PROCESSOS ESTRUTURAIS COMO MECANISMO DE ACESSO À JUSTIÇA E A DIREITOS FUNDAMENTAIS    

12/12/2021

Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

O atual cenário de desenvolvimento dos estudos processuais e de instrumentos de acesso à justiça carrega um interessante fator, que é a preocupação com a aproximação destes instrumentos com seus propósitos constitucionais e com a realidade social dos cidadãos aos quais o processo se direciona, sendo indissociável a prática do direito processual com os valores constitucionais, devidamente inseridos no contexto social adequado.

A partir da constatação de que, com a evolução da sociedade, evolui também a complexidade dos problemas enfrentados por ela, se percebe que os instrumentos processuais e de alguns conceitos trabalhados com significativa rigidez já não mais se mostram suficientes à construção de respostas a problemas complexos, em especial quando consideradas as coletividades envolvidas nestes problemas.

Diante deste cenário, se propõe o enfrentamento ao seguinte problema de pesquisa: os processos estruturais devem ser tomados como a melhor forma de assegurar direitos e garantias fundamentais, em especial em conflitos de alta complexidade? E, mais importante, quais são as transformações necessárias à mudança de posicionamento e mentalidade social para implementar essas conversões?

Para responder essas questões, urge analisar critérios de acesso à justiça, e como conciliar os instrumentos pensados através dos processos estruturais para definir uma maneira de construir respostas mais efetivas a conflitos de alta complexidade, considerando as transformações necessárias à implementação destas medidas.

Importante perceber que o conceito de acesso à justiça aqui trabalhado é muito mais amplo do que a mera possibilidade de eventual sujeito intentar ação judicial, acionando o Poder Judiciário para obter respostas a suas demandas. Trata-se de uma abordagem muito mais abrangente, devendo ser considerado “como o requisito fundamental – mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos” (CAPPELLETTI; GARTH, 2015, p. 12).

Tudo isto demonstra a necessidade de rompimento com o raciocínio oitocentista de valorização de direitos individualistas como o direito à propriedade privada e à liberdade, o que faria com que o processo estivesse restrito apenas e tão somente às partes litigantes. Porém, sabemos que estes não são os únicos conflitos enfrentados pelos sujeitos de uma sociedade complexa, repleta de conflitos sociais de caráter metaindividual.

Uma nova forma de pensar os litígios de matriz coletiva, como a aqui exposta, deve considerar que “as formas de solução desses conflitos existentes, quanto mesmo pensar em como se pode repará-los e ao mesmo tempo reprimir o causador dos danos é algo que perpassa qualquer teoria que se digne a querer explicar o processo coletivo”. (JOBIM, 2018, p. 41).

O cenário da prática processual na realidade brasileira é algo que precisa ser detidamente analisado ao longo desta pesquisa. Neste sentido, muito se percorreu através de reformas da legislação processual, especialmente com o Código de Processo Civil de 2015, reconhecido por tratar de maneira especial, entre outras matérias, da efetividade da execução da decisão judicial, o que seria uma consequência direta da preocupação com a razoável duração do processo e o fornecimento de respostas efetivas ao jurisdicionado.

Porém, ainda que se considerem estas inovações, a legislação processual atual se demonstra profundamente ligada ao individualismo que guiava um cenário político-social que não mais se assemelha ao cenário atual. A consequência direta deste paradigma é inegável: a lógica processual clássica se mostra imprestável à resolução dos problemas de alta complexidade da sociedade atual.

Além disto, considerando que o atual cenário da pandemia de COVID/19, que assola o planeta inteiro desde o ano de 2020, trouxe problemáticas que foram judicializadas envolvendo os mais diversos e complexos aspectos da construção da sociedade, como fornecimentos de medicamentos, necessidade de construção de leitos de UTI, aquisição de respiradores, decretos de lockdown, prioridades para vacinação e a própria forma que o dinheiro público é destinado à construção de políticas de públicas que assegurem o direito à saúde e trabalho, entre os mais diversos assuntos.

