Processo Penal em Pessoas: José e a Condenação sem pedido

11/03/2021

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron, Gina Muniz e Eduardo Januário 

Chamemos nosso protagonista de José. Tirando seu nome, todos os demais elementos dessa narrativa são fidedignos ao que transcorreu durante o processo.

José tem 21 anos. 19 à data dos fatos narrados. Suas características marcam praticamente todas as caixas de uma pesquisa criminológica, com a exceção da cor de sua pele: José é albino. Pobre, nascido em um lar desfeito, não avançou nos estudos para além da quarta série e viciou-se em drogas logo cedo. Pouco depois de completar a maioridade, José foi preso – e posteriormente condenado – por tráfico de drogas. Ainda hoje José nega que vendesse entorpecentes, afirmando que era apenas um usuário no lugar errado, na hora errada.

Diferente de muitos, porém, José teve uma segunda chance. Enquanto cumpria sua pena em regime semiaberto, uma família de classe média-alta se apiedou dele e o contratou para trabalhar em sua loja. Ainda assim, os laços com o passado e com a vida atrás das grades não foram cortados por completos e José manteve contato com pessoas vinculadas ao Comando Vermelho.

Conheci José em uma Audiência de Custódia. Não a do tráfico. Outra. Dessa vez José ‘caiu’ por roubo. Como as entrevistas ainda eram ao vivo naquela época, me sentei ao lado de José para explicar como o ato transcorreria e para fazer-lhe as perguntas de praxe: houve violência policial durante a abordagem? Possui residência fixa? Trabalha? E outras. Quando verifiquei que ele estava cumprindo pena em regime semiaberto quando foi preso, já adiantei que a chance de ele voltar para rua naquela ocasião era mínima. Mas havia espaço para luta, afinal, enquanto houver gelo, há esperança.

Segundo a narrativa do Auto de Prisão em Flagrante, José teria intermediado um roubo ocorrido na noite anterior. A vítima seria exatamente a família que deu uma segunda chance a José, oferecendo-lhe um emprego e tratando-lhe como um ser humano. Para os milicianos, José teria ‘dado a fita’, relatando aos seus comparsas que o casal possuía grandes somas de dinheiro em casa e detalhando a rotina do casal, bem como os locais da residência que deveriam ser revirados em busca dos valores.

Na noite do assalto, os dois supostos comparsas teriam entrado na residência do vizinho do casal, rendido o vizinho com uso de uma arma de fogo e, aproveitando que já estavam ali, teriam subtraído bens do vizinho (Roubo 01). Após algum tempo na residência do vizinho, os comparsas pularam o muro que dividia as casas e invadiram a residência do casal, de onde subtraíram mais alguns bens móveis (Roubo 02).

Na manhã seguinte, os policiais teriam recebido uma denúncia anônima relatando que José teria orquestrado o delito. Imediatamente se dirigiram à loja do casal, onde José já havia iniciado seu turno de trabalho e, durante a abordagem, José teria confessado seu envolvimento e ainda teria apontado um dos comparsas como sendo a pessoa que efetivamente adentrou a residência das vítimas. Em pouco tempo os policiais realizaram a prisão de um dos supostos comparsas e, graças a capacidade de persuasão e técnicas de investigação ímpar dos milicianos, o comparsa também confessou a prática do delito e, até por reciprocidade, delatou José. Curiosamente, tanto José quanto o comparsa negaram qualquer envolvimento com os fatos quando interrogados perante a autoridade policial. Talvez o delegado devesse fazer um curso com os PMs.

Como os únicos elementos que conectavam José ao fato eram sua suposta confissão e a confissão delatória do comparsa, ambas veementemente negadas já na Polícia Civil, requeri desde logo o relaxamento da prisão em flagrante de José por falta de indícios suficientes de sua participação na empreitada criminosa. Como fundamento, apontei que confissões obtidas durante o interrogatório de camburão, além de não ratificadas, são ilícitas por violarem o princípio do nemo tenetur se detergere, apontando como paradigma a ADPF 444/DF (a Reclamação Constitucional 33711/DF ainda não havia sido julgada). Demais disso, apontei que a chamada de corréu, por si só, não tem força probatória suficiente a afastar a presunção de inocência, citando precedentes sobre o tema, tal como o REsp 1113882/SP e o HC 84517 do STF.

Não adiantou. Os antecedentes criminais, rectius, O antecedente criminal (no singular) pesou mais e a prisão preventiva de José foi decretada para salvaguardar a ordem pública, tendo o Juízo destacado que o celular de José fora apreendido e tinha potencial para evidenciar que ele possuía vínculos com o Comando Vermelho (note a lógica de prender para investigar).

É claro que o pedido de Liminar em Habeas Corpus foi negado e o mérito do writ demorou quase 02 meses para ser julgado, apenas para seguir o mesmo caminho da liminar. Felizmente o princípio da celeridade vigorou ao menos na primeira instância e nesse mesmo período fora oferecida a denúncia, recebida a denúncia, agendada e realizada a Audiência de Instrução e Julgamento.

