Prisão preventiva como injustiça necessária? O ponto de vista de Ferrajoli – Por Paulo Silas Taporosky Filho

10/09/2017

No capítulo IX do seu “Direito e Razão”, Ferrajoli aduz que a pergunta que deve ser levantada acerca da custódia preventiva é se tal seria uma “injustiça necessária”, ou se seria “apenas o produto de uma concepção inquisitória de processo que deseja ver o acusado em condição de inferioridade em relação à acusação[1].

Saliento aqui que a presente breve exposição é pontual, a qual busca apontar para o ponto de vista de Ferrajoli acerca da prisão cautelar dentro de sua proposta do garantismo, trazendo suas reflexões sobre essa temática para os requisitos que possibilitam o uso da medida no processo penal brasileiro, a saber, especificamente aqueles previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, devendo haver a devida contextualização de cada situação. Friso, portanto, a necessidade do estudo profundo do autor italiano com relação a sua proposta que tanto gera incompreensões – essas decorrentes justamente da ausência de uma leitura e análise criteriosa de usa obra. Assim, ler ao menos “Direito e Razão” por completo é condição necessária para que se possa compreender efetivamente do que fala o seu autor, evitando com isso impropérios imotivados sobre o tema que são vistos em muitos discursos falaciosos por aí.

Dito isso, prossigo. Faço aqui ainda um “corte” com relação aos requisitos elencados no artigo 312 do Código de Processo Penal. Desconsidero no presente escrito a “ordem pública” e a “ordem econômica”, até mesmo por evidente ser a insustentabilidade concreta de tais requisitos como ensejadores da prisão preventiva, em que pese se saiba da frequente utilização desses controversos termos no cotidiano forense para fundamentar decisórios prisionais cautelares.

Até mesmo a doutrina que possui uma postura mais crítica, mais profunda, mais zelosa, ou seja, aquela que de fato faz doutrina, costuma aceitar como justificados enquanto requisitos ensejadores da prisão provisória aqueles outros dois presentes no artigo 312 do Código de Processo Penal, a saber, quando a prisão preventiva é decretada  ”por conveniência da instrução criminal” e para “assegurar a aplicação da lei penal”. Não que tais requisitos padeçam de críticas, mas são pelo menos minimamente coerentes em sua estrutura.

É com relação a leitura que é feita desses requisitos que trago alguns pontos de Ferrajoli sobre a temática. O autor italiano elenca dentre as “necessidades” da custódia preventiva duas finalidades dessa medida: “a do perigo de deterioração das provas e a do perigo de fuga do acusado”. Prossegue, entretanto, em suas reflexões: “certamente ambos esses argumentos atribuem ao instituto finalidades estritamente cautelares e processuais. Mas é isso bastante para considera-los justificados?[2].

Vejamos, por “conveniência da instrução criminal” pode se entender pelo “perigo de deterioração das provas”. O exemplo que comumente se tem é o de que, enquanto solto, o acusado passar a influenciar o ânimo das testemunhas, intimidando-as por algum meio, ou buscando alterar elementos que são ou serão objetos de análise do processo em curso. Assim agindo, certamente estará o acusado deteriorando provas, vez que dada a sua postura, restarão alterados, corrompidos ou influenciados elementos de provas necessárias ou úteis para o processo. Daí se teria preenchido o requisito da “conveniência da instrução criminal” estabelecido pelo código, pois já que solto o acusado estaria corrompendo questões pertinentes ao processo, enquanto preso a instrução criminal estaria preservada, vez que as provas poderiam ser colhidas e produzidas sem que fossem influenciadas pelo ímpeto do acusado em tal situação.

Já com relação ao “assegurar a aplicação da lei penal”, costuma se apontar o “perigo de fuga do acusado” como fator que possibilita o uso da medida de prisão preventiva. Esse perigo não pode ser presumido, ou seja, na hipótese de uma prisão preventiva ser decretada sob tal argumento, o fundamento deve estar corroborado com elementos concretos que apontem para o risco como efetivamente presente. A justificativa é a de que, caso o acusado fuja, a aplicação da lei penal restaria frustrada em havendo condenação.

