Coluna O Direito e Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
O presente artigo remete ao enfrentamento de um tema sensível e que é muito caro às pessoas: a privacidade. É um assunto inquietante, que ganhou maior cartaz e atenção com o advento da revolução industrial e difusão dos meios de comunicação, como jornais, outdoors, rádio e televisão. Tais instrumentos contribuíram para exercer papel fundante na divulgação, publicidade e exteriorização de bens, serviços e da vida privada.
A privacidade não se resume apenas ao direito de estar só[1], conforme proposto por Samuel Warren e Louis Brandeis no artigo Right to Privacy[2], que tiveram como cerne do texto a imprensa sensacionalista, que divulgava fatos e imagens da vida privada nos periódicos da época, mas a um direito personalíssimo mais abrangente e valioso à pessoa humana.
Nas palavras do autor Stefano Rodotà, o direito à privacidade significava o direito de manter o controle sobre suas próprias informações e de determinar a maneira de construir a sua própria esfera particular[3]. Já para Daniel Solove, a privacidade é o estado do agente que tem controle sobre as decisões, sobre assuntos que desenham seu significado e valor do amor, carinho ou gosto[4]. Significa dizer que o titular possui o direito a proteger a si mesmo, podendo escolher em compartilhar ou tornar pública questões relacionadas a sua intimidade, crenças, emoções, sensações, desejos e ações. Nota-se, portanto, um direito com maior amplitude e alcance de sentidos que vai além do simples direito de estar só.
Nesse sentido, com o desenvolvimento tecnológico digital, surgiram novas preocupações relacionadas à privacidade, que resultaram, com o passar do tempo, em adequações do direito, ocorridas pela implementação de uma nova cultura originada da sociedade da informação. No Brasil, especificamente, a privacidade foi assegurada como direito fundamental, configurando um requisito da própria natureza humana, consoante disposto no Artigo 5°, X da Constituição Federal.
Entretanto, em tempos de uma realidade virtual, em que plataformas e meios de comunicação digitais estimulam e patrocinam a publicidade e compartilhamento de dados pessoais, seria possivel dizer que a privacidade está ameaçada de extinção?
Pois bem, a privacidade, por ser um direito fundamental, assegurado por cláusula pétrea, não corre esse risco, embora aponte indicadores de enfraquecimento e de direitos restringidos em meio a constantes violações. Isso ocorre, pelo surgimento de novos elementos e hábitos como da utilização de redes sociais, internet e smarphones, que exercem um papel de integração e interação social de improvável reversão. Sob essa perspectiva, as pessoas que não estiverem conectadas, isto é, participando ativamente e inseridas nesse novo circulo digital tecnológico, serão intituladas como ultrapassadas e dissociadas da sociedade contemporânea.
Nessa toada, se privando de fazer parte do show do eu[5], que se mostra, por vezes, imperceptível aos olhos dos titulares ativos nas midias, também se resguardam de colocar a privacidade em risco.
Sob esse contexto, é imperioso que ocorra a preservação de garantias fundamentais, tendo o direito um papel essencial para acompanhar e implementar os intrumentos legislativos e jurídicos necessários, visando a tutela dos cidadãos, especialmente, aqueles considerados vulneráveis e suscetíveis a uma exposição despretensiosa e passivel de lesão de direitos personalissimos.
Nas palavras de Shoshana Zubof a perda da privacidade seria o preço a se pagar por abundantes prêmios de informação[6] e serviços de internet “gratuitos”. A bem da verdade, é que nada é dado gratuitamente sem uma contraprestação, principalmente, quando, na cadeia de consumo, estão envolvidos capitalistas vigilantes da indústria da tecnologia e do e-commerce.
Logo, a preservação de direitos fundamentais, como da intimidade e vida privada, estão direcionando a temática a um patamar elevado de notabilidade, especialmente relacionadas a situações como da compra ilícita de dados pessoais, bem como da coleta e compartilhamento indevido de informações pessoais existentes em aplicativos de redes sociais, lojas virtuais, instituições bancárias etc.
Assim, diante da exposição da imagem, dados e situações da vida privada, que ocorre nos meios de comunicação e plataformas digitais, de uma forma quase que incontrolável, observa-se ainda presente uma dificuldade no sentido de que os titulares possam autodeterminar sobre a manipulação dos seus dados, ceifando direito personalissmo, bem como ameaçando a tutela da privacidade das pessoas.
Por fim, cabe destacar que, embora a preservação do direito à privacidade possa (ou pareça) estar ameaçada, a realidade é que tal direito é indisponível, cabendo ao Estado o dever de assegurá-la em qualquer tempo ou situação, resguardando e protegendo seus titulares contra práticas de compartilhamento, exposição e interferências pessoais ilícitas, abusivas e não desejadas na rede, servindo-se do ordenamento jurídico como mecanismo efetivo de garantia.
Notas e Referências
BRANDEIS, Louis D.; WARREN, Samuel D. The right to privacy. Havard Law Review, v. 4, n. 5, dec. 15, 1890.
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância. A privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes: Tradução Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro. Renovar, 2008.
SIBILIA, Paula. O show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.
SOLOVE, Daniel. Understanding privacy. Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts London, England, 2008.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo. A luta dor um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
[1] BRANDEIS, Louis D.; WARREN, Samuel D. The right to privacy. Havard Law Review, v. 4, n. 5, dec. 15, 1890
[2] Se trata de um artigo que foi reconhecido como a primeira publicação a direito à privacidade, escrito em 1890, por dois advogados americanos.
[3] RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância. A privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes: Tradução Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro. Renovar, 2008, p. 15.
[4] SOLOVE, Daniel. Understanding privacy. Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts London, England, 2008, p. 35.
[5] Nesse contexto, Paula Sibilia escreveu o livro Show do Eu: a intimidade como espetáculo, que trata sobre o impacto da realidade das pessoas nas redes sociais, resultados desta exibição e as consequências à saúde mental de jovens e adultos, diante da exposição cibernética. In: SIBILIA, Paula. O show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.
[6] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo. A luta dor um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020. p. 69.
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