Processo e Ideologia, de Ovídio Araújo Baptista da Silva - Por Marcelo Pichioli da Silveira

03/11/2017

Confira a análise no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=-9uQ5a3-2qc 

Ovídio Araújo Baptista da Silva foi Livre-Docente e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faleceu no dia 22 de junho de 2009. Escreveu inúmeras obras de calibre ímpar para a processualística nacional. Delas, lograram grande destaque, além da que agora se comenta: a) Jurisdição e Execução na Tradição Romano-Canônica; b) Jurisdição, Direito Material e Processo; e c) As Ações Cautelares e o Novo Processo Civil.

Há doze capítulos em Processo e Ideologia: 1) “O Pensamento Ideológico”; 2) “Os Juristas e o Poder”; 3) “Processo, Racionalismo e Reforma Religiosa”; 4) “O Paradigma Racionalista e a Tutela Preventiva”; 5) “Fundamentos do Procedimento Ordinário”; 6) “Demandas Plenárias e Sumárias”; 7) “‘Ação’ e Ações na História do Processo Civil moderno”; 8) “Tempo do Processo e Regulação da Sucumbência”; 9) “Uso Alternativo do Procedimento Ordinário — Tutelas de urgência”; 10) “Os Recursos — Viés Autoritário da Jurisdição”; 11) “Do Lógico ao Analógico”; e 12) “Processo Civil, Individualidade e Democracia”.

Conceito de “ideologia” adotado na obra: logo no primeiro capítulo, Ovídio Araújo Baptista da Silva gasta boas páginas para considerações gerais sobre ideologia. Tenta fornecer ao leitor suas premissas, como se anuncia ainda na introdução: “decidimos reservar um longo espaço [...] ao exame do conceito de ideologia, por entender que essa discussão prévia facilitará a compreensão dos temas inerentes ao Direito Processual, que é o nosso objetivo”[1].

Ovídio invoca, basicamente, Francis Bacon (“doutrina dos ídolos”) para trazer algumas divagações sobre ideologia. Lembra que Bacon não utilizou o vocábulo “ideologia” — só mais tarde adotado (século XVIII) por Cabanis, Destutt de Tracy “e seus amigos”, segundo L. Althusser, citado por Ovídio —, mas “sua concepção dos idola como uma falsa ou distorcida representação da realidade coincide, pelo menos para a maioria das doutrinas formadas posteriormente, com o conceito de pensamento ideológico”[2]. Para Ovídio, a ideologia se liga umbilicalmente aos pressupostos racionalistas (já que racional é o sujeito capaz de blindar-se de sentimentos próprios para “penetrar na essência das coisas”[3]).

Ovídio Araújo Baptista da Silva, então, avisa ao leitor que devemos precaver-nos contra alguns riscos. Um deles “está representado pela tendência que temos de atribuir a nossos opositores a condição de ideólogos, na suposição implícita de que dispomos de um ‘ponto de Arquimedes’ [...]”, quando passamos a ver no “outro” alguém que jamais atingiria a “nossa” conclusão “verdadeira”[4]. A (suposta) neutralidade é uma marca do pretenso racionalismo do Estado Moderno, e nele “a concepção corrente [= atual, contemporânea] pressupõe que a pessoa que se diz isenta de ideologia – ou que acusa o ‘outro’ de ideológico –, haja superado sua própria cultura, encontrando o sonhado ‘ponto de Arquimedes’, de onde, livre de qualquer compromisso com a tradição que o tenha formado, haja atingido a verdade absoluta”[5].

Outro risco, avança Ovídio, é o de ideologias totalizantes ou totais dominarem nossos instintos. Um conservador teria, como “marca registrada”, um pensamento que privilegia a “‘naturalização’ da realidade que ele próprio elabora, de modo que todo aquele que procura questioná-la torna-se, a seus olhos, ideológico” — e no direito processual essa “naturalização” das coisas “tem uma extraordinária significação”, sendo ela “um dos pilares do sistema”:

[e] é através dela que o juiz consegue a tranquilidade de consciência, que lhe permite a ilusão de manter-se irresponsável. Se ele recusar-se a outorgar alguma espécie de tutela que, de algum modo, modifique o statu quo, imaginará que sua imparcialidade será preservada. Para o pensamento conservador, manter o statu quo é o modo de não ser ideológico. O magistrado que indefere a liminar pedido pelo autor não imagina que esteja outorgando, diríamos assim, uma “liminar” idêntica ao demandado, apenas de sinal contrário, enquanto idêntico benefício processual, permitindo que ele continue a desfrutar do statu quo a custo zero. Este é o suporte teórico que legitima [...] a plenariedade da cognição [...][6]. 

Assim, diz Ovídio, “não é tarefa difícil descobrir as raízes ideológicas que presidem o sistema processual, mantendo seus compromissos com o Racionalismo”, e daí emana “a suposição de que a lei jurídica seja uma proposição análoga às verdades matemáticas”[7]. Isso descamba, no processo, da seguinte maneira: 

O chamado “processo de conhecimento”, na verdade processo somente “declaratório”, vocacionado para demandas plenárias, é o instrumento dessa ideologia. É através do “processo de conhecimento”, ordinário por natureza, que o sistema retira do magistrado o poder de império de que se valia o pretor romano, ao conceder a tutela interdital. É por meio dele que o sistema pretende manter a neutralidade – melhor, a passividade – do juiz durante o curso da causa, para somente depois de haver descoberto a “vontade da lei” (Chiovenda), autorizar-lhe a julgar, produzindo o sonhado juízo de certeza. Ao contrário dessa ingênua ilusão, o juiz começa a formar seu convencimento desde o momento em que a causa lhe é atribuída. Seu julgamento muitas vezes está formado já no momento em que se encerra a fase postulatória.

Dirão, os que proclamam as virtudes do procedimento ordinário, que os juízos que o magistrado fizer, antes do completo encerramento da causa, serão baseados em verossimilhança, porquanto lhe faltariam as informações capazes de permitir-lhe um juízo de certeza. A objeção, porém, por si só se anula. Se o procedimento ordinário desse julgador as condições conhecer com certeza – a “vontade da lei”, então não teríamos como justificar o número extraordinário de recursos contra esse julgamento e menos ainda justificar a descoberta de outra “vontade da lei”, nos casos em que o tribunal do recurso venha a reformar a sentença[8]. 

