Processo penal: de jogadores a atores, do campo ao palco e de jogo ao espetáculo – Por Andressa Tomazini

09/10/2017

A busca em outras ciências e áreas de conhecimento está cada vez mais presente no âmbito jurídico. Isso porque, percebe(u)-se que o direito, por si só, não consegue (e nunca conseguiu) explicações e justificações nele mesmo. O direito está em todas as áreas e todas as áreas estão dentro dele. Como exemplo disso, tem-se o anarquismo metodológico, conceito do físico Paul Feyerabend[1], utilizado nas ciências naturais, presenciado nas decisões judiciais[2], e a Teoria dos Jogos, vinda da matemática e aplicada ao processo penal, por Alexandre Morais da Rosa, sendo sobre ela que falar-se-á neste artigo, bem como a transição do processo penal como jogo para o espetáculo.

Em 1928, A Teoria dos Jogos foi criada por von Neumann através da demonstração do teorema minimax:

Contudo, só chamou a atenção do público em 1944, quando em parceria com Morgenstern, propôs a análise do comportamento econômico via perspectiva do ‘jogo de estratégia’ criando assim a expectativa de reformulação da teoria econômica numa base totalmente nova, na qual o conceito de “processo competitivo” seria reestruturado em termos de mecanismos onde os agentes econômicos atuam estrategicamente[3]

Em 1950, a Teoria ganhou novos contornos com John F. Nash, o qual aplicou o referido teorema para mais agentes. Porém, somente na metade da década de 60 é que a Teoria dos Jogos se popularizou:

Engenheiros e economistas começaram a perceber a Teoria dos Jogos como um instrumento de considerável alcance para uma velha questão que voltara a tomar fôlego: a análise, projeto e implementação de mecanismos de alocação de recursos. O principal protagonista desta questão foi HURVICZ (1973). Sua preocupação central estava voltada para a análise institucional, especialmente em economias informacionalmente descentralizadas. Para tal propósito, se envolveu na construção de mecanismos de alocação ou de planejamento que produzissem resultados “satisfatórios”. Como cada mecanismo de alocação de recursos contém implicitamente definido um jogo, abre-se assim um novo campo de pesquisa: a análise e projetos de mecanismos de alocação de recursos através das técnicas da Teoria dos Jogos[4].

Alexandre Morais da Rosa traz ao processo penal a Teoria dos Jogos[5], e desta forma, passa a vê-lo como um jogo, com jogadores bem definidos, estabelecendo as regras de cada partida, consequentemente a utilização de estratégias próprias, com a finalidade de obter maiores recompensas. Nada mais sensato, pois:

A Teoria dos Jogos, a qual poderia se chamar muito apropriadamente de Teoria das Decisões Interdependentes, tem como objeto de análise situações onde o resultado da ação de indivíduos, grupo de indivíduos, ou instituições, depende substancialmente das ações dos outros envolvidos. Em outras palavras, trata de situações onde nenhum indi-víduo pode convenientemente tomar decisão sem levar em conta as possíveis decisões dos outros[6].  

A percepção do processo penal, apenas como instrumento legítimo do Estado Democrático e Constitucional de Direitos, com a finalidade de obtenção da pretensão das partes, faz-se um tanto quanto ingênua e extremamente superficial. O processo penal mostra-se um campeonato, com várias partidas e jogos negociais, em tempos de delação, onde a Teoria dos Jogos irá analisar não mais somente “a tomadas de decisões entre indivíduos quando o resultado de cada um depende das decisões dos outros, numa interdependência similar a um jogo”, mas além disso, “cenários onde existem vários interessados em otimizar os próprios ganhos, as vezes em conflito entre si”[7].

A nomenclatura “jogo processual” faz-se, dessa forma, mais adequada quando trata-se restrita e exclusivamente das relações, ações interdependentes, e interações estabelecidas entre os jogadores diretos e indiretos do jogo processual, ou seja, as partes, testemunhas, peritos (se houver) e o próprio árbitro. Difere-se de outros campeonatos pois neste não há arquibancada, não há torcedores.

Entretanto, quando se envolve, estuda ou analisa, além dos jogadores, a sociedade e a mídia, suas relações, interferências e influências, o processo penal, de jogadores passa a ter atores, do campo vai-se ao palco, os jogos constituem peças e campeonatos tornam-se espetáculos, com diretores, plateia e transmissão quase que ao vivo.

Portanto, diferentemente do jogo processual-constitucional, o processo penal do espetáculo preocupa-se com o gosto de sua plateia, ou seja, com o que ela quer assistir, como ela quer assistir, que finais irão aplaudir, a fim de obter a cada peça, uma maior venda de bilheteria e divulgação midiática. E, muitas vezes, a simples compra do bilhete (fase administrativa) ou o início do primeiro ato (da fase judicial), já torna-se motivo suficiente para a antecipação, por parte dos espectadores, do fim do espetáculo, com comentários, apontamentos, pré-julgamentos, onde não rara as vezes, os suspeitos viram acusados, acusados condenados ou suspeitos são considerados culpados.

Transmite-se, através dos espectadores, os valores da sociedade em que estão inseridos, logo, em uma sociedade punitivista e inquisitorial, como a brasileira, as peças aplaudidas serão aquelas que faz sofrer, que tortura, condena, pune, vinga, mata e faz matar. Mata porque não contenta-se em restringir-se às paredes do teatro, sequer esperam as cortinas fecharem. Faz matar porque humilha, ridiculariza, desonra. Sem dó, sem pudor, sem arrependimento, sem mudança, aliás, Marx é preciso e atual ao escrever “eles sabem o que fazem e continuam a fazer do mesmo modo” porque doentiamente e biologicamente gostam[8].

