PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL: PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE, PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE E LIBERDADE DE IMPRENSA

02/05/2020

O artigo pretende refletir sobre os princípios da publicidade e da liberdade de imprensa, que no contexto de uma sociedade de massificação da informação influenciam, indevidamente, no processo penal, soterrando o princípio da não culpabilidade, gerando consequências aos atores envolvidos no processo. Busca-se uma ponderação de tais princípios para que se alcance um processo penal mais condizente com o princípio de um Estado de Direito.

Apesar de parecer um tema já ultrapassado, a discussão acerca do princípio da não culpabilidade se faz extremamente necessária, se considerarmos a realidade forense brasileira. Ainda que expressa em nossa Constituição Federal (CF/88), a regra de considerar o réu como culpado apenas após o trânsito em julgado parece ainda não ter muita aplicação real no nosso País, e isso gera, em grande parte das vezes, um grande prejuízo ao acusado, principalmente quando a acusação se torna pública por qualquer dos meios de comunicação.

Ademais, o princípio da publicidade, que em sua essência originária visava proteger o acusado e a própria sociedade dos arbítrios do Estado, apresenta, hoje, numa sociedade regida pelo excesso de informação e facilidade de acesso a mesma, potencialidade lesiva ao acusado, além de possibilitar ingerências e influências externas ao processo penal.

O objetivo deste trabalho é trazer à tona a discussão em relação ao princípio da não culpabilidade e seus correlatos, e paralelamente, sem pretensões de esgotamento do tema, uma ponderação com os princípios da publicidade e a liberdade de imprensa, princípios também expressos na CF/88.

Em um primeiro momento, será realizada uma breve abordagem do tema, e depois serão apresentados e conceituados alguns dos principais princípios relacionados com a culpabilidade, publicidade e liberdade de imprensa.

Por fim, será realizada uma reflexão sobre uma possível antinomia entre o princípio da não culpabilidade e os princípios da publicidade e da liberdade de imprensa, no que tange ao processo penal, principalmente em relação ao procedimento do Tribunal do Júri.

 

PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL

O texto original da atual codificação processual penal brasileira foi elaborado com bases notoriamente autoritárias, decorrentes de sua inspiração legislativa processual italiana da década de 1930, produzida em pleno regime fascista.

O período histórico anterior à promulgação da Constituição de 1988 foi pautado por graves violações e abusos por parte dos Governantes; sua principal meta, portanto, era implementar um Estado Democrático de Direito, após vinte e cinco anos de regime militar (BULOS, 2014).

Dessa forma, entende-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 veio contribuir para o processo de redemocratização do País. Como bem aponta Luís Roberto Barroso: “[...] a Constituição foi capaz de promover, de maneira bem-sucedida, a travessia do Estado brasileiro de um regime autoritário, intolerante e, por vezes, violento para um Estado democrático de direito” (BARROSO, 2007).

Ocorre que, com o advento da Constituição de 1988, veio a necessidade de transformação do processo penal, deixando de ser mero instrumento de aplicação da lei penal para um verdadeiro mecanismo de garantias individuais frente ao Estado.

É nesse contexto que o direito penal garantista ganha relevo; impulsionado pelo Jusfilósofo Luigi Ferrajoli (2002), em sua obra Direito e Razão, na qual apresenta seu sistema jurídico-penal racional garantista. Versa, o garantismo penal, sobre a devida valoração das normas penais e processuais concernentes aos direitos, garantias e prerrogativas que o sistema constitucional confere ao acusado, não se tratando de mero legalismo (ou em positivismo cego), já que seu pilar de sustentação não se funda apenas na letra da lei, mas sim nos axiomas de um Estado Democrático de Direito.