O processo se torna, então, a própria garantia de participação na arena democrática, uma vez que é apenas através da observância das normas processuais que é possível fruir das liberdades inerentes ao exercício da cidadania. Fornecendo maior substrato constitucional aos instrumentos processuais previstos em nosso ordenamento jurídico, consequentemente se fornecerá à sociedade como um todo mais oportunidades de acesso à justiça, aumentando ainda mais a capacidade do Poder Público.

Portanto, a latente e tão importante aproximação das normas processuais com os valores constitucionais apenas demonstra a necessidade de aproximação das discussões tomadas no âmbito do processo e suas problemáticas com a realidade social experimentada pelos cidadãos que se socorrem destas normas para efetivarem seus direitos junto ao Poder Judiciário.

O cenário da prática processual na realidade brasileira é algo que precisa ser detidamente analisado ao longo desta pesquisa. Sob essa ótica, muito se percorreu através de reformas da legislação processual, culminando com o Código de Processo Civil de 2015, reconhecido por tratar de maneira especial, entre outras matérias, da efetividade da execução da decisão judicial. Portanto, é necessário que falemos em romper com ideias tradicionais.

Em sua concepção clássica, o processo, em especial o processo civil, foi pensado para solucionar problemáticas que envolvem discussões apenas entre dois indivíduos, ou mesmo pouco mais do que isso. O que se vê com clareza é que, nesta acepção clássica de processo, o que se busca defender são apenas os interesses individuais próprios daqueles que litigam, os quais estão envolvidos na lide específica.

Isto demonstra um cenário de crise no modelo individualista: o excesso de demandas repetitivas pode inclusive ser capaz de colapsar inteiramente o sistema em que o Poder Judiciário está inserido. Ainda que o CPC de 2015 tenha se preocupado com a técnica de recursos repetitivos, lhe dando especial atenção como inovação no sistema brasileiro, a inovação não foi suficiente para abarcar todas as deficiências da realidade social brasileira. Tudo isto está diretamente ligado à capacidade deste sistema de fornecer aos seus litigantes o acesso à justiça efetivo.

Há ainda sobre este modelo a influência do cunho patrimonialista das discussões bipolarizadas, em que apenas uma decisão que condene a parte vencida a pagar quantias já seriam suficientes para que a disputa fosse resolvida. É certo que se percebe alta preocupação com valores como a propriedade privada e a liberdade, consequentemente desconsiderando a possibilidade de, em demandas judiciais, se discutirem interesses metaindividuais.

O que se precisa ter em foco é que os moldes tradicionais dos estudos processuais poderiam até ser adequados, em um momento da sociedade em que os conflitos eram mais simples, assim como a própria sociedade. À medida que a sociedade vai se tornando mais complexa, seus conflitos tomam o mesmo rumo, e os instrumentos fornecidos pelo direito processual, que outrora se mostravam suficientes, não mais são capazes de fornecerem respostas adequadas e que considerem a riqueza de detalhes necessária à construção de resolução de demandas de mais intrincado enredamento.

Para construir respostas de maior efetividade, é possível buscar instrumentos a partir dos processos estruturais, que são capazes de buscar a resolução das causas dos problemas estruturais, e não apenas das consequências, como ações declaratórias ou indenizatórias, que podem inclusive criar ou exacerbar problemas já existentes. Quando se trata de grandes estruturas que estão viciadas, é preciso construir uma ampla arena de debate público, em que serão construídas em conjunto as soluções necessárias a tais problemas.

Com isso, o estudo dos processos estruturais trata-se sobretudo de um novo gênero de processo constitucional, disposto a consolidar garantias fundamentais tais como acesso à justiça através da gestão de conflitos realizada de maneira adequada, visando sempre respeitar os ditames do Estado Democrático de Direito, combatendo com efetividade tudo aquilo que for prejudicial e potencial ao surgimento de violações graves, através de normas mais flexíveis e conceitos mais abertos. Dessa forma, o sentido em si de busca da reestruturação de instituições eivadas de burocracias e estruturas que facilitem a afronta a direitos é vigorosamente o que se busca através do texto constitucional.