Juristas & relações de poder: no segundo capítulo, Ovídio sugere uma suposta “separação entre teoria e prática” jurídica, e isso teria possibilitado, às classes dominantes, “dois resultados significativos: (a) sujeitaram os magistrados aos desígnios do poder, impondo-lhes a condição de servos da lei; e (b), ao concentrar a produção do Direito ao nível legislativo, sem que aos juízes fosse reconhecida a menor possibilidade de sua produção judicial, buscaram realizar o sonho do racionalismo de alcançar a certeza do direito, soberanamente criado pelo poder, sem que a interpretação da lei, no momento de sua aplicação jurisdicional, pudesse torna-lo controverso e portanto incerto. A história das cortes de cassação europeias testemunha esta ideologia”[9]. O ensino do direito seria “geométrico”, e assim pretendera Savigny, que curiosamente teria se embebido dos escritos de Leibniz e de Locke[10]. E diz Ovídio:

 

A epistemologia de nossa Universidade excluiu do currículo o “caso”. Essa redução metodológica elimina o fato, como elemento constitutivo do jurídico, sonegando aos estudantes a dimensão problemática inerente ao fenômeno jurídico. Reduz o Direito à norma, dada a impossibilidade própria da cultura moderna, com seu pensamento more geométrico, de pensar o individual, de conviver com a diferença que produzirá, no Direito, as indesejáveis incertezas que o racionalismo tanto temia[11]. 

 Críticas ao neoliberalismo: Ovídio Araújo Baptista da Silva mostra bem o seu tom ideológico (curiosamente, ideólogo seria “o outro”, segundo passagens iniciais do livro) quando imputa ao neoliberalismo um “ataque impiedoso” deste sobre o Estado, “em seu empenho de privatizá-lo ainda mais, destruindo metodicamente o sentido de coletividade, numa exasperação do individualismo que é, como se sabe, o pilar da modernidade”[12]. Pouco antes, contraditoriamente, Ovídio referia-se ao imperium estatal para criticar uma “dominação” de elites econômicas. O paradoxo é este: com mais Estado, Ovídio enxerga dominação econômica; com menos Estado, idem.

O processo civil, o racionalismo e as reformas religiosas: o renascimento italiano seria fundamental, diz Ovídio Araújo Baptista da Silva, para o que hoje chamamos de “Idade Moderna”[13]. Desses movimentos surgiu o Humanismo, mais tarde transformado em individualismo[14]. Este, por sua vez, teria origem remota no cristianismo, tanto que a “própria Reforma Religiosa outra coisa não foi senão o resultado de uma releitura dos mesmos textos bíblicos que haviam inspirado a Idade Média”[15]. Assim, o estudo do processo civil passa por essa premissa (a “ideologia da modernidade, pela via do individualismo”)[16]. 

 

O quadro supra resume essa posição de Ovídio:

[...] é desta perspectiva que se pode vislumbrar o ethos profundo da modernidade, na substituição do catolicismo medieval pela nova cultura das religiões reformadas. Enquanto a Idade Média viveu sob a inspiração religiosa do catolicismo, nossa cultura, queiramos ou não, navega na nova galáxia nascida da Reforma Religiosa e da ética do capitalismo. Até porque os filósofos e juristas de maior influência na formação do pensamento moderno eram luteranos, quando não calvinistas[17]. 

Ovídio Araújo Baptista da Silva, então, explora trechos do principal texto de T. Hobbes (Leviathan) para mostrar, na sua leitura, o autoritarismo de sua obra: o juiz, no sistema imaginar por Hobbes, teria de levar em conta o que levou o soberano a criar determinada lei, de modo que a sentença acabaria sendo “sentença do soberano”[18]. O sistema de uniformização da jurisprudência deitaria raízes sobre essas questões formuladas por Hobbes[19].

E segue Ovídio, criticando os modelos de estudo do direito:

 

A criação do “mundo jurídico”, tão presente em nossas concepções do Direito, foi uma consequência inevitável do racionalismo. Não é de se estranhar que nossas Universidades limitem-se a ensinar essas “verdades eternas” que prescindem dos fatos. O direito processual moderno, como disciplina abstrata, que não depende da experiência, mas de definições, integra o paradigma que nos mantém presos ao racionalismo, especialmente ao Iluminismo, que a História encarregou-se de sepultar. Esta e a herança que temos de exorcizar, se quisermos liberar de seu jugo o Direito Processual Civil, tornando-o instrumento a serviço de uma autêntica democracia. É ela a responsável pela suposta neutralidade dos juristas e de sua ciência, que, por isso, acabam permeáveis às ideologias dominantes, sustentáculos do sistema, a que eles servem, convencidos de estarem a fazer ciência pura[20]. 

Neste sentido, o processo civil estaria no bojo de uma separação entre o mundo dos fatos; e um direito abstrato estaria “servindo ao ideário da eficiência capitalista”[21]. Ovídio encerra o 2.º capítulo avisando ao leitor que o objetivo do restante da obra é o de revelar “os reflexos das filosofias do Iluminismo no domínio do direito processual civil”, para mostrar, assim, “que este ramo da ciência jurídica mantém-se servilmente dependente das doutrinas tanto filosóficas quanto políticas desse período da cultura europeia, não obstante tudo o que se viu e escreveu desde o século XVIII até o início do terceiro milênio[22].

O paradigma racionalista e a tutela preventiva: aparentemente, Ovídio nega a diferença entre o positivismo exegético e o positivismo jurídico. “Este modo de pensar o Direito Processual Civil”, diz, “talvez seja um dos ardis mais astuciosos a impedir sua evolução”[23]. E aí estaria um “as dificuldades enfrentadas pela doutrina para conceber uma tutela processual que tenha natureza puramente preventiva”[24].

O paradigma reinante da época de juristas como Savigny (onde o legislador vislumbra fatos futuros; o executivo cuida do presente; os juízes “consertam” o passado) impossibilitava o pensar da tutela preventiva, fundada “em critérios de probabilidade, no qual a certeza matemática cederá aos juízos da verossimilhança”[25].

Após longas considerações críticas sobre o status que a tutela cautelar assumiu em parte da processualística brasileira (Ovídio tece muitas críticas à ideia de “instrumento do instrumento”, chavão muitas vezes imputado ao ato processual de cariz cautelar[26]) e, mais pontualmente, ao que propunha Giuseppe Chiovenda, o processualista gaúcho diz: “se a jurisdição, segundo essa doutrina, deve ser apenas declaratória, então a lide haverá de dizer respeito a relações jurídicas pretéritas, nunca conflitos projetados para o futuro”, e, como dissera Chiovenda, “a ‘obrigação’ a respeito da qual o juiz deve pronunciar-se terá de nascer ‘antes da sentença’”, de maneira que é “impossível conceber um ‘dever de segurança’ destinado a proteger conflitos inexistentes no momento de ter início o litígio”[27].