A fim de auferir seus objetivos, a teoria do garantismo penal baseia-se em técnicas de minimização do poder institucionalizado, com a pretensão de deter as violações dos direitos fundamentais. Suas técnicas são os axiomas que baseiam todo o alicerce proposto por Ferrajoli (2002,), totalizando dez axiomas que se referem diretamente às garantias relativas à pena, às garantias relativas ao delito e às garantias relativas ao processo: nulla poena sine crimine (só há pena se houver ocorrido o crime); nullum crimen sine lege (não há crime se não houver uma lei penal anterior); nulla lex (poenalis) sine necessitate (é nula a lei penal criada sem necessidade); Nulla necessitas sine injuria (lesividade ou da ofensividade do evento); nulla necessitas sine actione (Se não há exteriorização da conduta, não há lesão); nulla actio sine culpa (não há ação típica sem culpa); nulla culpa sine judicio (a culpa deverá ser verificada em regular juízo); nullum judicium sine accusatione (deverá haver acusação, a qual não poderá ser feita pelo juiz); nulla accusatio sine probatione (não haverá acusação sem prova, do que se depreende que o que deve ser obrigatoriamente provado é a culpa e não a inocência); nulla probatio sine defensione (deve haver o respeito à ampla defesa e ao contraditório, sem os quais não haverá acusação válida).

Verifica-se então que a proposta de Ferrajoli é um conceito intrínseco da lei, atuando junto a dignidade da pessoa humana, garantindo a máxima liberdade ao indivíduo não delinquente e o mínimo de prejuízo ao indivíduo que venha a delinquir, mas sempre controlando os poderes estatais, de modo a favorecer o cumprimento desses objetivos.

O processo penal constitucional propõe, então, realizar a justiça penal edificada sobre sólidas bases constitucionais. Nas palavras de Eugênio Pacelli (2017, p. 33): “O Direito Processual Penal, portanto, é, essencialmente, um Direito de fundo constitucional.”

Dessa forma, importante salientar a existência de princípios constitucionais inafastáveis ao sistema jurídico de aplicação do Direito Penal, destinados a proteção e promoção dos direitos e garantias individuais, dentre os quais alguns serão tratados nos tópicos seguintes.

 

PRINCÍPIO DA NÃO CULPABILIDADE

Segundo a doutrina, o direito de ser presumivelmente inocente até que sua culpa não tenha sido legalmente estabelecida, nasce no direito romano e sofre modificações na transição do modelo acusatório ao inquisitório.

No direito romano, por influência do cristianismo, na verificação da situação de uma pessoa acusada, incidia a máxima do in dubio pro reo, como regra referente à valoração da prova. [...] Com a inquisição, na Idade Média, numa estrutura de processo penal inquisitório, não se partia da inocência do acusado, mas da sua culpabilidade. Nesse sistema, a inocência era declarada quando o acusado a demonstrasse (purgatio da acusação), e bastava um simples indício à formação de um juízo condenatório. (CANOTILHO et al., 2013. p. 440-441).

Na Europa continental, durante o período Iluminista, o princípio passa a ganhar força a partir das críticas e discussões em relação aos sistemas penais, poder punitivo do Estado e o direito natural e inviolável da presunção de inocência do cidadão (CANOTILHO et al., 2013).

Cesare Beccarica (1764), considerado o principal representante do iluminismo penal, já recomendava: “um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que seja decidido ter ele violado as condições com as quais tal proteção lhe foi concedida”.

Em agosto de 1789, o princípio é positivado na Declaração do Homem e do Cidadão, em seu artigo 9º e rompendo com o antigo regime dispõe: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei” (In: FERREIRA FILHO, 1978). A Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, também acolhe o princípio e determina em seu artigo 11º: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa” (ONU, 1948).

Além das Declarações acima, o princípio está presente nos seguintes documentos: Convenção Europeia para a tutela dos Direitos do Homem e da Liberdade Fundamental (firmado em Roma no dia 04 de novembro de 1950); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (aprovado pela ONU em 16 de dezembro 1966); Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (celebrada em São José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969).

Influenciados por esses diplomas internacionais, inúmeros países passaram a inserir o princípio da não culpabilidade em seus textos constitucionais. No Brasil, apenas com advento da Constituição Federal de 1988, foi que passou a constar com expressa previsão, que em seu art. 5º, inciso LVII, estabelece: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988). As constituições anteriores não o previam expressamente, limitando-se a considerá-lo de forma implícita, como decorrência do princípio do devido processo legal.