Após o reconhecimento da limitação dos institutos tradicionais do processo, é necessário tecer algumas diretrizes para que possamos alcançar uma prática processual mais rica, capaz de fornecer instrumentos aptos a construir respostas mais efetivas, duradouras e substanciais.

Os processos estruturais, ainda que não se limitem à tutela coletiva, estão necessariamente ligados a ela, tanto pela amplitude das decisões tomadas a partir de sua lógica quanto pela natureza de seus litígios.

Importante salientar que a métrica dos processos estruturais não está limitada à seara dos processos coletivos. É possível que processos com características mormente não-estruturais utilizem de técnicas dos processos estruturais para que se possa resolver aspectos pontuais de suas demandas. É possível encontrar estas características estruturais em demandas ambientas, em processos penais, e o exemplo mais didaticamente utilizado, que são as ações de recuperação judicial de pessoas jurídicas.

É possível encontrar características comuns aos processos estruturais até mesmo em processos tributários, ainda que de maneira excepcional. Ainda que marcada pelo individualismo, a seara tributária pode se beneficiar de práticas estruturais, em especial quanto ao incentivo ao diálogo e à execução diferenciada.

Desta ocupação decorre a postura ativista do Poder Judiciário. Neste cenário, o juiz deixa de ter a postura silenciosa e passiva de “legislador negativo” e passa a participar do processo criativo do direito e da norma. Esta atuação expansiva do Judiciário se justifica pela função constitucional de proteção de direitos e garantias fundamentais, além das regras do jogo democrático, de maneira que, por vezes, é demandado do Judiciário atuar desta maneira. Trata-se de uma importante ligação entre a atuação do julgador e seu dever de guarda dos valores previstos pelo texto constitucional.

Para construir uma teoria dos processos estruturais sólida e que seja capaz de responder às problemáticas trazidos por seus críticos, podemos pensar em uma conceituação para litígios estruturais. Importante frisar que não se trata de conceituação estanque, uma vez que o cerne do conceito é fluido, mas sim de linhas gerais traçadas com o objetivo de aclarar a noção geral de processo estrutural.

Ao romper com o estado de coisas inconstitucional, o que se busca é a transição até o estado de coisas ideal, compatível com os valores contidos no texto constitucional. A partir desta constatação, é que se inicia a busca por instrumentos processuais aptos a construir respostas compatíveis com a complexidade dos litígios enfrentados pela sociedade, desenhando assim um planejamento de reestruturação.

Inicialmente, o ponto de partida aqui considerado é a teoria de processos estruturais pensada por Owen Fins e Abraham Chayes entre as décadas de 50 e 60 na doutrina estadunidense.

Neste cenário, vários julgados emblemáticos envolvendo questões raciais foram emitidos. Tratava-se de uma realidade em que a discriminação racial era chancelada pelo próprio Estado, que justificava a segregação racial de inúmeras formas. A Suprema Corte estadunidense se deparou então com a necessidade de superar os seus próprios precedentes, pondo em prática a técnica de overruling, visando reconstruir (ou descontruir) suas próprias raízes ideológicas, culturais e políticas.

A noção que necessitava de superação, ao ver da Suprema Corte norte-americana à época, em 1896, era o estabelecido no julgamento do caso Plessy v. Ferguson, em que foi instituída a máxima dos “separados mas iguais” (separate but equal), surgida através da situação vivida por Homer Plessy em 1892, que se recusou a se sentar em um vagão de trem exclusivo para negros, alegando que isto seria uma violação de seus direitos fundamentais.

Ao julgar o caso, a Suprema Corte estadunidense entendeu que a distinção de vagões em trens não se configurava como discriminação racial, mas apenas uma distinção legal entre negros e brancos, pois ambos estariam sujeitos às mesmas limitações.