As críticas prosseguem: 

O que surpreende e revela o núcleo do paradigma racionalista é constatar que esse “pedaço” do meritum causae, ao deslocar-se para uma fase preliminar da ação, ou para formar um procedimento antecedente, de cunho preparatório, deixa de ser de mérito, para tornar-se um provimento de natureza apenas processual. Por que? É fácil descobrir: por ser ele um “julgamento provisório”. O sistema não pode admitir julgamentos provisórios, dado que a missão do juiz é descobrir e revelar a “vontade da lei”, coisa que a provisoriedade do julgamento não alcança. Se é provisório, não será, para a doutrina, por definição, um julgamento de mérito. Para a doutrina, nem mesmo será um julgamento[28]. 

Mais poder para os juízes: a superação do paradigma racionalista, no seio processual civil, estaria na eliminação de qualquer desconfiança (que racionalistas têm) com a discricionariedade judicial — “sem a compreensão hermenêutica que supere o dogmatismo, não haverá solução. E isto supõe discricionariedade[29].

A crítica ao menosprezo doutrinário a respeito da tutela cautelar: Ovídio mostra, várias vezes, algo que parece ter sido frustrante de sua vida acadêmica. Insistiu, anos e anos, em ressaltar questões dogmáticas bem diferentes da que rotineiramente são apresentadas pela processualística nacional a respeito das tutelas cautelares[30].

Chega mesmo a narrar a negativa a um convite de algum professor de processo civil (não citou nomes) para um congresso; e no convite salientou estar cansado de repetir as mesmas coisas por muitos anos sem ter ouvintes verdadeiramente interessados em suas colocações. No decorrer das páginas da obra, imputa isso, reiteradamente, ao dogmatismo reinante de sua época (é o que ele chama de paradigma). Em resumo:

 

Como, para a doutrina, a medida cautelar deve ser provisória, capaz de ser “trocada” pelo “provimento definitivo de mérito” a conclusão inevitável é que o provimento, supostamente cautelar, outra coisa não seja senão um “pedaço” da própria lide “principal”. Consequências: a) não haverá uma lide cautelar; b) o processo “cautelar” será sempre dependente do “processo principal”, como diz o art. 796 do CPC, pois ele não passa de um “pedaço” da “única demanda” que a doutrina necessariamente pressupõe.

A importância da contribuição de Marinoni – que teve o mérito de ser o primeiro a ver com clareza o caráter de “tutela repressiva antecipada” do que ele considera “tutela cautelar” – é mostrar que a tentativa feita pelos juristas italianos de construir uma tutela preventiva, conservando-se fiéis ao paradigma, resultou em completo fracasso.

Nada há de estranho nessa previsível consequência, uma vez que tanto a doutrina italiana, quanto a nossa, atribuem à tutela dita cautelar o caráter de “medidas provisórias”. Basta ler o art. 798 do CPC. Aí está direto que o juiz poderá conceder “medidas provisórias”. É quanto basta que se atrele ao “processo principal”, como um “pedaço” de seu conteúdo. Se o processo principal representar uma forma de tutela repressiva, certamente esse “pedaço” haverá de ter a mesma natureza, apenas concedida antecipadamente.

c) Teori Albino Zavascki, denunciando o caráter antecipatório das falsas cautelares do art. 798, escreve o seguinte: “Quanto ao processo cautelar, é visível a perda de seu espaço no sistema de processo, operada pelo art. 273 do Código de Processo Civil. Notadamente no que diz com as chamadas “ações cautelares inominadas” previstas no art. 798 do Código... eis que as ‘medidas provisórias adequadas’ a que se refere o citado dispositivo, têm, geralmente, natureza antecipatória”.

Surpreende igualmente o silêncio da doutrina a respeito do significativo elenco de cautelares inominadas – não antecipatórias (!) – por nós registrado nos comentários ao art. 799 do CPC. É um exemplo notável do que temos indicado como “cegueira ideológica”, a determinar a impossibilidade de diálogo dentre praticantes de um determinado paradigma (Thomas Kuhn) e quaisquer outros que se aventurem a examiná-lo criticamente. Tudo o que se afasta dos padrões paradigmáticos ou não é lido ou, quando lido, recusado como ideológico. O pensamento dogmático gera, invariavelmente, o “pensamento único”. Precisamente por ser dogmático.

d) Seria, além de inútil, cansativo e monótono relacionar as permanentes manifestações que testemunham a submissão da doutrina ao paradigma, expressando os dois eixos que lhe dão sustentação, o dogmatismo e sua vertente racionalista. Mas o objetivo básico deste estudo é precisamente estabelecer uma conexão teórica, mais do que teoria, prática, entre as grandes linhas paradigmáticas e suas repercussões na doutrina processual e em suas instituições básicas. Veremos, por exemplo, até que ponto nosso alucinante sistema recursal é uma consequência lógica do racionalismo e da doutrina da “separação dos poderes”, como nós a concebemos e, consequentemente, o modo como forjamos o sistema processual[31].

 

Fundamentos do processo ordinário: o “procedimento comum” que hoje conhecemos não passaria de uma expressão moderna do ordo judiciorum privatorum da processualística romana em sua vertente medieval. “Nosso ‘procedimento comum’”, diz Ovídio, é composto pelos dois ramos que acompanham o direito comum medieval (basicamente romano e canônico) “desde o século XIV, o ordinário e o sumário do art. 275 de nosso Código [de 1973, claro]”, conservando-se “fiel aos pressupostos romanos, reproduzindo sua estrutura originária: – é um procedimento que pressupõe uma obrigação como fonte da ação a qual, por sua vez, dá origem a uma sentença condenatória, que irá produzir uma ação executória. A conhecida fórmula romana tinha esta estrutura: obligatio + actio + litis contestatio + condemnatio, gerando uma actio iudicati[32].

Após uma digressão bastante profunda a respeito do direito romanístico, o processualista gaúcho assevera que é falsa a noção segundo a qual o processo tornaria obrigacionais todas as relações de direito material, sendo que o papel exercido pelo racionalismo e pelo normativismo moderno, “ao separar o direito do fato, limita a jurisdição apenas à declaração do direito, confirmando a exclusão da tutela interdital, como uma das funções da atividade jurisdicional”[33].