Como sintetizam Távora e Alencar (2017, p. 44), o princípio da não culpabilidade:

[...] pode ser definido como o direito de não ser declarado culpado senão após o término do devido processo legal, durante o qual o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para a sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório).

A despeito das diferenças nas denominações previstas nos documentos supracitados, entende-se, conforme a doutrina majoritária, que são expressões sinônimas.

Não há utilidade prática na distinção entre as diferentes denominações – presunção de inocência, presunção de não culpabilidade e estado de inocência –; uma vez que são denominações consideradas como sinônimas pela mais recente doutrina (TAVORA E ALENCAR, 2017).

No mesmo sentido Renato Brasileiro de Lima (2017, p. 44) diz:

Na jurisprudência brasileira, ora se faz referência ao princípio da presunção de inocência, ora ao princípio da presunção de não culpabilidade. Segundo Badaró, não há diferença entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade, sendo inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias - se é que isto é possível -, devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas (LIMA, 2017, p. 44).

Ensina a doutrina que o princípio da não culpabilidade consiste em um direito constitucional multifacetário, manifestando-se como uma garantia de tratamento e de fundo probatório. A primeira consiste na proteção ao acusado que impossibilita, durante a persecução penal, qualquer restrição pessoal fundada exclusivamente na possibilidade de sua condenação; já a garantia de fundo probatória estabelece o ônus da prova em relação à existência do fato e quanto a sua autoria devem recair sobre a acusação. Cabendo à defesa apenas provar eventual excludente de ilicitude ou culpabilidade que alegar (PACELLI, 2017).

A presunção de não culpabilidade, segundo Aury Lopes Junior (2013) produz efeitos diretos no ônus probatório (inteiramente do acusador, em razão do in dubio pro reo); impõe a limitação à publicidade abusiva (buscando reduzir os danos decorrentes da estigmatização prematura do acusado); e, principalmente, protege o acusado contra o uso abusivo das prisões cautelares.

Segue o autor, concluindo:

Em suma: a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja tratado como inocente), que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele. [...] Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. (LOPES JUNIOR, 2013, p. 53-54).

Por fim, conforme ensina Luigi Ferrajoli (2002), o princípio da não culpabilidade é um princípio fundamental de civilidade, trata-se de fruto de uma opção garantista em benefício da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que para isso seja necessário pagar o preço da impunidade de algum culpável. Isso porque, prossegue o autor, citando Lauze di Peret (apud FERRAJOLI, 2002, p. 441), “basta ao corpo social que os culpados sejam geralmente punidos, pois é seu maior interesse que todos os inocentes sem exceção sejam protegidos”.

 

PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE

O processo penal brasileiro, em conformidade com o sistema acusatório, é regido em regra pela ampla publicidade, e dessa forma os atos processuais são públicos. Atualmente, o direito pátrio adota como regra a publicidade absoluta, ou real, como consagra o art. 792 do CPP, e devido a tamanha importância, a regra é reafirmada no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, só podendo ser restrita nos casos previsto no inciso LX do art. 5º da CF/88: “A Lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”, e sua razão de ser é notória, já que a intimidade da vítima, nos casos que se enquadram na letra da lei supracitada, deve ser observada para que assim não venha causar constrangimentos a quem a lei devia preservar.

Para ilustrar o dito, dispõe o artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988:

IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. (BRASIL, 1988).

O princípio da publicidade foi convencionado com o escopo de assegurar a ampla defesa, a imparcialidade e a responsabilidade do juiz, facultando ao público em geral amplo acesso aos atos processuais, atuando assim como um ente fiscalizador dos operadores do Direito (PACHECO, 2007).

Ainda nesse sentido, acrescenta Mirabete (2006, p. 1552):

Esse princípio da publicidade inclui os direitos de assistência, pelo público em geral, dos atos processuais, a narração dos atos processuais e a reprodução dos seus termos pelos meios de comunicação e a consulta dos autos e obtenção de cópias, extratos e certidões de quaisquer deles.

