Está assentado que em nosso sistema processual o status libertatis (estado de liberdade) é a regra, e a prisão provisória, a exceção. Nunca é demais lembrar que a Constituição da República (CR) abriga o princípio da presunção de inocência ou, como preferem alguns, da não culpabilidade, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII).
A prisão, seja em flagrante, preventiva, temporária ou qualquer outra espécie de prisão provisória, só deve ser mantida ou decretada em casos excepcionais, extremados e absolutamente necessários quando presentes os requisitos mínimos e indispensáveis para sua manutenção ou decretação. Assim, a conservação da liberdade deve prevalecer até a condenação definitiva, transitada em julgado.
Sobre a excepcionalidade da prisão cautelar o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que:
“A prisão cautelar, que tem função exclusivamente instrumental, não pode converter-se em forma antecipada de punição penal. A privação cautelar da liberdade constitui providência qualificada pela nota da excepcionalidade somente se justifica em hipóteses restritas, não podendo efetivar-se, legitimamente, quando ausente qualquer dos fundamentos à sua decretação pelo Poder Judiciário” (STF – 2ª T. HC 80.379-2 – Rel. Celso de Mello).
Desde meados de 2011, vigora em nosso ordenamento jurídico processual penal a lei nº 12.403/11, que trata da prisão preventiva e de outras cautelares penais. Com a vigência da referida lei o setuagenário Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941) passou a admitir o uso de outras medidas - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares, proibição de manter contato com pessoa determinada, prisão domiciliar, suspensão do exercício da função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira, monitoração eletrônica, etc. - bem menos traumáticas e agressivas que a prisão preventiva.
A prisão preventiva, que pode ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, continua prevista em lei, mas deixou de ser a única medida da qual dispõe o magistrado para assegurara a ordem do processo.
Agora, mais do que antes, entende-se que a prisão preventiva somente poderá ser decretada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, passando a ser a ultima ratio entre as medidas cautelares. Também não se deve admitir a decretação da prisão preventiva quando se tratar de crime cuja pena privativa de liberdade não seja superior a quatro anos, posto que nestes casos a pena privativa de liberdade poderá ser substituída por pena restritiva de direitos.
Importante destacar que as novas medidas cautelares que substituem a prisão preventiva somente devem ser decretadas atendendo aos critérios da necessidade e da proporcionalidade. Lembrando que as referidas medidas, tais como as prisões cautelares, têm natureza provisória e excepcional.
Com a terceira maior população carcerária do mundo (cerca de 730 mil presos) e a que mais cresce, o Brasil possui um déficit de mais de 200 mil vagas no complexo penitenciário.
De igual modo, é impressionante o número de presos provisórios no país, na atualidade, próximo de 300 mil. Esperava-se e desejava-se que, com as medidas previstas na lei nº 12.403/11, diminuir-se-ia consideravelmente o assustador número de presos provisórios, o que lamentavelmente não ocorreu.
A banalização da prisão preventiva e sua utilização como instrumento de apuração e investigação do crime contribuem sobremaneira para o caos do sistema penitenciário que trata os presos provisórios como presos definitivos, sendo ambos tratados indignamente.
Em face do princípio constitucional da presunção de inocência, a prisão preventiva como qualquer outra medida cautelar pessoal não pode e não deve ter um caráter de satisfatividade, ou seja, não pode se transformar em antecipação da tutela penal ou execução provisória (antecipada) da pena.
Infelizmente, por diversas razões, dentre as quais: ignorância; pressão midiática; clamor público; cultura punitiva etc., inúmeros juízes - salvo as exceções que confirmam a regra - resistem em aplicar as medidas cautelares previstas na citada lei em substituição a prisão preventiva que continua sendo decretada em dissonância completa com a Constituição da República e a lei processual penal. Em outros casos, a medida cautelar – substitutiva da prisão preventiva – é aplicada, ainda que a prisão seja reconhecidamente ilegal, pelas mesmas razões já apontadas.
No sentido de que as medidas cautelares não podem ser utilizadas quando a prisão é considerada ilegal, valiosa a Ementa do Recurso em Habeas Corpus Nº 110.779 - Sp (2019/0096542-7), in verbis:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO PEDRA NO CAMINHO. ESTELIONATO MAJORADO, ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA, FRAUDE À LICITAÇÃO E CRIME CONTRA A ORDEM ECONÔMICA. MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. RECURSO PROVIDO. 1. Tanto a prisão preventiva (stricto sensu) quanto as demais medidas cautelares pessoais introduzidas pela Lei n. 12.403/2011 destinam-se a proteger os meios (a atividade probatória) e os fins do processo penal (a realização da justiça, com a restauração da ordem jurídica e da paz pública e, eventualmente, a imposição de pena a quem for comprovadamente culpado) ou, ainda, a própria comunidade social, ameaçada ante a perspectiva de abalo à ordem pública pela provável prática de novas infrações penais. O que varia, portanto, não é a justificativa ou a razão final das diversas cautelas (inclusive a mais extrema, a prisão preventiva), mas a dose de sacrifício pessoal decorrente de cada uma delas. 2. Vale dizer, a imposição de qualquer providência cautelar, sobretudo as de natureza pessoal, exige demonstração de sua necessidade, tendo em vista o risco que a liberdade plena do acusado representa para algum bem ou interesse relativo aos meios ou aos fins do processo. 3. Não se mostram suficientes as razões invocadas pelo Tribunal de origem para embasar a imposição de medidas diversas da prisão ao recorrente, porquanto o próprio acórdão foi claro ao asseverar que o Juízo de primeiro grau não realizou a devida análise da cautelaridade a fim de decretar a custódia preventiva, tanto que reconheceu expressamente que "não se verifica o risco concreto a justificar como necessária a imposição da prisão preventiva". 4. A jurisprudência desta Corte Superior é firme em assinalar a impossibilidade de se agregarem fundamentos diversos, em habeas corpus, para negar ou até mesmo conceder em parte o pedido defensivo. Dito de outra forma, quando o Tribunal a quo asseverou que a decisão do Juízo de primeiro grau não lançou argumentos concretos e bastantes a justificar a prisão provisória, a ele cabia, apenas, a revogação da medida. 5. Recurso provido para cassar o acórdão no ponto em que impôs ao acusado o cumprimento de medidas cautelares.
Assim, toda a vez que a prisão, por si só, for considerada ilegal, não há justificativa para que seja substituída por qualquer medida cautelar. A medida cautelar será igualmente ilegal quando substituir a prisão ilegal.
Por fim, não se pode olvidar que o processo, no ensinamento de Geraldo Prado, “não é apenas o instrumento de composição do litígio penal, mas, sobretudo, um instrumento político de participação, com maior ou menor intensidade, conforme evolua o nível de democratização da sociedade”.
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