Tais pressupostos ideológicos seriam tão arraigados em nossa processualística que um Piero Calamandrei, “considerado, com justiça, o maior processualista italiano do século XX, não vacilou em condicionar a natureza de qualquer provimento, à circunstância de ele ser produzido antes ou depois da sentença. Se o juiz concedesse algum provimento executório depois da sentença, estaríamos em presença de uma execução verdadeira. Entretanto, se esse mesmo provimento viesse antes da sentençaapesar das aparências (?) –, deveríamos tê-lo como uma medida cautelar[34].

O capítulo VII — “Ação” e Ações na História do Processo Civil Moderno — é voltado a interessantes comentários sobre a conhecidíssima polêmica entre Bernhard Windscheid e Theodor Muther, que serviu de germe para o avanço de muitos estudos de direito processual uns mais publicistas, outros menos , já que esse embate fomentou “a teoria do direito subjetivo como poder de exigir uma prestação alheia (que tantos embaraços iria criar à teoria do processo)” e “preparou o campo para todo o vigoroso progresso da teoria da ação”[35], com autonomia ao direito processual em relação à concepção civilista[36]. Não sem razão, Galeno Lacerda sustenta que “a análise histórica da teoria da ação é a mesma análise da paulatina independência do direito processual em relação ao direito material”[37].

Como salienta Celso Agrícola Barbi, Adolph Wach demonstrou “ser a ação substancialmente diversa do direito subjetivo que ela visa a proteger, constituindo direito autônomo” e provou “pela existência da ação declaratória negativa, que a ação pode existir independentemente de um direito subjetivo e, no caso daquela ação, ela pressupõe exatamente a inexistência da relação jurídica”. Foi este reconhecimento da existência da ação declaratória negativo o “golpe de morte da doutrina civilística da ação”[38].

Bem antes de C. A. Barbi, Gabriel José Rodrigues de Rezende Filho dissera que “o golpe de misericórdia” sobre a teoria imanentista “é a existência [...] das denominadas ações meramente declaratórias”, pois nessas ações “o autor não se arroga direito algum contra o réu; quer sòmente [sic] eliminar um estado de incerteza objetiva quanto ao seu direito; deseja apenas saber se tem certo direito, ou, ao contrário, se está sujeito a certa obrigação; ou, ainda, indaga da autenticidade ou falsidade de um documento que lhe interessa. [...]. Esta ‘independência’ do direito de ação é ainda mais impressionante nas ‘ações declaratórias negativas’, em que a sentença declara a inexistência de uma obrigação do autor: a que direito material corresponderá, neste caso, a ação?”[39].

É sobre a superação do “imanentismo” da ação civil[40] de que trata Ovídio Araújo Baptista da Silva, embora o faça com mais propriedade e profundidade do que o texto que agora elaboramos. Basicamente, em Windscheid, “a actio não correspondia, em direito romano, à ‘ação’ processual, estando mais próxima do conceito de pretensão de direito material[41]. Um bom resumo das críticas do próprio Ovídio a esse “construir dogmático” é dado no 1.º volume de seu Curso de Processo Civil: 

Ora, definindo a denominada “teoria civilista”, a “ação” processual como o direito de perseguir em juízo o que nos é devido pelo obrigado, confundiu e misturou as duas realidades, ou seja, o exercício da pretensão de tutela jurídica estatal e a ação de direito material, que é o agir do titular do direito para obtenção “do que lhe é devido”; e, ao assim proceder, não teve como explicar os casos em que ao gente houvesse promovido um processo, sem ter direito, ou seja, ficou impossibilitada de explicar o fenômeno da ação improcedente, pois evidentemente em tal caso a ‘ação’ processual não teria sido o direito de perseguir em juízo “o que nos é devido”... pelo obrigado[42]. 

De qualquer modo, parece-me que o esvaziamento de executividade[s] ou de mandamentalidade[s] do bojo do “processo de conhecimento” era motivo de grande irritação em Ovídio; é fácil perceber seu incômodo com o fato de a cognição em ampla defesa pautar-se numa sentença “só” declaratória, dela decorrendo os efeitos práticos com um processo de execução. “O ‘fazer’ passa a ser um produto da jurisdição”, e o “Estado, como simples oráculo, é quem ‘declara’ o direito. Nada fará o particular senão receber, ou suportar, essa declaração ou a constituição representada pela sentença constitutiva”[43].

Críticas ao instrumentalismo de Cândido Rangel Dinamarco: a despeito de suas premissas publicistas, tão ou mais acentuadas que as de Dinamarco, Ovídio Araújo Baptista da Silva traz severas críticas às concepções do instrumentalismo[44] do referido processualista de São Paulo. Diz:

 

Esta é a explicação para a singular doutrina professada por Cândido Dinamarco, ao dizer que “tempos houve em que a tutela de direitos era apontada como escopo do processo, no sentido de que a jurisdição se exerceria e o processo realizar-se-ia com a finalidade institucional de proteger direitos”. Segundo o ilustre jurista, “o que determinou o banimento da tutela de direitos do sistema e da linguagem do processualista foi a óbvia descoberta de que o processo não é um modo de exercício de direitos pelo autor, mas instrumento do Estado para o exercício de uma função sua, a jurisdição”.

Sim, certamente podemos concordar com Dinamarco em que realmente o imanentismo que confundia a ação com a ação procedente – a ação do autor, enquanto entidade de direito material – era impróprio para conceituar a “ação” processual (!). Esta como sabemos, é abstrata e exercida mesmo quando a sentença seja de improcedência, consequentemente impossível de ser confundida com a “ação de quem tem direito” (portanto, material). Porém, entre afirmar que o “escopo” do processo não é mais a “tutela de direitos”, porque fora equivocado identificar a ação com o exercício de direitos “pelo autor”, há um espaço conceitual considerável. O equívoco da doutrina fora identificar o “escopo” do processo com a proteção do direito (material!) do autor, mas isso não afasta que o processo tenha como “escopo” tutelar o “direito público à jurisdição”, de que o autor se vale ao promover a “ação” (processual!”). Passa-se do plano do direito material para o plano do processo como demasiada ligeireza[45].

 

Seria inconcebível, da perspectiva ovidiana, deixar de diferenciar a ação de direito material da ação processual. Aqueles que não fazem essa distinção “cometem erro de gramática”[46].

Influência de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda: há vários trechos em que Ovídio demonstra a repercussão das lições ponteanas sobre suas propostas dogmáticas. Na parte que me pareceu mais sintomática, diz: “não fica bem à cultura jurídica brasileira ignorar a obra de Pontes. O repúdio, in limine, de sua contribuição não faria honra à qualidade de nossa doutrina”[47].