Durante a AIJ, que acabou sendo cindida por falta de algumas testemunhas, as vítimas passaram mais de uma hora cada contando sobre suas desconfianças sobre José e como, paradoxalmente, confiavam plenamente nele entregando-lhe diariamente grandes quantias em dinheiro para que ele fizesse os depósitos (até questionei se não seria mais fácil ele simplesmente se apropriar desses valores e dizer que foi assaltado, mas não obtive resposta). Sobre a efetiva participação de José, nada foi trazido. Ao final, requeri a revogação da prisão preventiva, insistindo que não havia elementos concretos que demonstrassem a participação de José. Mais uma vez, o pedido foi negado.

Durante a audiência em continuação, os policiais narraram o que já haviam narrado, até mesmo porque o Promotor de Justiça foi gentil o suficiente de só fazer perguntas fechadas e ler trechos dos depoimentos realizados na Delegacia. Sem novidades. José e o corréu negaram tanto a prática da infração quanto a suposta confissão e a delação que teriam feito. Admitiram apenas que já se conheciam. O relatório sobre os dados do celular de José, por outro lado, demonstrara que ele não teve qualquer contato com o corréu nos meses anteriores, mas que participava, sim, de um grupo de Whatsapp que levava o nome do Comando Vermelho. Gurpo esse, diga-se de passagem, que contava com diversas selfies de pessoas cumprindo pena (o que eu carinhosamente chamo de ‘celfies’).

Após 03 meses dizendo que não havia provas da participação de José para lhe manter preso sem obter qualquer sucesso, qual não foi minha felicidade ao ver que o Ministério Público requereu a sua a absolvição por falta de provas nas Alegações Finais.

Infelizmente, esperança dura pouco.

Mesmo na completa ausência de provas, o Juiz sentenciante (que não era o titular da vara, que havia saído de licença), entendeu que havia, sim, prova suficientes para condenação, destacando, sabe-se lá por que, que a denúncia anônima que levara até José “não foi inventada e nem adveio de mera especulação”. Ao final, aplicou-lhe a módica pena de 22 anos, 02 meses e 20 dias em regime inicial fechado.

Recorri. Claro que recorri. Apontei todas as inconsistências da narrativa, bem como as ilegalidades probatórias. Subsidiariamente, destaquei os absurdos levados a efeito durante o processo de dosimetria de pena, tal como a fixação da pena base no dobro do mínimo legal com fundamento na valoração negativa de apenas duas circunstâncias judiciais e o agravamento na segunda fase, onde foi dada preponderância à agravante relacionada à idade da vítima em detrimento da menoridade relativa de José.

O Ministério Público concordou com o recurso defensivo (menos quanto à dosimetria) e requereu a reforma da sentença para absolver o acusado.

O e. TJMT deu parcial provimento, reduzindo a pena para 16 (dezesseis) anos, 03 (três) meses e 16 (dezesseis) dias de reclusão. A condenação foi mantida. A Defensoria Pública em segunda instância entendeu que não havia interesse recursal, apesar da sentença ter sido fundamentada, ao menos em parte, em prova obtida ilegalmente (confissão supostamente extraída durante abordagem policial). Para o colega lá de cima, o caso se limitava a discussão sobre os fatos, o que lhe impedia de interpor algum recurso extraordinário. A sentença transitou em julgado.

Enfim, fiz questão de contar essa longa história porque o processo penal é feito de pessoas. O substrato teórico que passo a analisar não é novidade para ninguém aqui, mas as vezes pode parecer algo meramente abstrato, uma construção cerebrina. Não é.

Há anos Aury Lopes Jr. (e antes dele Afrânio Silva Jardim), sustenta o Estado realiza seu poder de punir no processo penal não como parte, mas como juiz, e esse poder punitivo está condicionado ao prévio exercício da pretensão acusatória.

Se o acusador (público ou privado) deixar de exercer a pretensão acusatória (pedindo a absolvição na manifestação final), cai por terra a possibilidade de o Estado-Juiz exercer o poder punitivo, sob pena de grave retrocesso a um sistema inquisitório, de juízes atuando de ofício, condenando sem acusação, rasgando o princípio da correlação e desprezando a importância e complexidade da imparcialidade.

Destaco a lição do autor:

(...) o pedi­do de absol­vi­ção equi­va­le ao não exer­cí­cio da pre­ten­são acu­sa­tó­ria, isto é, o acu­sa­dor está abrin­do mão de pro­ce­der con­tra alguém. Como consequência, não pode o juiz con­de­nar, sob pena de exer­cer o poder puni­ti­vo sem a neces­sá­ria invo­ca­ção, no mais claro retro­ces­so ao mode­lo inqui­si­ti­vo. Condenar sem pedido é violar, inequivocamente, a regra do fundante do sistema acusatório que é o ne procedat iudex ex officio. Também é rasgar o Princípio da Correlação, na medida em que o espaço decisório vem demarcado pelo espaço acusatório e, por decorrência, do espaço ocupado pelo contraditório, na medida em que a decisão deve ser construída em contraditório (Fazzalari).