Atuando como verdadeiro legitimador do estado democrático de Direito, o princípio da publicidade assume função de controle e fiscalização da atuação Estatal, tornando-se necessário em todo o regime jurídico.

 

 

PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE IMPRENSA

Colocando sob análise a Carta Magna, constatamos que em diversas disposições o constituinte de 1988 determinou a plena liberdade de imprensa, dentre as quais evidenciamos os seguintes artigos e respectivos incisos assim redigidos:

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

[…]

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

[…]

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§1.º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5.º, IV, V, X, XIII e XIV.

§2.º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

[…]

§6.º A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade. (BRASIL, 1988).

Nesse sentido, Edilsom Farias (2004) aborda, em sua obra Liberdade de Expressão e Comunicação, que a essencialidade da liberdade de expressão política e social está entrelaçada ao funcionamento de um autêntico regime democrático, sendo pré-requisito para a formação de uma opinião pública autônoma e pluralista, ou para o estabelecimento de um debate público franco e vigoroso.

Além do mais, em relação à liberdade de imprensa, de pronto nos deparamos com sua função de informar, mas não apenas, já que através dessa ferramenta exerce um papel ainda mais notável, visto que auxilia na construção da personalidade do indivíduo. Dessa forma, remete à responsabilidade que advém de toda essa participação na formação de ideias, opiniões e inclusive decisões do sujeito.

Constata-se que a imprensa tem um papel fundamental no Estado Democrático de Direito, oportunizando a população ser detentora da liberdade de expressão de maneira ampla, por ter acesso à informação. Cabe compreender até que ponto essa garantia atua de maneira branda e coerente, sem afetar os demais direitos e garantias fundamentais, vislumbrando que nenhum direito é absoluto.

A efetividade da liberdade de imprensa, necessariamente, está respaldada na sua total autonomia em informar, entretanto, é preciso assegurar a maneira contundente de responsabilização para que o veículo de comunicação não transgrida outros direitos e garantias assegurados à pessoa humana. Atualmente, o contexto social exige uma responsabilização realista e palpável, em razão da dimensão que as notícias tomam, ainda mais em um cenário caracterizado grandemente por programas sensacionalistas voltados para a cultura do espetáculo, que por muitas vezes violam a lei e a ética profissional, julgando e condenando, transformando indícios em provas, bem como suspeitos em culpados, desconsiderando por completo o princípio da ampla defesa.

Assim sendo, com o intuito de garantir a responsabilização diante de um excesso no ato do informar, o Estado dispõe da Lei n° 13.188/2015, a qual versa sobre o direito de resposta e/ou retificação do ofendido em matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de caráter social, protegendo o acusado e disponibilizando a ele o direito de reposta.

Segue o art. 2º da Lei supracitada:

Art. 2o Ao ofendido em matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de comunicação social é assegurado o direito de resposta ou retificação, gratuito e proporcional ao agravo. (BRASIL, 2015).

Devido à objetividade da ofensa, acusação ou erro, admite-se como justificativa moral para o exercício desse direito a recomposição da verdade, sendo admitida independentemente da existência de dolo ou culpa.

Apesar de válida a intenção do legislador, o que ocorre na prática não atende a necessidade do acusado, considerando a maneira como a informação se propaga nos dias atuais, pois ao considerarmos os recentes meios de comunicação como aplicativos de mensagens, sites e blogs de notícias, apesar de ocorrer a retificação, a ideia, por assim dizer, já foi plantada.

 

DIMENSÃO EXTERNA DO PRINCÍPIO DA NÃO CULPABILIDADE, PUBLICIDADE E LIBERDADE DE IMPRENSA

Quando tratamos de situações que requerem ponderar e optar por um direito fundamental sobre outro, é preciso tratar simultaneamente de seus limites, visto que, ponderando o princípio da convivência entre liberdades, constatamos que os direitos fundamentais são relativos, observando caso a caso suas dimensões.