Louvor ao direito das ordenações do reino português e ao direito romano: um dos grandes méritos de Ovídio Araújo Baptista da Silva esteve em conhecer, com vastidão impressionante, o direito romano e o direito medieval. Isso repercute nos exemplos de instituições jurídicas do passado, sempre interessantes. Um que me pareceu interessante está na demonstração de uma forma de tutela preventiva (um tanto ampla) ainda nas Ordenações Afonsinas. Segundo Ovídio, “era a prevista nesta disposição: Ord. Liv 3º, Tít. LXXX, § 8º: ‘E em tal apelação ou protestação assim feita deve ser inserta e declarada a causa verossímil e rezoada, porque assim apelou, ou protestou, como dito é nas apelações. Pode-se por exemplo: Eu me temo de algum, que me queira ofender na pessoa, ou me que ia sem razão ocupar, e tomar minhas coisas; se eu quero, posso requerer ao Juiz que segure a mim e minhas coisas dele, a qual segurança me deve dar; e se depois dela eu receber ofensa do que fui seguro, o Juiz deve aí tornar e restituir tudo o que for cometido e atentado depois da dita segurança dada, e mais proceder contra aquele que a quebrantou, e menosprezou seu poderio’. Além de tudo ‘tornar e restituir’, o Juiz ainda deveria ‘proceder contra aquele que a quebrantou e menosprezou seu poderio’”. Seria este “o Contempt of Court, em sua versão primitiva, ainda com o legítimo sabor romano, previsto nas ordenações do reino português e que, agora, estamos interessados em importar do common law!”[48].

É bem verdade que Ovídio admite não proceder, ali, com um percurso de matriz essencialmente historiográfica, mas ele consegue chamar a atenção de qualquer leitor para o fato de que quanto mais o tempo passou, mais escassos ficaram os casos de tutelas preventivas[49].

Exemplo marcante disto vem narrado no 3.º Volume de seu Curso (destinado ao processo cautelar), onde Ovídio criticou a política legislativa adotada para o arresto no CPC/1973: os preceitos inscritos nos arts. 813 e 814 daquele diploma legal, revelam a “profunda contradição entre os princípios adotados pelo Código, para a tutela cautelar inominada, e as incompreensíveis restrições que o legislador estabeleceu quando cuidou de disciplinar as medidas cautelares específicas”.

Quanto ao arresto, prossegue, “essa contradição é, além de visível, extremamente lamentável. As denominadas causae arresti, agora reproduzidas pelo art. 813 do CPC, perfeitamente legítimas e justificadoras para o direito medieval [...], tornaram-se anacrônicas para o direito moderno, a partir do momento em que os sistemas contemporâneos – descontaminando a tutela cautelar dos elementos executivos que com ela vinham misturados no arresto do direito germânico medieval –, transformaram aquelas causae arresti, especificamente arroladas no art. 813, na previsão genérica traduzida na locução periculum in mora. Quer dizer, lendo-se comparativamente os arts. 798 e 813 é impossível descobrir se os pressupostos contidos neste último dispositivo dispensam a prova do periculum in mora – fazendo [...] com que o preceito geral aqui não se aplique; ou, ao contrário, além da prova de uma das hipóteses do art. 813, ainda teria o autor da ação de arresto de provar o periculum in mora, consagrado pelo próprio legislador como princípio geral legitimador da tutela cautelar”[50].

“E o que é pior”, dizia Ovídio, “nosso vigente Código de Processo Civil [referindo-se ao de 1973, claro], no intuito de restringir o arresto, a ponto de torná-lo irreconhecível, utilizou-se dos princípios do direito medieval sempre que tais princípios pudessem auxiliá-lo nessa obra de mutilação, mas sem o menor embaraço os abandonou, para buscar na doutrina e nas instituições do século XIX português, o apoio necessário, mesmo contra aqueles princípios inscritos das Ordenações do Reino português, que poderiam liberar o arresto das peias com que pretendeu amarrá-lo nosso legislador”[51].

Daí a coisa se complicar (“irremediavelmente se complica”) quando são feitas propostas doutrinárias para “a construção de uma tutela só de segurança, portanto uma tutela contra o dano temido, que se qualifique como uma ‘ação principal’. A doutrina não é capaz de conceber um tipo de tutela que, apoiando-se num juízo de probabilidade, seja, sob o ponto de vista processual, autônoma. Se a tutela é cautelar, jamais poderá ser ‘principal’. Se ela for principal, é porque nunca foi ou, se o fora, teria perdido a cautelaridade”[52]. Ocorre que “ser autônomo, consistir em demanda processualmente terminal, que não exija a propositura de outra demanda principal, nada tem a ver com o ser ou não ser cautelar. Autonomia processual é uma coisa; satisfatividade do direito é outra, muito diferente[53].

Este caráter satisfativo inerente à tutela cautelar (!) corresponderia ao que Ovídio chama de “pretensão à segurança”, o qual, “naturalmente, é satisfeita através da medida cautelar. A medida não satisfaz o direito assegurado, porém certamente satisfaz minha ‘pretensão à segurança’. Pontes dizia que a tutela cautelar corresponde a uma ‘pretensão à segurança da pretensão’. É óbvio que posso ‘exigir’ segurança, e, quando a exijo, terei como resposta a satisfação dessa pretensão”[54]. A “saída lógica” encontrada pela plenariedade totalizante (do “paradigma racionalista”) seria o contraditório invertido, como sugere Ovídio ao dialogar com textos de Galeno Lacerda[55]... O trecho adiante (do próprio Ovídio) resume tudo isso que ele defende:

 

Tanto as ações cautelares acabam transformadas em “pedaços” do processo principal, posto que não se lhes reconhecer, sequer, mérito (o mérito estaria no “processo principal”); quanto igualmente as “medidas antecipatórias” definem-se como interlocutórias, tudo para não ofender o princípio do “contraditório prévio” que preside a ordinariedade. Faz de conta que não se antecipa o julgamento, que aquilo que se antecipa não faz parte da sentença de mérito. O procedimento continua ordinário. Emitir juízos provisórios significa não julgar. Praticamos, portanto, uma forma do que se convencionou chamar uso alternativo do Direito, neste caso, uso alternativo do sistema. Pratica-se uma forma impura de procedimento ordinário, sem que a doutrina veja nisso ofensa à ordinariedade[56]. 