O poder punitivo é condicionado à exis­tên­cia de uma acu­sa­ção. Essa cons­tru­ção é ine­xo­rá­vel, se real­men­te se quer efe­ti­var o pro­je­to acu­sa­tó­rio da Constituição. Significa dizer: aqui está um ele­men­to fun­dan­te do sis­te­ma acu­sa­tó­rio[1].

No mesmo sentido, por outro ângulo, Geraldo Prado leciona:

Como o con­tra­di­tó­rio é impe­ra­ti­vo para vali­da­de da sen­ten­ça que o juiz venha a pro­fe­rir, ou, dito de outra manei­ra, como o juiz não pode fun­da­men­tar sua deci­são con­de­na­tó­ria em pro­vas ou argu­men­tos que não ­tenham sido obje­to de con­tra­di­tó­rio, é nula a sen­ten­ça con­de­na­tó­ria pro­fe­ri­da quan­do a acu­sa­ção opina pela absol­vi­ção. O fun­da­men­to da nuli­da­de é a vio­la­ção do con­tra­di­tó­rio (arti­go 5º, inci­so LV, da Constituição da República).[2]

Com as recentes alterações promovidas pela Lei 13.964/19 a prevalência dessa interpretação se torna ainda mais clara. Isso porque o novel art. 3-A reconhece expressamente a estrutura acusatória do nosso processo penal, limitando o máximo possível a quebra da inércia judicial.

Mais além, a Lei 13.964/2019 também alterou a redação dos arts. 282, §2 e 311, excluindo a possibilidade de decretação de qualquer medida cautelar de ofício pelo Juiz, novamente reforçando a estrutura acusatória e deixando claro que o Juiz, mormente no exercício da jurisdição penal, está limitado aos pedidos das partes. Tanto assim o é que os Tribunais Superiores reconheceram, de forma pacífica, a impossibilidade da conversão da prisão em flagrante de ofício pelo Juiz (Cf. STF, HC 188888, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 06/10/2020 e STJ, RHC 131.263/GO, Rel. Min. Sebastiao Reis Júnior. Terceira Seção. DJ 01.03.2021)

Por fim, ainda que temporariamente suspenso por decisão do STF, a nova redação do art. 28 retira a figura do Juiz do procedimento de arquivamento do Inquérito Policial, abraçando o princípio do ne procedat judex ex officio, reforçando a imparcialidade do Juiz e, em última análise, preservando a estrutura acusatória do processo.

Assim, em uma análise sistemática, a conclusão mais razoável é de que o art. 385 do Código de Processo Penal, cuja recepção constitucional já era extremamente questionável, foi tacitamente revogado pela Lei 13.964/19.

Mais além, é possível aplicar essa mesma conclusão inclusive em relação ao art. 383 do CPP nos casos em que a nova definição jurídica implicar em pena mais grave. Isso porque, a partir do momento em que o órgão acusatório estabelece um ‘teto’ à imputação, não caberia ao Juiz superá-lo sem provocação[3].

Devo reconhecer, no entanto, que os Tribunais superiores não compartilham desse entendimento (Cf. AgRg no REsp 1850925/SP, julgado em 20/10/2020). Aparentemente, o princípio da obrigatoriedade da ação penal se sobrepõe ao sistema acusatório e os Juízes desse nosso Brasil se recusam a abrir mão dessa fatia de poder. O mais interessante é que membros do Ministério Público também parecem, em grande parte, avessos à conclusão de que o art. 385 não foi recepcionado ou tacitamente revogado pela Lei 13.964/19, ainda que a conclusão nesse sentido leve a um prestígio maior da função ministerial.

No Brasil existe uma tara pelo sistema de justiça estadunidense. Não falta quem venere as penas altas, as poucas chances de saída antecipada e até mesmo a pena de morte. O que temos em baixa quantidade entre os adeptos da ‘lei e ordem’ são defensores de um sistema de admissibilidade de provas rigoroso, a exigência de unanimidade de votos nos julgamentos ou, como no caso sob análise, um comprometimento com um sistema acusatório.

 

Notas e Referências

LOPES JR., Aury. Por que o Juiz não pode condenar quando o Ministério Público pedir a absolvição?. Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-dez-05/limite-penal-juiz-nao-condenar-quando-mp-pedir-absolvicao

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3ª Ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2005

 

[1] Op. Cit

[2] Op. Cit., p.116-117

[3] Deixo para vocês uma pergunta, ainda sem resposta para mim: se o juiz decreta a prisão de um autuado em flagrante e alguns dias depois o Ministério Público oferece um Acordo de Não Persecução Penal, haveria obrigatoriedade na revogação da prisão? E se o autuado aceita o acordo? Seria necessário aguardar a homologação pelo Juiz para se falar em revogação da prisão ou será que a manifestação do MP seria suficiente para demonstrar que não há interesse no exercício da pretensão acusatória?

 

Imagem Ilustrativa do Post: Thomas Quine // Foto de: Lady justice // Sem alterações

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