Profanando a Súmula 533 do STJ: Pelo retorno da Igreja da Verdade Real!

06/11/2015

Por Gleucival Zeed Estevão - 06/11/2015

Pretendo, sem profundidade, demonstrar que o enunciado sumular de nº: 533, do STJ, interpretado literalmente, pode violar a Constituição Federal.

Diz a Súmula 533:

“Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado.”

O verbete acima transcrito aplica-se aos casos de reconhecimento de faltas disciplinares no âmbito da execução penal, porém, no presente texto, pretendo ficar restrito às indisciplinas de natureza grave, previstas no art. 50, da Lei de Execuções Penais.

A primeira vista o enunciado, por todos os ângulos, apresenta-se coerente com o texto da Carta da República, mas... as aparências enganam. Já que a Igreja da Verdade Real foi citada no título, das escrituras sagradas saco a seguinte passagem:

“Quando alguém ouve a mensagem do Reino e não a entende, o Maligno vem e arranca o que foi semeado em seu coração. Esse é o caso da semente que caiu à beira do caminho[1]” (Mateus 13:19)

De logo se vê que até a Bíblia ensina que é preciso interpretar os textos para alcançar a norma. Mudando o que deve ser mudado, segundo Lenio Streck[2], a norma que exsurge do texto da súmula em questão é produto da interpretação do texto no seu contexto. Logo, afirma Streck, a leitura do texto (do qual já exsurgiu uma norma) implicará, no momento seguinte, a adição do texto com seu contexto. A norma, que sempre estará ligada a um caso concreto, é produto desse somatório de elementos.

Pois bem. A fuga do apenado está elencada no art. 50[3], da LEP, como falta grave e, portanto, nos termos do parágrafo único, do art. 48[4], da mesma lei, atrai a competência judicial para a imposição de algumas sanções, como por exemplo, a regressão de regime (art. 118, I[5]) e a revogação de até 1/3 (um terço) dos dias remidos (art. 127[6]).

Assim sendo, a respeito da interpretação literal do verbete sumular, se a mensagem não for compreendida no contexto do caso concreto, podemos chegar à conclusão de que o juiz da execução penal somente estará autorizado a aplicar as sanções acima exemplificadas se, previamente, houver processo administrativo disciplinar, sob pena, dizem os defensores desta corrente, de violação ao princípio do devido processo legal.

Nesse ponto, como diz a Bíblia, é que o “Maligno” confunde o operador do direito. Explico:

O processo administrativo é de todo prescindível, pois o que a Constituição Federal assegura, como direito fundamental, é o devido processo legal. Assim, praticada uma conduta que, em tese, se amolda ao disposto no art. 50, da LEP, duas são as autoridades competentes para, cada uma no seu campo de atuação, apurar e julgar o fato, aplicando, consequentemente, as sanções previstas em lei.

A autoridade administrativa, após a devida apuração do fato, nos termos do art. 59[7], cabeça, da LEP, observando o devido processo legal e seus consectários no âmbito administrativo, aplica as punições constantes do rol do art. 53[8], da lei de regência; a autoridade judicial, por sua vez, após a apuração na forma do art. 194[9] e seguintes, também da LEP, igualmente assegurando o devido processo legal e seus consectários no âmbito judicial, aplica as sanções referidas no parágrafo único, do art. 48, de que é exemplo a regressão de regime de cumprimento de pena.

As instâncias judicial e administrativa são independentes, não havendo motivo, data vênia, para compreender que, sem o prévio processo administrativo, o juízo da execução penal não poderá agir, ou, ainda, que haverá violação ao contraditório e à ampla defesa em casos tais. A propósito do tema, cito o seguinte aresto do STF (em resumo):

[...] “1. A jurisprudência da Suprema Corte é pacífica no sentido da independência entre as instâncias cível, penal e administrativa, não havendo que se falar em violação dos princípios da presunção de inocência e do devido processo legal pela aplicação de sanção administrativa por descumprimento de dever funcional fixada em processo disciplinar legitimamente instaurado antes de finalizado o processo cível ou penal em que apurados os mesmo fatos. Precedentes. ” (RMS 28919 AgR, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 16/12/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-029 DIVULG 11-02-2015 PUBLIC 12-02-2015). Grifei.

Interpretando, contrário sensu, o julgado acima transcrito, verifico que o processo administrativo não depende do processo penal, pois as sanções são diversas em ambas as instâncias, como diversas são as consequências no âmbito da execução penal a depender de quem irá aplicá-las, isto é, se a autoridade administrativa (sanções do art. 53, LEP) ou a judicial (sanções referidas no parágrafo único, do art. 48, LEP). O importante é que, seja o juiz ou o Diretor da unidade, o responsável pela punição assegure o devido processo legal, sem depender uma instância da outra.

Nesse caminhar, considerando que, de regra, a conduta faltosa é praticada no interior da unidade, o legislador foi sábio ao prever que, em caso de falta grave (art. 50, LEP), a autoridade administrativa (apenas) representará ao juiz (art. 48, parágrafo único, LEP), valendo registrar que, nesse caso, basta que o fato configure falta em tese para que, por exemplo, com um simples ofício informando a fuga, se possa “startar” o devido processo legal em juízo.

Assim deve ser porque a representação independe de formalidades, conforme já decidiu o STF (HC nº: 92870). Destarte, por exemplo, aportada a comunicação da fuga, a apuração dos fatos, após a recaptura, se desenvolve nos termos do art. 194 e seguintes da lei de regência (sem esquecer, quando o caso, da aplicação do §2º[10], do art. 118), dispensando, até porque o juiz não está vinculado à conclusão administrativa, qualquer procedimento prévio oriundo do sistema prisional.

Ao agir dessa forma, considerando que ao foragido serão impostas, se o caso, tão somente as sanções relacionadas no art. 48, parágrafo único, da LEP, cuja competência para aplicação é exclusiva do juiz da Vara de Execuções Penais, já estará sendo assegurado ao recluso o devido processo legal, dispensando-se, portanto, para a atuação judicial, o exercício do poder sancionador administrativo (art. 47[11], LEP). Assim, é de se perguntar: ante a possibilidade de instrução em juízo, prevista no §1º[12], do art. 196, da LEP, qual seria a utilidade do PAD para os casos de fuga, por exemplo?

Com efeito, vejo que o processo administrativo deve ter a mesmíssima sorte do inquérito policial, isto é, para as hipóteses de falta disciplinar grave, no que se refere às “consequências judiciais” (por exemplo, a regressão de regime), o PAD é tão essencial para o início do procedimento judicial quanto o IPL para o da ação penal.

Entender de forma contrária, isto é, que a deflagração do procedimento judicial (art. 194 e seguintes) depende da prévia apuração administrativa, com a devida vênia, é malferir o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal (inafastabilidade da jurisdição). Somente é permitido ir a juízo após esgotada a via administrativa?

A súmula 533, data vênia, deve ser interpretada, portanto, no sentido de que a imprescindibilidade do processo administrativo destina-se apenas ao diretor do estabelecimento prisional, voltado, assim, para a imposição somente das sanções previstas no art. 53, da LEP. Ao juízo, por outro lado, não se impõe condicionantes para o reconhecimento de falta disciplinar grave e, por consequência, para a aplicação das “sanções judiciais”, desde que observado o devido processo legal em juízo.

A respeito do tema, cito aresto do STF:

“EMENTA Recurso ordinário em habeas corpus. Falta grave. Fuga. Pretendida nulidade do ato que reconheceu a prática da falta de natureza grave por ausência de procedimento administrativo disciplinar (PAD). Não ocorrência. Nulidade suprida na audiência de justificação. Oitiva do paciente em juízo, devidamente assistido por uma defensor e na presença do Ministério Público. Observância do preceitos constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, incisos LIV e LV). Finalidade essencial pretendida no procedimento administrativo disciplinar alcançada de forma satisfatória. Princípio da instrumentalidade das formas (art. 154 e 244 do CPC). Aplicabilidade. Recurso ao qual se nega provimento. (...)”(RHC 109847, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 22/11/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-231 DIVULG 05-12-2011 PUBLIC 06-12-2011). Grifei.

Do próprio STJ, cito o seguinte aresto:

“PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. INTERRUPÇÃO DE LAPSO TEMPORAL. LIVRAMENTO CONDICIONAL E COMUTAÇÃO DE PENA. EXCEÇÃO. DIAS REMIDOS. NOVA REDAÇÃO DO ART. 127 DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS. APLICAÇÃO RETROATIVA. ORDEM DENEGADA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO.

1. A competência para instauração do procedimento disciplinar para apuração da falta grave foi definida pela Lei de Execuções Penais em seu art. 195 que dispõe: "O procedimento judicial iniciar-se-á de ofício, a requerimento do Ministério Público, do interessado, de quem o represente, de seu cônjuge, parente ou descendente, mediante proposta do Conselho Penitenciário, ou, ainda, da autoridade administrativa." II. Ademais, a jurisprudência desta Corte já se posicionou no sentido de que o art. 118, § 2º, da LEP, sequer exige a instauração de Procedimento Administrativo Disciplinar para o reconhecimento de falta grave, bastando a realização de audiência de justificação, na qual sejam observadas a ampla defesa e o contraditório” (...) (HC 219.624/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 22/05/2012, DJe 28/05/2012). Grifei.

Assim sendo, o verbete 533, do STJ, como “boa semente” lançada no mundo jurídico, deve ser entendido de acordo com a Constituição, conforme nos ensina a “Parábola do Semeador”:

“E quanto à semente que caiu em boa terra, esse é o caso daquele que ouve a palavra e a entende, e dá uma colheita de cem, sessenta e trinta por um" (Mateus 13:24).

Destarte, embora o processo administrativo disciplinar possa servir de elemento de convicção, não deve ser tratado como requisito indispensável para iniciar o procedimento judicial previsto no art. 194 e seguintes, da LEP, sob pena de violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição.


Notas e Referências:

[1] Novo Testamento: Mateus capítulo 13, versículo 19. Disponível em: http://www.bibliaon.com/versiculo/mateus_13_19/ . Acessado em 29.10.2015.

[2] Streck, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica – 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 943.

[3] Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:

...

II - fugir;

[4] Art. 48. ...

Parágrafo único. Nas faltas graves, a autoridade representará ao Juiz da execução para os fins dos artigos 118, inciso I, 125, 127, 181, §§ 1º, letra d, e 2º desta Lei.

[5] Art. 118. A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado:

I - praticar fato definido como crime doloso ou falta grave;

[6] Art. 127.  Em caso de falta grave, o juiz poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido, observado o disposto no art. 57, recomeçando a contagem a partir da data da infração disciplinar.

[7] Art. 59. Praticada a falta disciplinar, deverá ser instaurado o procedimento para sua apuração, conforme regulamento, assegurado o direito de defesa.

[8] Art. 53. Constituem sanções disciplinares:

I - advertência verbal;

II - repreensão;

III - suspensão ou restrição de direitos (artigo 41, parágrafo único);

IV - isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam alojamento coletivo, observado o disposto no artigo 88 desta Lei.

V - inclusão no regime disciplinar diferenciado.

[9] Art. 194. O procedimento correspondente às situações previstas nesta Lei será judicial, desenvolvendo-se perante o Juízo da execução.

[10] Art. 118. A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado:

...

§ 2º Nas hipóteses do inciso I e do parágrafo anterior, deverá ser ouvido previamente o condenado.

[11] Art. 47. O poder disciplinar, na execução da pena privativa de liberdade, será exercido pela autoridade administrativa conforme as disposições regulamentares.

[12] Art. 196. A portaria ou petição será autuada ouvindo-se, em 3 (três) dias, o condenado e o Ministério Público, quando não figurem como requerentes da medida.

§ 1º Sendo desnecessária a produção de prova, o Juiz decidirá de plano, em igual prazo.


Gleucival Zeed Estevão

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Gleucival Zeed Estevão é juiz de direito substituto do Tribunal de Justiça de Rondônia e membro do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Estado de Rondônia - GMF; já ocupou o cargo de juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Pará.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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