Para um leitor ávido por exemplos, Ovídio traz alguns interessantíssimos. Vejamos (o destaque em negrito é meu):

 

Figuramos, então, o exemplo do locatário que promove uma vistoria ad perpetuam rei memoriam, para afastar a responsabilidade pelo incêndio que, segundo ele, fora devido a caso fortuito ou força maior. Exemplo análogo de cautelar não-incidente nem preparatória dar-se-ia o mesmo inquilino, à véspera de extinção do contrato, promovesse a vistoria para documentar o estado de conservação do prédio locado, cujo contrato obrigava-o a restituí-lo ao locador nas mesmas condições em que o recebera. Nestes casos, o juiz ortodoxo, que insistisse em dar cumprimento ao art. 801 [do CPC/1973], determinando que o autor da ação cautelar indicasse, na inicial, “a lide e seu fundamento” criaria ao inquilino uma situação de perplexidade e um impasse insuperável. Ele simplesmente não tem ação alguma a propor. Seu interesse limita-se a assegurar a prova, a ser eventualmente usada na hipótese de ele ser demandado pelo locador. É cautelar que não protege processo algum. Mais, não protege nem mesmo pretensão ou ação do próprio inquilino. A pretensão à segurança nascera antes de qualquer pretensão satisfativa[57]. 

Críticas ao sistema recursal: Ovídio traz uma série de questionamentos críticos diante da sistemática recursal que ele vivenciava. A ponto de o 10.º capítulo da obra vislumbrar, já no título, os recursos como o “viés autoritário da jurisdição”.

Ao ler suas ideias, lembrei de um rol de críticas de vários processualistas arrolados por Araken de Assis em seu Manual dos Recursos: Oreste Nestor de Souza Laspro dirá que nada assegura, na prática, a superioridade e a correção do segundo pronunciamento (pelo órgão de segundo grau), supostamente emitido para corrigir o primeiro; contra a tese segundo a qual o segundo grau teria membros mais antigos na carreira, Lodovico Mortara notara, há muito tempo, a falácia deste argumento, pois o atributo da experiência, por força de numerosos julgamentos, não se estende a todos os magistrados integrantes do segundo grau; há quem diga que o julgador de primeiro grau pode prevaricar, e isso justificaria o reexame de seus atos (assim: Mancini-Pisanelli-Scialoja e Gabriel Rodrigues de Rezende Filho), mas aí basta perguntar as razões pelas quais não se adotam, logo, colegiados de primeiro grau; e, finalmente, o segundo provimento, quando confirma o primeiro, revela-se inútil... Quando o contraria, expõe divergência que enodoa a confiança e o prestígio do Judiciário (Ada Pellegrini Grinover)[58].

Críticas às “súmulas vinculantes”: ainda lidando com a fase inicial das súmulas vinculantes (criação da Emenda Constituição n.º 45), Ovídio mostra argumentos contrários ao seu uso. Para ele, o pressuposto metodológico da vinculatividade sumular é falho ao negar o caráter hermenêutico do direito. Além disso, a “súmula vinculante” acabaria atravancando a evolução do sistema jurídico, por aprisioná-lo ao passado, “impedindo que a elaboração jurisprudencial lhe permita progredir, em convivência com a constantemente transformada realidade social”[59].

Este ponto me chamou atenção: por mais que conheçamos mecanismos como o distinguishing e o overruling, é de se provocar os processualistas para um estudo causal-explicativo sério (= processologia[60]) a respeito de algum distinguishing já feito sobre enunciado de súmula vinculante.

Apreciações críticas: para um leitor mais acostumado com propostas ovidianas “mais dogmáticas”, Processo e Ideologia pode ser um livro frustrante.

Em primeiro lugar, o recorte histórico da obra é gigantesco: pretendia vislumbrar o contexto de sua atualidade (anos 1990-2000) segundo uma narrativa histórica extremamente abrangente, que inclui Francis Bacon (1561-1626), John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Thomas Hobbes (1588-1679) M. Foucault (1926-1984) (em determinados trechos) etc. Isso para não falar de questões complexas igualmente citadas, como a reforma religiosa e o calvinismo...

Como base em sua construção, Ovídio imputa ao racionalismo tudo o que há de ruim na processualística atual. Aí falar — às vezes com certo deboche ou ironia — em um processo vocacionado ao rito ordinário, ao pleno vislumbrar das defesas.

Ora, em que erro teria incorrido um jurista do porte de Rosemiro Pereira Leal ao ser um verdadeiro entusiasta da ordinariedade e do devido processo legal? “O devido processo, como instituição constitucionalizada”, disse Pereira Leal, define-se “como uma conjunção de princípios-institutos (contraditório, isonomia, ampla defesa, direito ao advogado e à gratuidade procedimental), o qual é referente jurídico-discursivo da procedimentalidade ainda que esta, em seus modelos legais específicos, não se realize expressa e necessariamente em contraditório. O processo, por concretização constitucional, é aqui concebido como instituição regente e pressuposto de legitimidade de toda criação, transformação, postulação e reconhecimento de direitos pelos provimentos legiferantes, judiciais e administrativos”[61].

Ovídio parece repudiar qualquer metodologia que soe como lógica algébrica. Não nos esqueçamos, porém, que F. C. Pontes de Miranda (por ele tantas vezes elogiado e defendido) valia-se de dogmática de cariz essencialmente analítico, a ponto de defender, ipsis litteris, que “para a ciência do Direito o que importa é o Sein, o ser, e não o Sollen, o dever ser”, de maneira que todas as preocupações dos juristas devem se centrar na “objetividade”, na “análise dos fatos”, na “investigação das relações sociais”, já que a Ciência do Direito deve primar pelo método indutivo das ciências naturais (!), reservando-se ao verbo “deduzir” um papel posterior, secundário[62].

Outro ponto que me causou profunda estranheza está no fato de Ovídio — um jurista tão bem preparado e tão estudioso — abusar de pauta metodológica indutiva para chegar aos “resultados” que entende adequados quando, e. g., insiste em reduzir a jurisdição do “Iluminismo” (ou do “paradigma racionalista”) àquela construção chiovendiana de “dizer a vontade concreta da lei”[63].

O conceito jurisdição proposto por Giuseppe Chiovenda é um dos mais famosos, mas não o único. Basta lembrar, e. g., da proposta formulada por Hans Kelsen, para quem a jurisdição tem o condão de criar o direito, havendo, nessa função estatal, uma atividade criativa[64].