A esperança residiria nos atores que compõem os elencos dos espetáculos, mas em nada diferem de qualquer outro, pois buscam a qualquer custo, e para isso ultrapassam qualquer limite, a iluminação dos holofotes, a aprovação, os aplausos da plateia, a cobertura midiática[9] e seus quinze minutos de fama, esquecendo-se de seus papeis originários. Aliás, estes são os únicos atores que não são pagos, e por isso assegurados por garantias e prerrogativas funcionais, para agradar ou receber o carinho do público.

E assim, diariamente, assiste-se aos espetáculos que massacram o processo penal como instrumento de garantias e legítimo de contenção do poder punitivo estatal e como jogo com o “fair play” respeitado.

Há sete dias, perdemos Cancellier e ganhamos mais um motivo para lutar e resistir a esses cenários sombrios que perpetuam barbáries e à essa sociedade que se autodestrói. Agora, além de ser questão de resistência[10], pois há “uma súplica pela punição e uma ode ao castigo”[11], é de sobrevivência.

[1] FEYERABEND, Paul. Contra o método. Tradução de Octanny S. da Motta e Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

[2] TOMAZINI, Andressa. O anarquismo metodológico nas decisões judiciais. Artigos jurídicos e direito em debate 2017. Disponível em: <http://www.reajdd.com.br/artigos/Revista_Ano_VII_n12/13-ANDRESSA-GRADUANDA-INTERESTADUAL.pdf>. Acesso em: 07 out. 2017.

[3] FIGUEIREDO, Reginaldo Santana. Teoria dos jogos: conceitos, formalização, matemática e aplicação à distribuição de custo conjunto. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/gp/v1n3/a05v1n3.pdf>. Acesso em: 07 out. 2017.

[4] FIGUEIREDO, Reginaldo Santana. Teoria dos jogos: conceitos, formalização, matemática e aplicação à distribuição de custo conjunto. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/gp/v1n3/a05v1n3.pdf>. Acesso em: 07 out. 2017.

[5] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a Teoria dos Jogos. 3. ed. Florianópolis: Emporio do Direito, 2016.

[6] FIGUEIREDO, Reginaldo Santana. Teoria dos jogos: conceitos, formalização, matemática e aplicação à distribuição de custo conjunto. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/gp/v1n3/a05v1n3.pdf>. Acesso em: 07 out. 2017.

[7] O que é Teoria dos Jogos?. Disponível em: <http://www.cienciadaestrategia.com.br/teoriadosjogos/capitulo.asp?cap=i2>. Acesso em: 07 out. 2017.

[8] INCOTT, Paulo. Gozar ao punir: o prazer do castigo. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/gozar-ao-punir-sobre-o-prazer-do-castigo-por-paulo-incott/>. Acesso em: 07 outubro 2017: “Os processos mentais/hormonais prazerosos que a imagem da dor do outro traz não são ingênuos ou superficiais. “Notícias de tragédia injetam adrenalina… ratificando ao inconsciente de cada um a sublime satisfação de que, mais uma vez, escapou ao sorteio na loteria do infortúnio” (FIORELLI, 2016:244). A esta lição de Fiorelli poderiam ser substituídas as palavras “tragédia” por punição e “loteria do infortúnio” por seletividade penal sem prejuízos de sentido”.

[9] AMADEUS, Djefferson. Ensaios sobre processo penal, hermenêutica e a crise de paradigmas no direito brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 58: “o papel da mídia neste contexto autoritário. Trata-se, pois, de uma verdadeira propagadora da violência e do caos”.

[10] TOMAZINI, Andressa O processo penal ainda vive “Tempos de Resistência”? InTempos de Resistência. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. Cap. 1.

[11] INCOTT, Paulo. Gozar ao punir: o prazer do castigo. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/gozar-ao-punir-sobre-o-prazer-do-castigo-por-paulo-incott/>. Acesso em: 07 outubro 2017.

AMADEUS, Djefferson. Ensaios sobre processo penal, hermenêutica e a crise de paradigmas no direito brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. 132p.

FEYERABEND, Paul. Contra o método. Tradução de Octanny S. da Motta e Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. 488p. Título original: Against Method.

FIGUEIREDO, Reginaldo Santana. Teoria dos jogos: conceitos, formalização, matemática e aplicação à distribuição de custo conjunto Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/gp/v1n3/a05v1n3.pdf>. Acesso em: 07 out. 2017.

INCOTT, Paulo. Gozar ao punir: o prazer do castigo Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/gozar-ao-punir-sobre-o-prazer-do-castigo-por-paulo-incott/>. Acesso em: 07 outubro 2017.

O que é Teoria dos Jogos? Disponível em: <http://www.cienciadaestrategia.com.br/teoriadosjogos/capitulo.asp?cap=i2>. Acesso em: 07 out. 2017.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a Teoria dos Jogos. 3. ed. Florianópolis: Emporio do Direito, 2016. 528p.

STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais. Constituição, cidadania e violência, Porto Alegre, n. 2, 2001

TOMAZINI, Andressa. O anarquismo metodológico nas decisões judiciais. Artigos jurídicos e direito em debate, n. 12, 2017 Disponível em: <http://www.reajdd.com.br/artigos/Revista_Ano_VII_n12/13-ANDRESSA-GRADUANDA-INTERESTADUAL.pdf>. Acesso em: 07 out. 2017.

TOMAZINI, Andressa. O processo penal ainda vive “Tempos de Resistência”? InTempos de Resistência. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. Cap. 1. p. 1-12. 

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