Mais de cinquenta anos após o julgamento de Plessy v. Ferguson, a questão racial voltou a ser discutida junto à Suprema Corte estadunidense no julgamento de Brown v. Board of Education of Topeka. O estado de Kansas possuía legislação que permitia que cidades com mais de 15.000 habitantes pudessem escolher entre a existência de escolas segregadas ou escolas únicas. A cidade de Topeka escolheu, então, pelo sistema de segregação de escolas com base em critérios raciais. (AASENG, 1994, p. 39).

Os pais de Linda Brown (1943-2018), à época em idade escolar, tentaram matriculá-la em instituição de ensino no entorno de sua residência, e tiveram seu pleito de matrícula da criança negado devido ao fato de serem negros, uma vez que a escola em que tentaram matriculá-la só aceitava crianças brancas. Ainda em 1951, a família de Linda Brown levou a discussão ao Poder Judiciário, em face da Board of Education of Topeka, objetivando a matrícula da criança.

Decerto que apenas uma decisão judicial não seria capaz de reformular completamente um sistema político, social e jurídico cujas raízes eram (e ainda são) cravadas na segregação e discriminação racial, tanto que o tema é capaz de gerar atualíssimos debates, como pudemos presenciar recentemente em protestos realizados pelo movimento ativista internacional Black Lives Matter, visando combater a violência policial contra negros nas mais variadas localidades dos Estados Unidos da América.

A decisão obtida neste primeiro momento de Brown v. Board of Education foi emblemática também no sentido de demonstrar aos movimentos de defesa dos direitos civis de que seria possível obter respostas através da litigância, buscando respostas junto ao Poder Judiciário. Por outro lado, foi possível perceber também um certo movimento de backlash, ou de resistência dos supremacistas brancos, que reagiram à decisão da Corte, considerando-a um “ato de tirania” (KLARMAN, 2005, p. 185).

Por motivos claros, o simples pronunciamento judicial vinculado ao caso concreto não foi capaz de implementar todas as mudanças necessárias à extinção da segregação racial. Os casos que foram judicializados após Brown v. Board of Education suscitaram inconformidade por parte da sociedade, o que fez com que o caso novamente fosse levado ao julgamento na Suprema Corte estadunidense em 1955, o que conhecemos como Brown II.

É justamente a partir do julgado de Brown II que a discussão se intensifica, onde se ultrapassa a mera declaração judicial de Brown I e se passa a discutir a metodologia da aplicação do entendimento do pronunciamento judicial, e mormente reconstruir toda uma sistemática social, superando entendimentos que não mais se mostravam adequados aos preceitos contidos na Constituição estadunidense.

É possível perceber a clara preocupação dos juízes em verdadeiramente traçar um caminho a ser construído, ou seja, de fato reestruturar estruturas que confrontavam diretamente direitos fundamentais, considerando que a educação é um dos direitos fundamentais sociais de mais profunda importância.

É importante ter um certo grau de cautela ao afirmarmos que as decisões emanadas em Brown I e Brown II tenham sido decisões estruturais, e que tais processos tenham sido processos estruturais. Até porque, por mais demorada que fosse a implementação das fases previstas no planejamento de reestruturação, para que o caso Brown pudesse ser considerado um processo estrutural completo e bem sucedido, seria necessário entender que, através dele, teria se encerrado a discriminação racial na realidade estadunidense, o que não é verdadeiro.

O que importa percebermos é que, apesar de seu importante significado histórico, em Brown I, tivemos uma decisão standard, ou uma decisão que posteriormente determinaria um padrão decisório que as próximas decisões em cascata, advindas em Brown II, passariam a perseguir. A decisão principal limitou-se a declarar a inconstitucionalidade da segregação racial. A forma com que a segregação racial passaria a ser progressivamente remediada seria discutida em outro momento. 

Foi a partir deste cenário que Owen Fiss, professor da Universidade de Yale, passou a abordar o conceito de uma nova forma de adjudication, por ele designada como structural reform.