A unicidade da jurisdição, em H. Kelsen, deriva justamente da sua visão de unicidade (Ausschliesslichkeit, nos textos originais) e, também, daquilo que chama de “ordem soberana”. Um sistema jurídico é apegado a uma ordem soberana (“no sentido próprio da palavra, que é a ordem total”), sendo impossível que o atributo soberania pertença, “simultânea e igualmente, a vários sistemas de normas ou a várias comunidades jurídicas”[65]. Por isso, todo sistema normativo é uno, único. É por isso Kelsen falava do “princípio da não-contradição”, igualmente aplicável ao “conhecimento normativo”[66].

E o próprio Kelsen, homem que viveu no “paradigma racionalista” tão desdenhado por Ovídio Araújo Baptista da Silva, critica a tentativa de se conceituar a jurisdição apenas segundo a terminologia: a terminologia “dizer o direito” pode nos levar a equívocos. Veja-se:

 

C) 1.º — A sentença

Para alcançar tôda a sua significação, a disposição geral e, por conseqüência, abstracta, que liga a certo facto uma determinada conseqüência, deve ser individualizada. É necessário verificar se o facto previsto in abstracto pela regra geral, existe in concreto, e, no caso afirmativo, aplicar, isto é, em primeiro lugar ordenar e, em seguida, fazer funcionar a sanção prescrita igualmente in abstracto. É êste o papel da sentença, é esta a função da justiça, do poder judicial. Esta função não tem, por forma alguma, um carácter puramente declarativo, ao contrário do que a doutrina tem admitido. Apesar da terminologia enganadora —, «dizer o direito», «achar o direito» —, que poderia fazer-nos pensar que os juízes se limitam a declarar, a exprimir o direito já contido na regra geral, a jurisdição é, na realidade, uma função constitutiva e a sentença um verdadeiro acto de criação do direito. Só a sentença é que cria uma relação entre condição e a conseqüência jurídicas concretas [sic]. Desempenha, no domínio individual, o mesmo papel desempenhado pela lei no domínio geral. Ela é, assim, uma regra jurídica individual, a individualização ou a concretização duma regra jurídica geral ou abstracta; julgar, é continuar o processo de criação do direito, a marcha do geral para o individual.

Só o preconceito que afirma estar todo o direito contido nas regras gerais, por outras palavras, a identificação irrónea [sic] do direito com a lei, pôde obscurecer esta noção[67].

Essa função de criação do direito não seria exclusividade da jurisdição: “entre a lei e a sentença, insere-se o contrato, que individualiza o primeiro elemento da regra geral —, a condição —, e que figura entre as regras que os tribunais têm de aplicar em direito civil”[68]. 

Finalmente, não me parece correto imputar ao ideais iluministas o “sonho doutrinário” de eliminação de “conflitos”[69]. Ora, o conceito carneluttiano de “lide” foi tema controvertido até entre os italianos, havendo polêmica entre o próprio Francesco Carnelutti e Piero Calamandrei, como relata Galeno Lacerda[70].

Esperamos, com esta resenha, contribuir para que o nome de Ovídio Araújo Baptista da Silva não seja esquecido pelos processualistas. Encerro o texto com um belíssimo aparar de arestas de autoria de Adriano Soares da Costa, em resposta às minhas provocações num grupo de processualistas vinculados à Associação Brasileira de Direito Processual:

 

“Querido Marcelo, a sua decepção com esse livro de Ovídio tem razão de ser, porém quero ponderar certos aspectos para contextualizar as razões desse livro. Estive pessoalmente com Ovídio três vezes: duas, em Maceió; uma, no Rio Grande do Sul. A minha experiência foi marcante. Antes de ter estado com ele, havia lido todos os seus livros até então publicados. E usei o Curso... para os meus alunos de graduação, quando ensinei processo. Quando Ovídio esteve em Maceió, soube que havia um professor que usava os livros dele e quis me conhecer. Passamos juntos duas tardes, conversando sobre a obra dele e o seu pensamento. Foi na segunda tarde que disse para ele que o seu conceito de pretensão e de condenação, ambas como exortação, igualava as duas. Daí surgiu a ideia dele de inexistir a ação de condenação. Essa conversa nos aproximou e passamos a nos corresponder e ele passou a mandar livros raros para mim, que gentilmente mandava copiar, encadernar e me fazia ler e discutir.

Aprendi demais com ele. Era secretário de Estado de Administração de Alagoas, com 28 anos, quando fui a uma reunião no RS. Quando ele soube que estava por lá, me surpreendeu com uma viagem para Gramado, com a sua esposa, e passamos dois dias conversando sobre direito, durante toda a viagem pelas serras gaúchas e enquanto estivemos no hotel.

Depois fui recebido em sua casa, em sua biblioteca. Lá, permitiu-me escolher e levar livros que tinha em duplicidade, como obras de Michel Villey, que trouxe em francês. Nesse dia, chegou pelos Correios para a revisão a primeira edição do Curso de Processo, que sairia pela RT. Lembro-me com muito carinho desses dias de muita conversa sobre filosofia e processo.

Queria dividir essa experiência pessoal para mostrar quem era Ovídio.

Agora, sobre o pensamento dele. Ovídio tinha fundas marcas. A sua obra, fundada em Pontes de Miranda, foi propositadamente negligenciada. Não era – depois passou a ser – chamado para muitos eventos, justamente porque pouco querido pela processualística do Largo São Francisco.

E Ovídio, ao estilo, era ácido em seus escritos e um crítico duro de Dinamarco e da ideologia da ordinariedade, como ele chamava.

Lembre-se que ele começou a escrever já no entardecer da sua vida, quando saiu o volume I do Curso. Antes, a sua dedicação ao processo cautelar rendeu três obras específicas.

O Processo e Ideologia é a obra que marca o "último Ovídio", aquele irritado com a teimosia da ordinariedade e vendo parte do seu pensamento sendo positivado, sem que os créditos devidos lhe fossem dados [aqui é interpretação pessoal minha].

Ovídio me cedeu um dos capítulos antes publicado o livro. Mandou-me por email. Comentei com ele a minha dificuldade em entender aquela hipertrofia da discricionariedade do juiz, que via defendida em seus escritos.

Kaufmann estava muito presente naquele momento do pensamento de Ovídio, com um irracionalismo exacerbado.

Parece que o último Ovídio deve ser lido com essa compreensão histórica do seu pensamento: era o Ovídio que tinha um "inimigo" a ser combatido intelectualmente: a ordinariedade, a ineficiência da tutela jurisdicional, o formalismo...

Penso que aí ele "virou o fio", foi além do que a sua obra anterior permitiria...

Por isso, Marcelo Pichioli, concordo com o fundo das suas críticas, mas apenas quero enfatizar que esse era o Ovídio último, após longas batalhas intelectuais com a escola de São Paulo.

