Problematizando o binômio da “ênfase na punição X proteção precária” enquanto resposta à violência de gênero: é possível subverter tal polarização?

02/04/2017

Por Fernanda Ely Borba – 02/04/2017

Muito embora a temática da violência de gênero ainda seja revestida da subnotificação, o cenário delineado pelas pesquisas mais recentes[1] acena para a persistência do fenômeno, fato que nos remete ao questionamento sobre as respostas (im)pensadas frente a esta violação de direitos humanos.

Paralelo a isso, a ressonância dos movimentos feministas nas mídias sociais (a exemplo da parada internacional de mulheres #8M, a qual teve a adesão de mais de 57 países ao redor do mundo[2]) em protesto a todas as formas de violência e opressão de gênero, pressiona medidas de combate à impunidade[3] e a responsabilização de autores de violência.

Sob o prisma do cotidiano de trabalho na Justiça de Primeiro Grau, observamos o provisionamento de precários serviços de proteção às vítimas, haja vista o número exíguo de casas abrigo, centros de referência de atendimento às mulheres em situação de violência, e dos próprios centros de referência especializados de assistência social e de delegacias especializadas, que são responsáveis pelo atendimento de um público bastante diversificado em contraposição a equipes reduzidas e a deficiências de toda a ordem. O Poder Judiciário[4], o Ministério Público e Defensoria Pública igualmente não ficam atrás, revelando-se irrisório o número de Juizados, Promotorias e Defensorias Especializadas em violência doméstica e familiar contra a mulher no território brasileiro.

Se as medidas direcionadas à garantia de direitos para as vítimas são precárias e incipientes, relativamente a autores de violência torna-se praticamente impensável a implementação de medidas para além da criminalização, o que suscita os seguintes questionamentos: a punição nos moldes tradicionais é suficiente para a resolução da violência de gênero em si? Considerando-se que a violência de gênero é marcada por fatores de ordem cultural, existem outras iniciativas direcionadas a autores de violência que podem contribuir para a alteração do triste panorama brasileiro?

Possivelmente em razão do frágil suporte público para as pessoas em situação de violência e da precária política de formação na área de violência de gênero, é comum identificarmos o recurso ao julgamento moral para subsidiar respostas institucionais, simplesmente culpabilizando a vítima pela condição de violência em que está inscrita. Soma-se a isso, a responsabilização da vítima pela ruptura do ciclo de violência a partir de medidas imediatistas e que são um fim em si mesmas, tais como o rompimento da relação afetiva (ou se esquece que familiares, ex-maridos e ex-namorados também cometem violência?).

Contraditoriamente vemos as vítimas sobrecarregadas ante às imposições institucionais e às condicionalidades estabelecidas pelos serviços: talvez pela atuação fragmentada, pela incipiente (e porque não dizer quase inexistente) intersetorialidade, e pela dispersão territorial dos serviços, visualizamos as vítimas cumprindo uma agenda de intervenções em serviços que muitas vezes coincidem com o horário de trabalho, as múltiplas inserções em serviços pontuais e que apresentam frágeis respostas na modificação do cenário de violência.

Certamente a nuance mais perversa deste quadro incide no fato de que, ao depositar-se todas as fichas na proteção da vítima isoladamente, as expectativas em torno da ruptura da violência recaem exclusivamente a esta última. Nesse sentido, restringe-se a violência de gênero ao caráter estritamente conjugal, olvidando-se a dimensão relacional da violência. Isto quer dizer que se 67% das violências não letais contra mulheres são perpetradas por parentes, maridos e ex-maridos das vítimas (WAISELFISZ, 2015)[5], podemos dizer que a maior parte dos autores e vítimas de violência possui um laço afetivo permanente. Consequentemente, isto implica em operacionalizar medidas de natureza educativa que envolvam autores de violência, no sentido de que desconstruam formas de se relacionar baseadas na violência, e reconstruam formas de se relacionar pacíficas e dotadas do respeito à alteridade.