Além de Owen Fiss, seu contemporâneo Abraham Chayes também foi de enorme valia ao estudo dos processos estruturais, ao perceber o rompimento com a lógica bipolarizada e individual do processo tradicional. Em clássico ensaio sobre o tema, o autor explana especificamente as características que diferem os litígios estruturais, por ele denominados civil adjudication, dos litígios guiados pela teoria clássica.

As características por ele apontadas revelam uma faceta de obsolescência e déficit dos conceitos previstos concepção tradicional de lide. Isso faz com que a própria atuação judicial seja diferenciada, de maneira que, nas lides tradicionais, a atuação do julgador é deveras limitada.

Já no que Chayes conceitua como public law model, a estrutura é completamente diferenciada, de maneira que é possível perceber na forma com que a participação dos sujeitos interessados na resolução do conflito se desenha é definida, de maneira muito mais proativa, dialogada e repensada.

Portanto, nos vemos diante de uma necessidade de fortalecer o estudo do direito constitucional em seu viés mais palpável, mais prático. Chamá-las de decisões como decisões estruturais se justifica pelo fato de que a intervenção judicial se ocupará de providenciar e fiscalizar práticas que sejam capazes de recriar toda a estrutura das instituições públicas ou mesmo de instituições privadas, que estejam sob supervisão do Poder Público no sentido de serem capazes de causar afronta a garantias constitucionais.

Para que isso seja construído, é necessário rever também a forma como o julgador e as partes exercerão seus papeis. O julgador deixará de ser um espectador distante e passará a se envolver com a demanda de maneira mais proativa, provocando diligências que sejam determinantes para a efetivação dos direitos fundamentais.

Assim, tratar esses conflitos como conflitos que podem ser resolvidos a partir da ótica tradicional do processo é uma atitude limitada e problemática, e ainda mais grave, atitude incapaz de fornecer soluções capazes de resolver as problemáticas desde o seu cerne. Se as razões dos problemas não são resolvidos adequadamente, é evidente que os problemas seguirão acontecendo, de maneiras diferenciadas, mas em semelhança quanto a suas características principais.

Ao falhar em reestruturar essas estruturas problemáticas, incorre-se em graves violações de direitos fundamentais e também violação de acesso à justiça, considerando que as respostas jurisdicionais serão construídas de maneira superficial e ineficaz.

Para além da busca pela reformulação das instituições públicas, os processos estruturais têm por objetivo principal reconstruir inteiramente as fundações de entes e organizações problemáticos, sejam estes públicos ou não, que estejam em estado de desconformidade com o estado ideal de coisas ou estado de coisas inconstitucional. Na busca pela efetivação de direitos e garantias fundamentais, é possível também formular políticas públicas através da intervenção judicial, atribuindo ao Poder Judiciário posição de protagnonismo.

Para romper com o estado de coisas inconstitucional em busca do estado de coisas ideal, é necessário agir de acordo com os princípios necessários à condução de processos estruturais, sendo os principais a flexibilização do procedimento, com o cumprimento em cascata das decisões proferidas.

É urgente e necessário pautar a resolução de coflitos de alta complexidade pela técnica dos processos estruturais que, mesmo que apresente algumas deficiências, ainda assim se mostra como a forma mais adequada de construir decisões de caráter plural, com ampla participação popular, através de instrumentos processuais flexíveis que possibilitem o diálogo e o consenso. A multipolaridades destes conflitos demanda a participação em massa de todos os entes envolvidos na resolução da demanda, ainda que isto seja custoso ou intrincado, pois, no futuro, soluções efetivas serão fornecidas à sociedade.

Isto tudo é capaz de demonstrar que todas as especificidades da demanda estrutural devem ser consideradas no sentido de flexibilização procedimental, como forma última de demonstração da inadequação das regras estanques do processo tradicional e individualista, mostrando-se inclusive desnecessárias as mudanças na legislação procedimental que visem engessar o procedimento dos processos estruturais.

Apesar de todos os argumentos trazidos até aqui, dentre uma série de outros, mostrarem os processos estruturais como uma empolgante inovação em termos de instrumentalização do acesso à justiça e construção de decisões mais efetivas, ainda se trata de ideia passível de críticas severas.