Como já dito, tais requisitos, mesmo que em grande parte reconhecidos como idôneos, não estão isentos de críticas. A intenção do presente texto é trazer aquelas feitas por Ferrajoli, cujo autor propõe um processo sem prisão preventiva.

Com relação a suposta necessidade de custódia preventiva sob o argumento de “perigo de deterioração das provas”, Ferrajoli sustenta não ser o ideal colocar o acusado em condição de não alterar o estado das provas enquanto tramita o processo – da forma como é feita. Sabemos que não existe prazo determinado para a duração da prisão preventiva, além de que tal argumento é utilizado muitas vezes como retórica que não se justifica quando por exemplo da manutenção da medida após finda a fase instrutória do processo. Ferrajoli vai dizer que ao invés da custódia cautelar, a problemática estaria resolvida de outra maneira de se proceder, a saber:

[...] pela simples condução coercitiva do imputado à presença do juiz e por sua detenção durante o tempo estritamente necessário – por horas ou no máximo dias, mas não por anos – para interroga-lo em uma audiência preliminar ou em um incidente probatório e talvez para realizar as primeiras averiguações sobre suas justificativas.[3]

Reitero a necessidade de contextualização da exposição aqui transcrita e do cenário do processo penal brasileiro (bases, sistema, forma, procedimento...), mas, de qualquer forma, fica registrada a reflexão do autor italiano sobre a questão, o qual aduz que “dentro de uma concepção cognitiva e acusatória de processo ela [a custódia preventiva] não só não é necessária, mas prejudicial à averiguação da verdade por meio do livre contraditório[4], vez que, enquanto preso, o acusado fica prejudicado em providenciar as provas em sua defesa.

Já com relação a suposta necessidade de custódia preventiva pelo motivo de “perigo de fuga do acusado”, Ferrajoli o tem como totalmente infundado. E a razão dessa cautela para com o tal perigo é gerado pela própria medida prevista, pois, como enfatiza o autor, “o perigo de fuga, de fato, é principalmente provocado, mais que pelo medo da pena, pelo medo da prisão preventiva. Se não houvesse essa perspectiva, o imputado, ao menos até a véspera da condenação, teria ao contrário todo o interesse de não se refugiar e de se defender[5].

Ferrajoli elenca ainda quatro razões que refutam a ideia de perigo de fuga do acusado. A primeira delas é a de que ao se levar em conta o mundo atual, com toda a sua internacionalização integrada e a informatização presente na sociedade, seria muito difícil uma fuga definitiva. A segunda é a de que ao optar o acusado pela fuga, o estado permanente de insegurança no qual se encontraria e a clandestinidade na qual teria de viver já se tratariam por si de uma gravíssima pena. A terceira razão se dá em se “supondo que da fuga não restassem rastros do imputado, ela teria alcançado, na maior parte dos casos, o efeito de neutralizá-lo para a tranquilidade das finalidades de prevenção do direito penal[6]. A quarta e última razão seria a de que a severidade das penas é inteiramente proporcional ao risco de fuga.

Numa exposição pontual, em apertado resumo, são tais as críticas, reflexões e propostas de Ferrajoli para a questão da prisão preventiva. Em seu sistema garantista, tal medida cautelar não possui razão de o ser, pelo que tal instituto não comporta lugar no ordenamento jurídico, merecendo ser abolida.

O ponto de vista de Ferrajoli sobre a prisão preventiva, fruto de uma imensa e profunda construção teórica que legitima, sedimentado em ricos e fundamentados critérios de base que merecem estrita observância e respeito, o direito penal, merece ser levado em conta e contextualizado para o processo penal brasileiro. É uma contribuição mais do que salutar que fomenta o diálogo acerca da matéria.


Notas e Referências:

[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 512

[2] Ibidem., p. 512

[3] Ibidem., p. 513

[4] Ibidem., p. 514

[5] Ibidem., p. 514

[6] Ibidem., p. 515


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