Logicamente somos sabedoras de que a prioridade da atenção e cuidado deve direcionar-se à vítima, sobretudo por inscrever-se em condição de desigualdade de poder. Contudo, a realidade que se coloca por parte dos serviços tanto de natureza protetiva quanto criminal não seria exatamente esta. Se na relação de violência interpessoal a vítima assume condição de objeto, ao recorrer aos meios institucionais para a resolução da violência de que é alvo depreendemos que tal condição de objetalização não se revela superada, uma vez que no âmbito dos serviços de proteção a vítima é alvo de uma série de imposições e muitas vezes responsabilizada individualmente pela solução da violência, e nos serviços criminais a vítima assume o papel de produtora de provas para a persecução penal, cujo foco privilegiado consiste na resolução do processo judicial em detrimento da resolução da violência em si.

A mudança do panorama no qual o Brasil desponta como um dos países mais violentos em se tratando de violência de gênero implica no fortalecimento da política de proteção às vítimas, mas também às medidas de natureza educativas a autores de violência.  Certamente as respostas polarizadas no binômio vítima X ofensor se mostram inócuas na efetiva alteração do quadro de violência atualmente estabelecido. Emerge assim a implementação de alternativas que minimamente abarquem a complexidade das relações de violência, de modo a contribuir para mudanças, sobretudo no tocante às formas de se relacionar que sejam livres de violência.

E para os(as) defensores(as) da negação absoluta dos direitos humanos para autores de violência, digo-lhes o seguinte: os direitos humanos e sociais precisam ser garantidos muito antes do momento em que a pessoa já se encontra cumprindo pena em razão da prática de violência. Tais direitos precisam ser garantidos, universal e indistintamente, desde que nascemos, por meio do acesso à educação, à saúde, ao lazer, à cultura, a oportunidades de renda e de vida, ao modelo igualitário de gênero, desconstruindo-se rótulos em torno dos papeis masculino e feminino no âmbito da cultura, e oportunizando-se que as pessoas possam traçar novos rumos para além do aprisionamento à condição de violência.

Quando o direito já foi violado, há muito pouco a se fazer para restitui-lo. A violência já foi perpetrada, a cicatriz na alma já se tornou uma constante e a alteração dos rumos de vida já se torna muito mais distante.


Notas e Referências:

[1] Nunca é demais citar as pesquisas realizadas pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) acerca das violências letais e não letais contra mulheres no Brasil, intituladas Mapa da Violência 2012: Homicídio de Mulheres no Brasil e Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil.

[2] MARINS, Patrícia; MOURA, Miriam. Redes Sociais Potencializam Movimento Feminista. Acesso em [http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/redes-sociais-potencializam-o-movimento-feminista] 10/03/2017.

[3] Em estudo sobre feminicídios no Brasil, o Mapa da Violência editado em 2015 ressaltou que o Brasil é o país da impunidade, cujo índice de resolutividade dos inquéritos policiais é baixíssimo, não passando de 8%. Comparativamente, o estudo aponta que em países como os Estados Unidos, França e Inglaterra apresentam respectivamente 65%, 80% e 90% de índice de resolutividade dos referidos inquéritos.

[4] CNJ. Conselho Nacional de Justiça. O Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha. Brasília: CNJ, 2013.

[5] WAISELFISZ, Julio Jacobo (org). Mapa da Violência 2015. Homicídio de Mulheres no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: CEBELA/FLACSO, 2015.


Fernanda Ely BorbaFernanda Ely Borba possui graduação (2004) e mestrado (2007) em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É Assistente Social do Poder Judiciário de Santa Catarina desde o ano de 2008, lotada no Fórum da Comarca de Chapecó/SC. Atualmente é aluna do curso de pós-graduação lato sensu Abordagens da Violência contra Crianças e Adolescentes, promovido pela PUC/RS. Integra o  Núcleo de Pesquisas Sobre Violência (NESVI/UNOCHAPECO). Participa da União Brasileira de Mulheres (UBM) sediada em Chapecó/SC. Compõe a Associação Catarinense dos Assistentes Sociais de Poder Judiciário de Santa Catarina (ACASPJ), exercendo o cargo de presidente do Conselho Fiscal (triênio 2017-2020). Estuda o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes desde o ano de 2002, quando passou a integrar o Núcleo de Pesquisas em Violência do Departamento de Serviço Social da UFSC (NEPEV/DSS/UFSC). 


Imagem Ilustrativa do Post: Just dance // Foto de: screaming_monkey // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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