A maioria destas críticas se fundamenta em alegações de ativismo judicial exacerbado, possibilitando que o magistrado performe funções típicas do Poder Executivo, afronta ao princípio constitucional da separação de poderes e, consequentemente, a ausência de legitimidade democrática do Poder Judiciário para tal atuação e a ausência de accountability judicial. Importante nos atermos aos motivos destas críticas, respondendo-as, para que os estudos sobre processos estruturais possam ser fortalecidos.

Quanto às alegações de que o Poder Judiciário estaria se imiscuindo em funções próprias de outros poderes, é perceptível que esta atuação só ocorre quando existem lacunas deixadas pela omissão de outros poderes, por vezes sendo confundido inclusive como descuido dos administradores públicos. A partir desse cenário, é possível, excepcionalmente, admitir a intervenção do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas, sendo possível apenas porque “esta concepção só é permitida num ambiente constitucional como o atual, após 1988, no qual se observa uma noção menos rígida da divisão de Poderes” (NOGUEIRA, GUEDES, 2019, p. 3).

A crítica mais contundente sem dúvidas é a de que a atuação judicial em processos estruturais seria contrária ao art. 2º[1] da Constituição da República, o que geraria consequentemente as críticas relacionadas à ativismo judicial. O cerne do pensamento é a garantia de independência  e liberdade política entre os membros que exercem funções distintas dentro do Poder Público, devendo ser resguardada a harmonia entre tais poderes.

O que importa afirmar quanto a esta questão específica é que não existe garantia maior de responsabilização por tomada de decisões quanto aos membros dos demais poderes quando comparados aos membros do Poder Judiciário. Inclusive, a própria legislação se ocupa disso, a seguir a inovação trazida pelo art. 20[2] da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, e em consequência do art. 5º[3], XXXV da Constituição da República, que determina que os gestores públicos devem, obrigatoriamente, considerar as consequências práticas de suas decisões ao exará-las, pois a “administração pública é atividade de quem não é dono (...) pois o titular dos interesses geridos é sempre o povo, a coletividade em seu conjunto, apenas representada pelo Estado” (DALLARI, 2005, p. 1).

Asseveramos que aqui não se defenda a atuação indiscriminada do Poder Judiciário, mas sim uma atuação dialogada e uma revisitação da severidade do princípio da separação dos poderes como argumento raso e único para limitação da atuação jurisdicional frente a situações de graves ofensas a direitos e garantias fundamentais.

É por isto que é necessário “pensar fora da caixa” (MARMELSTEIN, 2018, p. 19). Flexibilizar a forma com que pensamos a separação de poderes faz parte do processo transformativo que a sociedade deve enfrentar para que seja possível fornecer à sociedade respostas que acompanhem a complexidade de seus conflitos. A lógica do processo estrutural possibilita justamente isso, pensando os instrumentos sociais e processuais e a postura dos envolvidos nas demandas de alta complexidade a partir de novos elementos norteadores, como o diálogo institucional, a negociação, a flexibilização procedimental e a policentria.

A intervenção judicial na área de políticas públicas vem sido debatida pela doutrina especializada, sem consenso, há muito tempo. O fato é que a intervenção judicial é uma realidade da qual não podemos nos afastar, de maneira que é necessário investigar sobre quais os instrumentos capazes de transformar essa intervenção em realidade sem se afastar dos preceitos constitucionais.

Para tanto, é preciso também considerar quais serão as situações consideradas socialmente problemáticas, que demandem esta intervenção estatal, em toda a sua complexidade, partindo do pressuposto de que o cenário aqui intentado é a busca por efetividade de direitos sociais.

Aqui, é preciso considerar a importância da participação e fomento ao diálogo de representantes de todos os grupos interessados na resolução do conflito em questão, de forma que todos os grupos devem ter a capacidade de expor suas razões e influenciar na construção da decisão judicial.