Diante da relativização dos direitos fundamentais, nenhuma prerrogativa pode ser exercida de maneira danosa à ordem pública, pois sofrem limitações de ordem ético-jurídica, evitando que uma garantia seja exercida com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, sendo justamente esse conflito que deve se evitar e responsabilizar os excessos entre os princípios da liberdade de imprensa, presunção de não culpabilidade e o princípio da publicidade (BULOS, 2014, p. 533-534).

Seguindo esse raciocínio, Alexandre de Morais (2003, p. 61) sustenta que “os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (princípio da relatividade)”.

Diante do exposto, concluímos que não existem direitos com caráter absoluto, visto que podem sofrer restrições recíprocas, preponderando um sobre os outros, a depender do caso concreto, mas sempre preservando seu núcleo essencial.

No Processo Penal Constitucional, devem ser garantidos todos os direitos ao acusado, além de julgamento imparcial, livre de ingerências externas. Os princípios da publicidade e da liberdade de imprensa, no entanto, por vezes, se mostram antinômicos ao devido processo legal, pois geram interferências indevidas ao mesmo.

Algo que em sua origem fora concebido para proteger os cidadãos e a sociedade dos excessos do Estado, vem se mostrando mais violadores do que protetores, em razão da facilidade de acesso, velocidade de transmissão, superficialidade, alcance e volume de informações na sociedade moderna.

Nesse sentido, Grinover, Cintra e Dinamarco (2002, p. 156) discorrem:

[...] toda precaução deve ser tomada contra a exasperação do princípio da publicidade. Os modernos canais de comunicação de massa podem representar um perigo tão grande como o próprio segredo. As audiências televisionadas têm provocado em vários países profundas manifestações de protesto. Não só os juízes são perturbados por uma curiosidade malsã, como as próprias partes e as testemunhas veem-se submetidas a excessos de publicidade que infringem seu direito à intimidade, além de conduzirem à distorção do próprio funcionamento da Justiça através de pressões impostas a todos os figurantes do drama judicial.

Publicidade, como garantia política – cuja finalidade é o controle da opinião pública nos serviços da justiça – não pode ser confundida com o sensacionalismo que afronta a dignidade humana. Cabe a técnica legislativa encontrar o justo equilíbrio e dar ao problema a solução mais consentânea em face da experiência e dos costumes de cada povo.

No procedimento especial do Tribunal de Júri, se mostra ainda mais presente esse confronto entre os princípios supracitados e o Processo Penal Constitucional, principalmente em relação à inobservância do princípio de não culpabilidade, vez que o conselho de sentença é composto por seus pares, os quais são leigos e desprovidos de conhecimento técnico-jurídico para desassociar informações extraprocessuais de sua convicção para o julgamento.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, XXXVIII, institui a formação do conselho de sentença, o qual assegura ao acusado a plenitude de sua defesa, o sigilo da votação, a soberania do veredicto, constituindo também como cláusula pétrea a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, em seu art. 60, § 4o, IV. Conforme defende Guilherme de Souza Nucci (2007, p. 667), o júri além de ser uma garantia individual, sobretudo, também é um direito individual.

Ocorre que, apenas um repasse desenfreado de informações, repassadas fora do contexto, de maneira superficial e parcial, tem trabalhado em desfavor da sociedade e do processo penal, banalizando a notícia de forma apelativa e emotiva, marginalizando a eficiência das decisões penais e fragilizando as decisões do júri, uma vez que o mesmo deixa de ser imparcial (VIANNA, 2015).

No que tange aos processos de grande repercussão, a utilização de maneira irrestrita do princípio da liberdade de imprensa, além de dirimir outros princípios de suma importância trazidos pela Constituição de 1988 (direito a intimidade, vida privada, honra, presunção de não culpabilidade), tem permitido a atuação irresponsável quanto à abordagem dos crimes contra a vida, espetacularizando o cárcere e fomentando um ódio cego ao réu, ignorando direitos e garantias, os quais são substituídos por uma busca incessante pela condenação.