Ovídio era um grande mestre, mas também muito duro.

Quero dizer que a sua crítica é bem-vinda. Mas não deixe de enfatizar um aspecto: o direito processual civil brasileiro deve muito a ele; muito mais do que se pode imaginar.

Tutela antecipada, por exemplo, foi uma conquista que muito se deve a Ovídio, que colocou na ordem do dia a discussão sobre cautelaridade e satisfatividade.

Poderia desfiar aqui muito do bem que ele fez e da sua importância. Pouco reverenciada, aliás.

Por isso, como já lhe disse noutro contexto: a maior homenagem que se faz a um autor é debater o seu pensamento, inclusive e sobretudo para criticar, tomando em conta a sua contribuição.

Aprendi isso com Ovídio” (Adriano Soares da Costa, 19 de outubro de 2017).


[1] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 3.

[2] Idem, p. 6.

[3] Idem, p. 7.

[4] Idem, p. 8-9.

[5] Idem, p. 15.

[6] Idem, p. 16.

[7] Idem, p. 16.

[8] Idem, p. 27-28.

[9] Idem, p. 36.

[10] Idem, p. 38-39.

[11] Idem, p. 49-50.

[12] Idem, p. 56.

[13] Idem, p. 59.

[14] Idem, p. 60.

[15] Idem, p. 61.

[16] Idem, p. 61

[17] Idem, p. 64.

[18] Idem, p. 76.

[19] Idem, p. 77.

[20] Idem, p. 79.

[21] Idem, p. 81.

[22] Idem, p. 87.

[23] Idem, p. 89.

[24] Idem, p. 92.

[25] Idem, p. 98-99.

[26] Não há espaço, aqui, para aprofundar essa questão. Ela é mais dogmática. Sobre o assunto, é de se verificar a produção do próprio Ovídio Araújo Baptista da Silva sobre a ação cautelar.

[27] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 107.

[28] Idem, p. 108.

[29] Idem, p. 114.

[30] Essa mesma frustração aparece no texto intitulado O Contraditório nas Ações Sumárias, 16.º ensaio da obra Da Sentença Liminar à Nulidade da Sentença (Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 253-286).

[31] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 123-125.

[32] Idem, p. 131.

[33] Idem, p. 142.

[34] Idem, p. 149.

[35] DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno – volume I. 6.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 69.

[36] LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 217-218.

[37] LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 210.

[38] BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil (volume I, tomo I). Rio de Janeiro: Forense, 1975, p. 39.

[39] REZENDE FILHO, Gabriel José Rodrigues de. Curso de Direito Processual Civil – volume I. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1954, p. 161-162.

[40] Para considerações gerais sobre a teoria imanentista da ação, cf. a 6.ª aula de nosso curso de processo civil neste link: https://www.youtube.com/edit?o=U&video_id=E3t5SVYg2gs.

[41] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 1. 2.ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 76.

[42] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 1. 2.ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 77.

[43] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 186.

[44] Para uma visão crítica a respeito do instrumentalismo, cf. CARVALHO FILHO, Antônio. Precisamos falar sobre o instrumentalismo processual. Empório do Direito, Florianópolis, 2017, disponível em goo.gl/yoxdmG. Acesso em 19 out. 2017.

[45] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 186-187.

[46] Idem, p. 191.

[47] Idem, p. 218.

[48] Idem, p. 220-221.

[49] “Não é o momento de examinar, como seria desejável, o percurso histórico dos juízos cominatórios no direito brasileiro. Tal empenho iria distanciar-nos demasiadamente dos propósitos desta obra. Todavia, não devemos esquecer que, quanto mais nos aproximamos do direito contemporâneo, mais escassos vão ficando os casos de aplicação dessas formas de tutela preventivas” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 220).

[50] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 3. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 163-164.

[51] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 3. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 166.

[52] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 226.

[53] Idem, p. 230 (destaquei).

[54] Idem, p. 231.

[55] Idem, p. 229.

[56] Idem, p. 237.

[57] Idem, p. 232-233.

[58] Cf. ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, todo o trecho no item de n.º 5.1.

[59] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 256-257.

[60] Como temos defendido, a processologia seria um ramo científico autônomo, apto a estudar fatos processuais segundo pauta metodológica oxigenada por vieses empíricos (cf. SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Miguel Reale e o direito processual. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, ano 25, n. 98, abr./jun. 2017, p. 223-246). Aliás, Ovídio Araújo Baptista da Silva traz consideráveis críticas ao (inexplicável) repúdio dado aos estudos de “casos”. Os juristas acomodaram-se na “única classe de ‘cientistas’ proibida de utilizar os casos de sua experiência. Ao contrário, por exemplo, do médico que leva seus casos concretos para os congressos ou os inclui nos livros que publica, ao jurista tal conduta fica terminantemente vedada, como inadequada, quando não eticamente proibida. Naturalmente, ele haverá de utilizar-se de sua experiência, porém esta condição (óbvia) jamais será revelada, senão através dos conhecidos personagens de fantasia – Tício e Caio –, reproduzindo, de resto, o sentido abstrato em que eram traduzidos os casos concretos nos pareceres dos jurisconsultos romanos” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 303).

[61] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. 11.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 91. Agradeço a Diego Crevelin de Sousa o lembrete deste trecho.

[62] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de Ciência Positiva do Direito. Rio de Janeiro: Borsoi, 1922, v. 1, p. 474 e 481.

[63] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 244.

[64] Para considerações gerais sobre a teoria de jurisdição formulada por Hans Kelsen, cf. a 4.ª aula de nosso curso de processo civil neste link: https://www.youtube.com/watch?v=psjFS3TfslE.

[65] KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 46. Nota: segundo Jhonatan de Castro e Silva, essa obra de Kelsen não é, na verdade, a sua Teoria Geral do Estado (que data de 1925). A que agora citamos seria chamada Grandes linhas de uma Teoria Geral do Estado (Grundriß einer Allgemeinen Theorie des Staates, de 1926). Sobre o assunto, cf. KELSEN, Hans. Autoapresentação (1927). In: HANS KELSEN-INSTITUT. Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. (Coleção Paulo Bonavides), p. 23-34.

[66] KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 46.

[67] KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 116-117.

[68] KELSEN, Hans. Teoria Geral do Estado. Trad. Fernando de Miranda. Saraiva: 1938, p. 117-118.

[69] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 164.

[70] Cf. LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 765-769.

 

Imagem Ilustrativa do Post: large on black // Foto de: Ginny // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ginnerobot/3102623100

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura