Produção bibliográfica brasileira sobre a PNAISARI: reflexões sobre sua implementação e os desafios postos

09/07/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Fernando Albuquerque, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

No último texto que escrevi para esta coluna, abordei a normatização da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei (PNAISARI) no Brasil[1]. Um percurso que inicia com a publicação da Portaria Interministerial n. 1.426/2004, e culmina com as Portarias Consolidadas do Ministério da Saúde n. 2 (anexo XVII) e n. 6 (seção V, capítulo II), ambas de 2017. Trata-se de uma política pública nacional que prevê financiamento para o custeio de equipes de saúde e que têm como norte a prestação de cuidado prioritariamente para fora das unidades socioeducativas, como parte da Atenção Primária à Saúde.

Abro o presente texto com uma importante atualização que corrobora a curva decrescente do número de adolescentes e jovens inseridos nos sistemas socioeducativos. Seis anos após um silêncio institucional sobre o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) brasileiro, foram publicados dados a seu respeito pela Secretaria Nacional da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, através da então Coordenação Geral de Políticas Públicas Socioeducativas. O Levantamento Anual do SINASE mais recente aponta que havia 11.556 adolescentes e jovens, predominantemente negros (63,8%), inseridos nas 507 unidades socioeducativas do país. Deste total, 8.638 estão cumprindo medidas socioeducativas de internação, 213 em internação sanção e 1.637 em internação provisória (BRASIL, 2023). Cabe salientar que em 2018, eram 25.084 adolescentes e jovens selecionados, em sua maioria internados em unidades superlotadas e com estruturas precárias e insalubres, que produzem adoecimentos e sofrimentos das mais diversas ordens (ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2022).

Como direito fundamental que requer articulação intersetorial e abordagem multiprofissional, a garantia da saúde integral de adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais também foi objeto de regulamentação em outras importantes legislações domésticas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei n. 12.594/2012, que institui o SINASE. A respeito da amplitude da política, encontramos no referido Levantamento Anual do SINASE (2023, p. 33):

Na organização da atenção integral à saúde de adolescentes, a PNAISARI contempla o acompanhamento do seu crescimento e desenvolvimento físico e psicossocial; a saúde sexual e reprodutiva; a saúde bucal; a saúde mental; a prevenção ao uso de álcool e outras drogas; a prevenção e controle de agravos; a educação em saúde; e os direitos humanos, a promoção da cultura de paz e a prevenção de violências e assistência às vítimas (Brasil, 2014). Aqui destacamos a importância do cuidado com a saúde mental de adolescentes em torno dos seguintes aspectos: garantia do direito à saúde mental; promoção da saúde mental; prevenção de agravos à saúde mental; e promoção do desenvolvimento.

No texto anterior, também retomei o difícil cenário brasileiro nesse tema, que requer a sensibilização de gestores e habilitação de novos municípios, bem como a qualificação das equipes habilitadas na política (PERMINIO et al., 2018). Nesse sentido, sendo este um novo momento, especialmente no qual se avizinham importantes eleições municipais, procuro refletir sobre os desafios que envolvem o desconhecimento dos diversos atores do Sistema de Garantia de Direitos sobre a PNAISARI: sejam eles dos poderes executivos estaduais e municipais, do Sistema de Justiça, das entidades de ensino, dos Conselhos de Direitos etc. Optei por realizar um breve levantamento bibliográfico, através da revisão sistemática de literatura, com a intenção de trazer à tona o conhecimento produzido sobre o tema nas produções científicas publicadas no Brasil.

Os estudos foram levantados em duas plataformas que reúnem trabalhos de pesquisadoras e pesquisadores latino-americanos, o Scientific Electronic Library Online - SciELO (multidisciplinar) e o Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde - Lilacs (ciências da saúde). Para chegar aos trabalhos científicos, recorri como descritor o nome da política, em sua sigla e por extenso, de modo que levantei a cinco produções científicas datadas entre 2010 e 2022. Optei por não delimitar a busca no tempo, com a intenção de compreender o ano das primeiras publicações.

No SciELO, identifiquei dois artigos que abordam a implementação dessa política (PERMINIO et al., 2018; PERMINIO, SILVA e RAGGIO, 2022); no Lilacs, cheguei a três artigos e duas dissertações de mestrado, sendo que dois desses artigos já haviam sido identificados através do SciELO (VILAS BOAS, CARVALHO, CUNHA, 2010). As dissertações tratam dos seguintes contextos: a) realidade do estado do Rio de Janeiro a partir da Economia Política Marxista (OLIVEIRA, 2022); e b) narrativas do Estado sobre a saúde de jovens que cumprem medidas socioeducativas de internação (SILVEIRA, 2017).

Sobre o lócus de atuação e a formação dos autores, trata-se de trabalhos de profissionais das ciências da saúde e ciências humanas, como medicina e psicologia. Oportuno sinalizar que os artigos são publicações de profissionais atuantes na Coordenação Geral de Saúde de Adolescentes e Jovens do Ministério da Saúde e na Fundação Oswaldo Cruz. As dissertações foram apresentadas no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. As abordagens multiprofissionais sinalizam perspectiva que deve necessariamente perfazer a referida política, inclusive no âmbito do seu monitoramento e avaliação.

Nesse sentido, lanço algumas breves considerações relevantes para a compreensão da PNAISARI através das produções científicas selecionadas. Os textos refletem sobre a responsabilidade dos municípios no tocante ao público inserido nas unidades socioeducativas, de modo que a atual regulamentação da política reforça o princípio da incompletude institucional e a intersetorialidade no âmbito do SINASE, e ainda, aponta para a necessidade de “modelos de governança horizontais e dialogados” (PERMINIO, SILVA e RAGGIO, 2022, p. 1246). Por outro lado, esse cenário de descentralização aponta para desafios no entorno das relações entre Secretarias de Saúde estaduais e municipais, de modo que requer maiores interlocuções entre gestores (OLIVEIRA, 2022).

No tocante à abordagem teórica e o método adotado, uma das dissertações de mestrado se orienta pela Economia Política Marxista para refletir sobre a PNAISARI como uma política social que encontra a contradição entre a corresponsabilização do estado e o histórico de violações de direitos de adolescentes e jovens vivenciado desde as suas infâncias:

Essa realidade social inverte a lógica e marca o Estado como o agente em “conflito com a lei”, uma vez que não cumpre na totalidade as prerrogativas constitucionais que garantem a proteção integral de crianças e adolescentes. Portanto, o movimento é relacional e contraditório entre a garantia e a violação de direitos. (OLIVEIRA, 2022, p. 81)

Fala-se também no impacto da ideologia neoliberal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e dos determinantes sociais da saúde como elementos estruturais para incidência na PNAISARI. Neste quesito, a segunda dissertação aborda as compreensões sobre os jovens em conflito com a lei, através de narrativas que vocalizam periculosidade e delinquência, especialmente quando se trata de demandas de saúde mental, em contraponto a perspectivas mais protetivas, alicerçadas na Constituição Federal, no ECA, no SUS e na doutrina da proteção integral, que, embora partam da escuta, também “imputam aos jovens pouca, ou quase nenhuma, agencia sobre aquilo que os acometem” (SILVEIRA, 2017, p. 80). E continua, sobre todas essas narrativas:

Apesar de apresentarem três diferentes perspectivas sobre a transgressão da lei, nenhuma coloca em questão a agencia do jovem sobre si mesmo. Portanto, de maneira análoga a não participação do jovem na compreensão do fenômeno da transgressão, o mesmo também não é convocado para o debate sobre a sua própria saúde em um momento de privação de liberdade. (SILVEIRA, 2017, p. 80)

Com isso, há uma reivindicação posta para a escuta concreta das demandas de saúde dos adolescentes e jovens, através das narrativas dos mesmos e de suas perspectivas sobre viver e sobreviver. Outrossim, ora ancoradas em versões oficiais sobre saúde, as ações no âmbito da PNAISARI ficam à mercê de mudanças nos governos, em especial num cenário em que horizontes menoristas nunca foram efetivamente superados (SILVEIRA, 2017). Ademais, é sinalizada a importância de instâncias colegiadas que garantam participação e intersetorialidade, a exemplo do Grupo de Trabalho da política e do Colegiado Gestor do SINASE (PERMINIO et al., 2018).

Esse pequeno exercício carrega em si a fragilidade de não corresponder ao cenário mais amplo de publicações, posto que há ciência de outros trabalhos sobre o tema não inseridos nas duas plataformas recorridas, mas igualmente relevantes. De todo modo, é possível sinalizar que há um contexto a ser investigado com maior profundidade e que requer o olhar das entidades de ensino e pesquisa, bem como maior investimento e interlocuções com organizações da sociedade civil, com foco no enfrentamento aos estigmas e discriminações que culminam na negação do acesso à saúde integral (SILVEIRA, 2017; PERMINIO et al., 2018). Também não foi o objetivo desse breve texto abordar os trabalhos selecionados em sua totalidade, mas convidar à leitura.

Concluo refletindo que a produção acadêmica sobre o tema no Brasil requer um olhar mais direcionado, que possa incidir sobre o desconhecimento geral sobre a PNAISARI e, de outro modo, corroborar a divulgação do conhecimento produzido no tema. O texto de 2010 trata os desafios postos nesse campo e algumas ações possíveis, como o mapeamento e a articulação em rede (VILAS BOAS, CARVALHO, CUNHA, 2010). É preciso, portanto, a implicação e apropriação dos atores do SGD, em especial nos estados nos quais não há municípios habilitados na política.

 

Notas e referências:

ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. A queda das internações de adolescentes a quem se atribui ato infracional. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/23-anuario-2022-a-queda-das-internacoes-de-adolescentes-a-quem-se-atribui-ato-infracional.pdf. Acesso em 04 de julho de 2024.

BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Levantamento Nacional de dados do SINASE - 2023. Brasília: Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 2023.

OLIVEIRA, D. C. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Adolescente em Conflito com a Lei (PNAISARI) no Estado do Rio de Janeiro: um estudo exploratório das contribuições da Economia Política Marxista na compreensão do Estado e das políticas de saúde no século XXI. 2022. 90 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva). Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.

PERMINIO, H. B.; SILVA, J. P. A. B. da; RAGGIO, A. M. B. Validação do modelo lógico da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Atendimento Socioeducativo (Pnaisari). Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, p. 1237-1248, 2022.

PERMINIO, H. B.; SILVA, J. R. M.; SERRA, A. L. L.; OLIVEIRA, B. G.; MORAIS, C. M. A. de; SILVA, J. P. A. B. da; FRANCO NETO, T. de L. do. Política Nacional de Atenção Integral a Saúde de Adolescentes Privados de Liberdade: uma análise de sua implementação. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, p. 2859-2868, 2018.

SILVEIRA, M. D. Políticas de Saúde e Jovens Infratores: uma análise de narrativas. 2017. 92 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas e Saúde; Epidemiologia; Política, Planejamento e Administração em Saúde; Administra). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

VILAS BOAS, C. C.; CARVALHO, R.; CUNHA, C. F. Por uma política efetiva de atenção integral à saúde do adolescente em conflito com a lei privado de liberdade. Revista Médica de Minas Gerais, v. 20, p. 225-233, 2010.

[1] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/saude-e-sistema-socioeducativo-um-panorama-da-normatizacao-da-pnaisari-no-brasil.

 

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