O ponto é que o tribunal de sentença, como expressão maior de legitimidade e da democracia no nosso ordenamento jurídico-social, passa a ser temerário, sendo necessário proteger esse sistema dos excessos midiáticos, sob o viés sensacionalista, punindo eficazmente os que se excedem no uso da publicidade, reforçando o processo de responsabilização por violações que estraçalham qualquer chance do exercício da defesa.

É indiscutível que a mídia desempenha um papel crucial em nossa sociedade, tornando a informação acessível à população quase que em tempo real, além de atuar como relevante fiscal e porta voz da sociedade. O problema é quando a mídia vem galgando seu espaço como uma nova espécie legisladora e julgadora, tendo se empossado de maneira indireta de atribuições que cabem única e exclusivamente ao poder judiciário, pois é certo que incumbe a este julgar e condenar o eventual acusado, haja vista ser o detentor legítimo da função, de tal maneira que não é possível a qualquer outra função do Estado ou entidade empreender na atividade judicante (OLIVEIRA, 2014).

Luciano Feldens (2007, p. 71) afirma que:

O poder punitivo está dentre os deveres estatais sobre os quais receio do monopólio da jurisdição. No exercício desse monopólio, a União estruturou competências orgânicas constitucionais para a solução dos casos penais é do Poder Judiciário, considerando, ainda como função essencial à Justiça, o Ministério Público da União e dos Estados (art. 127 da CF/88) e a Advocacia/Defensoria Pública (art. 133 e 134 da CF/88).

É oportuno dizer que a violação do princípio da não culpabilidade tomou proporções irreparáveis, uma vez que, por força de mera especulação, o sujeito é presumido culpado baseado apenas em suposições. O assunto permanece por semanas, gerando comoção e intolerância por parte da população para com os atores envolvidos no processo e com o próprio procedimento.

Este julgamento antecipado promovido pela mídia pode levar a erros judiciários, pois, quando se trata do conselho de sentença, a bagagem subjetiva de cada um dos jurados, agindo de acordo com sua liberdade de consciência no momento do seu voto, e após ser exposto a uma exploração sensacionalista desenfreada por parte dos meios de comunicação, de pronto a ampla defesa já está comprometida.

Corroborando a respeito do tema, Ana Lúcia Menezes Vieira (2003, p. 246) assim manifesta:

[...] o jurado é mais permeável à opinião pública, à comoção, que se criou em torno do caso em julgamento, do que os juízes togados e, por sentirem-se pressionados pela campanha criada na imprensa, correm o risco de se afastarem do dever de imparcialidade e acabam julgando de acordo com o que foi difundido na mídia. (VIEIRA, 2003, p. 246).

Diante de tal afirmação, até mesmo os mecanismos de proteção a um julgamento justo e imparcial, como o deslocamento do julgamento pra outra comarca (amparado no art. 427 do Código de Processo Penal) tornam-se ineficazes, uma vez que inexiste localidade em que a influência midiática não se faça presente.

Neste contexto, é nítido que todo o procedimento é mero formalismo, pois após uma verdadeira campanha de acusação, tendenciosa e parcial, quais seriam as chances de um julgamento imparcial? Rogério Lauria Tucci (1999, p. 42), citando o jurista Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, em uma outra oportunidade, já realizara tal indagação, quando asseverou que:

[...] suponhamos que no júri dos supostos assassinos de Daniela Perez um ou dois mais réus fossem inocentes. Ele, ela, ou eles teriam alguma chance de absolvição, depois da operação de ‘linchamento’ montada pela mãe da vítima com o apoio da Rede Globo e de toda a mídia nacional? Claro que a resposta é negativa. (TUCCI, 1999, P. 42).

Corroborando com o que vem sendo apresentado no presente trabalho, e a fim de demonstrar as consistentes ameaças postas pelos veículos de comunicação nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, mais especificamente nos casos de grande repercussão, há um crescente número de estudos objetos de pesquisa. Entre esses, verificam-se as consequências e os efeitos da influência midiática no Tribunal do Júri, num estudo experimental de Sue, Smith e Pedroza, no qual aproximadamente 158 universitários participaram de um júri simulado, sendo que alguns foram expostos a uma prova inadmissível, que inclinava fortemente a culpa para o acusado. Na segunda fase, todos os participantes foram instruídos a ler a síntese do julgamento de um caso criminal e em seguida proferir decisões individuais. O que foi observado pelos pesquisadores é que o grupo que havia sido exposto a informações desvantajosas ao réu proferiu mais decisões condenatórias, se comparado ao grupo que havia sido exposto a uma publicidade neutra – 53% contra 23%, respectivamente.

Apesar de os próprios participantes afirmarem que não teriam sido influenciados, os pesquisadores concluíram que os jurados tendem a ficar mais suscetíveis a condenar o acusado quando expostos a publicidades tendenciosas, não obstante as suas próprias convicções de que não teriam sido influenciados por ela.

Neste seguimento é também a conclusão a que chegaram Ruva, McEvoy e Bryant, que também conduziram um estudo se utilizando de um júri simulado, este com 558 estudantes, o qual conclui que a publicação de informações negativas sobre o réu tem grandes chances de influenciar o processo. Ficou demonstrado que jurados expostos a informações prejudiciais à defesa do réu propendem a condená-lo, bem como atribuir uma maior classificação quanto à culpa e inclusive a impor sentenças mais longas.

Dessa forma, só nos resta constatar que, no ordenamento jurídico, não há direito absoluto e, justamente por não haver limites definidos, frequentemente entra-se em constante colisão com direitos constitucionalmente reconhecidos, como a liberdade de imprensa e o princípio da não culpabilidade.

Diante desse quadro, verificamos que a mídia, respaldada pelo princípio da publicidade e da liberdade de imprensa, vem praticando indevidos excessos ao se utilizar de informações tendenciosas, espetaculosas e desmedidas, com o único propósito de gerar maior audiência, ferindo gravemente princípios constitucionais que procuram resguardar o direito à ampla defesa e à não culpabilidade.

Assim, quando um direito individual puder sofrer prejuízo que justifique a limitação da liberdade de imprensa, este direito deve prevalecer, tendo como norte a dignidade da pessoa humana. Mas não apenas isso, se faz necessário que a própria sociedade reconsidere sua aversão a notícias imparciais e que distorcem os fatos para proveito próprio, resguardando assim a legitimidade do tribunal do júri e o direito do réu a um julgamento justo.

 

 

CONCLUSÃO

O desenvolvimento dos meios de comunicação, com significativo aumento da velocidade de transmissão e do volume de informações, e principalmente o crescente interesse midiático por assuntos de âmbito criminal e reportagens policiais criam um cenário propenso a possíveis violações de direitos e garantias individuais, como direito à vida privada, à honra, ao direito de não ser considerado culpado.

O processo penal constitucional, alinhado com os postulados de um Estado de Direito, não pode permitir interferência indevidas e influências extraprocessuais ao arrepio da ordem jurídica.

A Constituição Federal assegura ao acusado em processo penal a condição de inocente até que se transite em julgado a sentença condenatória; mas, por vezes, a exposição excessiva dos fatos e do suspeito por parte da mídia acarreta em uma antecipação da culpa e em prejuízos ao devido processo. No procedimento especial do Júri, essa interferência indevida se mostra ainda mais latente.

A liberdade de imprensa se posiciona como pulmões da sociedade, haja visto que garante aos cidadãos a possibilidade de posicionarem-se conforme sua consciência, mas que, apesar da importância sublime, carrega em si potencialidade lesiva, passível de responsabilização nos limites constitucionais.

Por fim, concluímos, que se faz necessária uma ponderação em relação aos princípios da publicidade no que tange aos processos judiciais e quanto ao princípio da liberdade de imprensa, para que não se impossibilite o exercício das garantias individuais estabelecidas pela Constituição, gerando injustiças ou consequências além da sanção penal devida.

 

Notas e Referências

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista de Direito Constitucional e Internacional. v. 58, p. 129-173, jan.-mar./2007.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Org. Ridendo Castigat Moraes. Milão, 1764. Disponível em <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf>. Acesso em 24 jun. 2018.

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