princípios previstos na Lei, além de garantir os direitos ao titular, inclusive o direito de revogar o consentimento.

E isso tudo sem falar da tutela das crianças, que merece tratamento especial no seio da lei brasileira (e também europeia).

De qualquer modo, a avó, por aqui, não poderia ser acusada de violar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, já que a neta ainda estaria protegida nas redes sociais (sem mencionar que o dado, de qualquer forma, não foi tornado público pelo seu titular).

Isso não significa, contudo, que em situação análoga aos casos acima citados o direito brasileiro não tenha solução. Bastaria aqui a aplicação do instituto do direito a imagem, previsto na Constituição Federal e no Código Civil.

Não deixa de ser interessante, contudo, como o direito de família tem mudado ao longo das últimas décadas. Se até a segunda metade do século XX o direito de família admitia interferências mínimas (resquício do direito romano e feudal), agora cada vez mais o Estado passa a intervir, quando chamado.

Arturo Carlo Jemolo, estudioso italiano sobre o direito de família, chegou a afirmar nos anos 40’ que la famiglia è una isola che il mare del diritto deve solo lambire[6]. Agora, um século depois, a sociedade passa a exigir do Estado resposta para o problema do compartilhamento de fotos nas redes sociais.

Curioso notar, ainda, que a demanda parte de jovens, aparentemente mais preocupados com sua privacidade e com a exposição pública do que seus pais. Ao que parece, a privacidade não está em vias de extinção.

 

Notas e Referências

[1] Cite-se, aqui, o envolvimento do Facebook com a Cambridge Analytics a fim de mapear o cenário eleitoral norte-americano para beneficiar o presidente eleito, Donald Trump.

[2] Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2019/10/07/por-que-a-holanda-nao-quer-mais-que-o-mundo-a-chame-assim.htm. Acessado em 22.05.2020.

[3] Disponível em https://www.bbc.com/news/technology-52758787. Acessado em 22.05.2020.

[4] Disponível em https://www.telegraph.co.uk/news/2016/09/14/austrian-teenager-sues-parents-for-violating-privacy-with-childh/. Acessado em 22.05.2020.

[5] Disponível em https://www.repubblica.it/tecnologia/2018/01/08/news/multa_foto_figli_social-186077784/?refresh_ce. Acessado em 22.05.2020.

[6]Em tradução livre: “a família é uma ilha que o mar do direito deve apenas lamber”. In La famiglia e il diritto, in Annali del seminario giuridico dell'Università di Catania, II, nº 38, 1948.

 

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