Em seu instigante e indispensável “Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos”, ALEXANDRE MORAIS DA ROSA [1] a partir da teoria dos jogos assevera que “as medidas cautelares podem se configurar como mecanismos de pressão cooperativa e/ou tática de aniquilamento (simbólico e real, dadas as condições em que são executadas). A mais violenta é a prisão cautelar. A prisão do indiciado/acusado é modalidade de guerra como ‘tática de aniquilação’, uma vez que os movimentos da defesa vinculados à soltura”.
Em julgamento de habeas corpus (HC 131303 MC – MG) o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) EDSON FACHIN, em decisão datada de 24 de novembro de 2015, indeferiu liminar afirmando que:
“o deferimento de liminar em habeas corpus constitui medida excepcional por sua própria natureza, que somente se justifica quando a situação demonstrada nos autos representar manifesto constrangimento ilegal, o que, nesta sede de cognição, não se confirmou”.
Com todas as vênias, necessário assentar que se a “liminar em habeas corpus constitui medida excepcional”, mais excepcional ainda é a prisão provisória (prisão preventiva), prisão que ocorre antes de uma sentença condenatória transitada em julgado. Não é despiciendo lembrar que a Constituição da República consagra o princípio constitucional da presunção de inocência. Assim, a liberdade não precisa ser fundamentada posto que o status libertatis é a regra. Já a prisão provisória – qualquer de suas modalidades – deve ser sim, muito bem explicada, justificada e fundamentada.
É preciso advertir, salienta JUAREZ TAVARES [2], “que a garantia e o exercício da liberdade individual não necessitam de qualquer legitimação, em face da sua evidência”. Mais adiante, o mestre assevera: “o que necessita de legitimação é o poder de punir do Estado, e esta legitimação não pode resultar de que ao Estado se lhe reserve o direito de intervenção”.
Em nosso sistema, gostemos ou não, a prisão cautelar (provisória) – sem pena – é medida de exceção, extrema e excepcional.
A prisão provisória não pode se constituir em antecipação da tutela penal – execução provisória da pena – também, não deve ter caráter de satisfatividade, o próprio STF assim já decidiu:
“A Prisão Preventiva – Enquanto medida de natureza cautelar – Não tem por objetivo infligir punição antecipada ao indiciado ou ao réu. – A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal.” (RTJ 180/262-264, Rel. Min. Celso de Mello)
Daí a clara advertência do Supremo Tribunal Federal, que tem sido reiterada em diversos julgados, no sentido de que se revela absolutamente inconstitucional a utilização, com fins punitivos, da prisão cautelar, pois esta não se destina a punir o suspeito, o indiciado ou o réu, sob pena de manifesta ofensa às garantias constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal, com a consequente (e inadmissível) prevalência da ideia – tão cara aos regimes autocráticos – de supressão da liberdade individual, em um contexto de julgamento sem defesa e de condenação sem processo (HC 93.883/SP, Rel. Min. Celso de Mello).
Necessário lembrar que a prisão preventiva somente deve ser decretada ou mantida em casos excepcionais e, mesmo assim, quando não há outra medida de caráter menos aflitivo para substituí-la (Lei 12.403/11).
Ainda, segundo o voto do eminente ministro EDSON FACHIN, o fato do paciente do referido habeas corpus ostentar quatro condenações transitadas em julgado, somado ao fato de ter o paciente colocado “símbolo identificador nos monumentos e, em seguida, compartilhado publicamente no facebook com o intuito de estimular práticas criminosas e vangloriar-se em razão dos danos causados ao patrimônio público e cultural”, denota “a periculosidade concreta do agente e o risco de reiteração delituosa a abalar a ordem pública. E, ao contrário do apontado pelo impetrante, tenho que a ordem pública, conforme expressa injunção legal, constitui requisito autorizador da medida gravosa”.
Ora, de todos os fundamentos para a decretação ou manutenção da prisão preventiva, o da “garantia da ordem pública” é o mais atacado e questionado pelos doutos processualistas. Neste sentido AURY LOPES JÚNIOR [3] para quem o conceito de “garantia da ordem pública”, por se tratar de um conceito vago e indeterminado, serve a “qualquer senhor, diante da maleabilidade conceitual”. Mais adiante, o renomado processualista, informa que a origem do referido fundamento remonta
à Alemanha na década de 30, período em que o nazifascismo buscava “uma autorização geral e aberta pra prender”.
Diferentemente da prisão preventiva decretada para assegurar a aplicação da lei ou garantia da instrução criminal, a prisão preventiva decretada para “garantia da ordem pública” nada tem de instrumental, não se trata na essência de uma medida de natureza cautelar que fundamenta a prisão excepcionalmente antes de uma sentença condenatória transitada em julgado.
De igual modo, não se justifica prender ou manter alguém preso em razão de uma imaginária e suposta “periculosidade concreta e o risco de reiteração delituosa”. O conceito de periculosidade é vago, impreciso e indemonstrável. Assim, também, o prognóstico de periculosidade criminal.
Devem ser recordadas, no dizer de FERRAJOLI [4], “as diversas medidas de defesa social presentes em nosso ordenamento – das medidas de prevenção àquelas de segurança, incluindo as medidas cautelares de polícia -, todas irrogáveis não como consequência de fatos legalmente indicados e juridicamente comprovados como delitos, mas derivados de pressupostos subjetivos dos mais variados: como a mera suspeita de haver cometido delitos ou, pior, a periculosidade social do sujeito, legalmente presumida conforme as condições pessoais ou de status, como as de ‘desocupado’, ‘vagabundo’, ‘reincidente’, ‘delinquente habitual’ ou ‘profissional’, ‘de tendência delituosa’ ou similares”.
Infelizmente e lamentavelmente, a prisão provisória – a mais violenta das medidas cautelares – tem se transformado, em nome de um ilusório e fantasmagórico combate à violência e à criminalidade, em regra, em modalidade de punição antecipada.
Decisões como esta tomada pelo douto ministro EDSON FACHIN contribuem sobremaneira para o aumento do encarceramento. O Brasil, com a terceira ou quarta maior população carcerária do planeta, possui mais de 200 mil presos provisórios, sendo que quatro presos de cada dez são provisórios.
No Estado democrático de direito fundado realmente em bases democráticas – democracia material – deve prevalecer o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa. Repita-se, o status libertatis é a regra. A presunção é de inocência. A prisão cautelar como medida drástica e de exceção somente deveria ser decretada como remédio extremo, como ultima ratio. Em caso da imperiosa necessidade de decretação de alguma medida cautelar, que seja feita a opção pela menos gravosa e menos aflitiva ao acusado. Por fim, que seja sempre evitada à prisão e que a liberdade sempre prevaleça.
Belo Horizonte, Primavera de 2015.
Notas e Referências:
[1] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria do jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
[2] TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
[3] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
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