Ainda que haja sonoras críticas quanto à legitimidade do Poder Judiciário a agir com maior protagonismo, entendemos que esta discussão deve ser esvaziada, considerando que o Poder Judiciário não se imiscui em funções alheias, mas sim age em espaços ociosos, em que não há atuação estatal suficiente.

O cerne da questão aqui analisada é tratar das transformações que vem ocorrendo na sociedade como um todo, tanto em um aspecto político e social como econômico. Isso demanda que o direito seja capaz de fornecer à sociedade uma nova forma de construir respostas. Portanto, é necessário que haja dinamicidade e capacidade de acompanhar a evolução da sociedade para não a deixar desamparada, garantindo também a segurança das relações jurídicas, evitando que os jurisdicionados enfrentam incertezas frente aos entes públicos.

A análise de litígios concretos perpassa pela necessidade de atuação estratégica pelos entes estatais, em especial pelos julgadores. Estabelecer situações paradigmáticas é necessário para que, através dos casos concretos, seja possível propiciar mudanças sociais através da jurisdição, “buscando transformação da jurisprudência, formação de precedentes, alterações legislativas e/ou de políticas públicas” (OLIVEIRA, CASTANHEIRO, 2020).

Através da análise das decisões estruturais proferidas dentro da realidade brasileira, é possível demonstrar como as decisões são proferidas e executadas, assim como é possível analisar os conflitos complexos e polimorfos em que há a necessidade de reestruturação através dos processos estruturais e suas nuances. É importante que analisemos como a doutrina e os julgadores brasileiros vêm trabalhando o pensamento advindo dos processos estruturais, partindo da necessidade de se testar as hipóteses aqui trabalhadas.

A título de didática, a cadeia decisória muito se assemelha à forma como são tomadas as decisões no âmbito das recuperações judiciais. O art. 99 da Lei 11.101/2005 elenca detalhes específicos a respeito de quais critérios deverão ser estabelecidos na tomada de decisões que finalizará em uma reestruturação de determinada instituição, nesse caso, instituição privada. Podemos enxergar esse caminho como uma espécie de decisão estruturante ou até mesmo de processo estrutural. O que se visa é não só resguardar direitos, mas também programar de que forma isto ocorrerá, se projetando para o futuro, muito além de visando apenas restaurar o status quo.

Na realidade brasileira, uma das primeiras experiências com o estado de coisas inconstitucional à semelhança da experiência colombiana ocorreu no julgamento da ADPF 347, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade em 2015, visando o reconhecimento da inconstitucionalidade com relação ao sistema carcerário brasileiro. O objetivo principal era que fosse determinada a tomada de providências estruturais com relação às lesões a preceitos fundamentais dos encarcerados, que seria responsabilidade direta do Estado.

Nesse sentido, a prática de processos estruturais na realidade brasileira ainda é dificultada por uma série de fatores, sendo a falta de conhecimento dos julgadores com a técnica necessária, a resistência dos demais atores envolvidos e da própria sociedade, entre outros aspectos, sendo o principal deles a teimosia em se ater à ritualística tradicional do processo civil bipolar e limitado.

Sobressaindo das esferas de decisões judiciais exaradas além de nossa realidade e aproximando a pesquisa de seu intuito quanto ao desenvolvimento regional, é importante delinear também alguns pontos referentes a desastre ambiental ocorrido no estado do Pará, no município de Barcarena, na ocasião do naufrágio do navio Haidar no porto de Vila do Conde. O naufrágio ocasionou a morte da carga viva que transportava, composta por milhares de cabeças de gado, além do derramamento de óleo e espalhamento de feno nas águas da região.

O desastre culminou no ajuizamento de ação civil pública em litisconsórcio formado pelo Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública do Estado e Estado do Pará, (ACP n. 0028538-38.2015.4.01.3900 ), onde pleiteavam, entre outros pedidos, a apresentação de um plano de ação de retirada da embarcação, a ser cumprido paulatinamente e após análise de verificação de diversas etapas, apresentação de cronograma de execução de medidas emergenciais, plano de remediação e recuperação das áreas degradadas contemplando os municípios e áreas atingidas, bem como fornecimento de cestas básicas e água potável e o pagamento de salários mínimos aos habitantes afetados.

Como se percebe, se extraiu deste litígio estrutural uma decisão estruturante, carregada das principais características que assim a denominam, como o cumprimento encadeado e interdependente entre as suas fases. Além disso, é possível vislumbrar outras características próprias dos litígios estruturais, como “causa de pedir e pedido dinâmicos (devido à causalidade complexa); participação potenciada (devido à multiplicidade de interesses imbricados); e a geração de decisões prospectivas.” (NUNES, COTA, FARIA, 2019, p. 1059).

Além disso, cada situação concreta demanda uma análise específica, e justamente por este motivo, não é possível construir respostas pré-fabricadas. É necessário que, a partir de uma decisão judicial norteadora, se construam decisões judiciais secundárias e se analise os resultados da aplicação e execução destas decisões, para que assim sejam definidos quais os melhores rumos à resolução dos conflitos enfrentados.

Ainda que os processos estruturais não sejam a solução perfeita para o problema da construção problemática de decisões em busca da efetividade de direitos e garantias fundamentais, é fundamental enfrentar a necessidade de construir uma nova ótica do preceito constitucional da separação de poderes. Longe de pretender afastar a aplicação do princípio, mas se pretende com isso construir uma maneira de ver a postura de protagonismo dos julgadores através de uma nova ótica, em que se considera os espaços vazios deixados pela omissão de Poder Legislativo e Executivo, onde se percebem cenários de descumprimento de garantias fundamentais e se demanda atuação pública com urgência.

Diante disso, se busca demonstrar como a mentalidade tradicional e os instrumentos clássicos não são capazes de traduzir em respostas eficazes a sua atuação frente a conflitos relacionados a direitos sociais, considerando as especificidades de cada litígio.

Para isso, é importante combater a lógica bipolar do tudo-ou-nada e incentivar a utilização de artifícios processuais mais acessíveis e adequados, como os negócios jurídicos processuais, típicos ou atípicos, as audiências públicas, o diálogo institucional e os amici curiae.

Com isso se percebe que, ainda que passível de algumas críticas, o processo estrutural é a maneira mais adequada de construir provimentos eficazes, fomentando o diálogo institucional e a ampla participação da sociedade, aumentando o caráter democrático da arena judicial, a partir de soluções consensuais e acessíveis sejam alcançadas, consequentemente, estendendo o acesso à justiça através de transformações não apenas nos instrumentos processuais, mas de transformações generalizadas na mentalidade dos sujeitos que performam as funções públicas constitucionais.

 

Notas e Referências

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CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.

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GRINOVER, Ada Pellegrini. O projeto de lei brasileira sobre processos coletivos. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 13, nº 1093, 25 de novembro de 2013. Disponível em: https://www.paginasdedireito.com.br/artigos/257-artigos-nov-2013/6345-o-projeto-de-lei-brasileira-sobre-processos-coletivos. Acesso em: 12 jan. 2021.

JOBIM, Marco Félix. O processo coletivo como sistema processual autônomo. In: Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. V. 14 n. 82 jan./fev. Porto Alegre: Lex Magister, 2018.

KLARMAN, Michael. Court, congress, and civil rights. In: DEVINS, Neil; WHITTINGTON, Keith E. Congress and the Constitution. Duke University Press, 2005.

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NUNES, Leonardo Silva; COTA, Samuel Paiva; FARIA, Ana Maria Damasceno de Carvalho. Dos litígios aos processos estruturais: pressupostos e fundamentos. Revista Jurídica Luso-brasileira. Lisboa, nº 5, 2019, p. 1051 – 1076. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/ rjlb/2019/5/2019_05_1051_1076.pdf. Acesso em: 16 out 2020.

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VITORELLI, Edilson. Processo civil estrutural: teoria e prática. Salvador: Editora Juspodivm, 2020.

[1] São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

[2] Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão

[3] Art. 5º, XXXV. A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

 

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