Prisão perpétua revisável: de como se criam leis penais sem responsabilidade democrática - Por Paulo Incott

13/10/2017

Nos anos de 2008 e 2009 a Espanha assistiu a um acirrado debate em torno de questões criminais, nascido de dois terríveis eventos que chocaram o país. O primeiro deles foi o estupro e assassinato de Mari Luz Cortés, uma menina de apenas cinco anos de idade. O segundo, o violento assassinato de uma jovem com dezessete anos, Marta del Castillo Casanueva, cujo corpo nunca foi encontrado[1]. 

Estes delitos despertaram uma série de manifestações sociais. No mais amplo e difundido destes, os pais de Marta del Castillo obtiveram 1.600.000 assinaturas para que fosse aprovada uma lei restaurando a pena perpétua na Espanha. 

A Espanha conheceu a efetivação da democracia constitucional em 1978, mas foi só em 1995 que aprovou um novo Código Penal, consolidando uma série de alterações legislativas que haviam ocorrido desde 1978 para adequar a norma penal ao que dispõe a Constituição daquele país[2]. 

Ocorre que a pena perpétua não é compatível com diversos enunciados constitucionais espanhóis, principalmente o que está determinado no art. 25, inciso 2, conforme segue: 

Artículo 25.

2. Las penas privativas de libertad y las medidas de seguridad estarán orientadas hacia la reeducación y reinserción social y no podrán consistir en trabajos forzados. El condenado a pena de prisión que estuviere cumpliendo la misma gozará de los derechos fun- damentales de este Capítulo, a excepción de los que se vean expresamente limitados por el contenido del fallo condenatorio, el sentido de la pena y la ley penitenciaria. En todo caso, tendrá derecho a un trabajo remunerado y a los beneficios correspondientes de la Seguridad Social, así como al acceso a la cultura y al desarrollo integral de su personalidad.

A exigência constitucional de que a pena seja orientada para reeducação e reinserção do delinquente no meio social inviabilizam, para além de qualquer arremedo hermenêutico, a possibilidade de implementação da pena perpétua. 

Diante deste obstáculo e desejando atender o clamor social em torno dos crimes violentos mencionados no início, o Partido Popular propôs uma inovação legislativa com o fim de concretizar uma nova espécie de pena na Espanha: a pena perpétua revisável. 

Antes de tratar do conteúdo da proposta, da modalidade da pena em si, das fundamentações retoricamente aventadas e das resistências que foram opostas, cabe uma breve reflexão sobre a questão da criação de leis penais em Estados Democráticos de Direito. 

Leis penais no regime democrático representativo: o processo de criminalização primária 

A atividade legiferante em matéria penal precisa ser exercida com muito cuidado em uma democracia. Definir as condutas que deverão ser criminalizadas e em que grau deverão ser apenadas produz uma série de impactos em cadeia. Por melhor que seja, a lei penal tende a reforçar tensões existentes no caldo social plural de vivência democrática. 

Infelizmente, esta atividade vem sofrendo uma série constante de influxos nada democráticos. Conforme bem demonstrado pela Criminologia Crítica, o processo de criminalização primária é levado à cabo a partir de interesses bem específicos, incompatíveis com diversos mandamentos constitucionais e princípios penais[3]. 

Opor limites à esta realidade não é simples. O espaço de criação das leis ainda é hoje um dos pilares do Estado Democrático de Direito e quaisquer restrições a esta atividade é vista com desconfiança. Contudo, não se pode deixar de notar que o modo como a construção legislativa penal tem sido efetivada exerce efeitos nefastos em nosso sistema de justiça criminal. 

Conforme se demonstrará neste texto, o problema não é exclusivo de nosso país. O uso de leis penais com fins eleitoreiros[4] ou simbólicos[5] vem sendo denunciado por penalistas das mais diversas partes do globo. 

No intuito de antecipar uma conclusão para o problema que está na base do tema aqui tratado, acredita-se que a única maneira através da qual seja possível racionalizar e democratizar a criação de leis penais seja a imposição de critérios científicos de análise prévia, que se concretizem como filtro eficaz, menos suscetível a demandas ad hoc (como acontece, por exemplo, com as comissões de revisão). 

Neste sentido, merece menção uma das propostas trazidas pelo IBCCRIM em seu Caderno de Propostas Legislativas: 16 medidas contra o encarceramento em massa[6]. Trata-se da primeira proposta do caderno, onde se apresenta a sugestão de alteração para o inciso X do art. 32 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, afim de que se inclua o requisito de análise dos aspectos financeiros e orçamentários públicos às propostas de alterações legislativas em matéria penal. 

Medidas como essa poderiam fortalecer o elemento democrático do processo de criação de leis penais (ou de agravamento das penas), servindo de contenção ao uso eleitoreiro ou simbólico mencionado, dando robustez ao princípio constitucional de legalidade penal[7]. 

Fundamentação da proposta espanhola para pena perpétua revisável 

Voltando à proposta de criação da pena perpétua na Espanha, ainda que sob a égide dos enunciados constitucionais que vedam sua utilização. 

O Partido Popular, ao apresentar o texto da lei, ofereceu um rol de fundamentos que visavam se contrapor ao limite constitucional, lançando mão de uma retórica muito semelhante ao que pode ser observado em nosso país por ocasião da criação da lei de crimes hediondos, da permissão de execução antecipada da pena ou da recente proposta de imprescritibilidade para o crime de estupro[8]. 

Ao apresentar a proposta, a pena perpétua passa a ser classificada como revisável, embora os prazos para esta “revisão” e a falta de critérios objetivos para a mesma demonstrarem claramente se tratar de uma manobra cínica, com o intuito único de implantação da efetiva pena perpétua, sem que haja um choque literal com o enunciado de “orientação a reinserção”, exigido constitucionalmente. 

A análise de algumas das razões apresentadas para a criação da norma penal, apontadas pelos parlamentares, permitem a percepção do sério problema mencionado no tópico anterior, assim como a relevância do tema na esfera do estudo criminológico e dogmático. 

Dentre os argumentos apresentados, destacam-se os seguintes:

1.    É preciso reforçar a confiança da população na administração da justiça. Sentenças longas, restritas pela norma infraconstitucional aos 45 (!) anos, como é o caso atual, permitem, a partir de uma série de “benefícios” progressivos, que o apenado cumpra “apenas” cerca de 20 anos, o que não condiz com o sentimento popular de justiça;

2.    Esta modalidade de pena (pena perpétua revisável) ainda garante um horizonte de reinserção, não contradizendo o enunciado constitucional;

3.    O direito comparado dentro da comunidade europeia permite a implementação - países como Itália, Alemanha e França possuem algo similar em seus ordenamentos;

4.    O Tribunal Europeu de Direitos Humanos admite a pena perpétua revisável[9]. 

São estes argumentos suficientes e idôneos a permitir a criação de uma pena perpétua num regime democrático que a aboliu expressamente há cerca de 80 anos?  Analise-se a seguir a oposição oferecida no próprio parlamento e o posicionamento da doutrina. 

A ação de inconstitucionalidade interposta contra a lei que criou a pena perpétua revisável na Espanha 

A votação do projeto de lei que propunha a admissibilidade da pena perpétua revisável foi aprovada por 181 votos contra 138 e duas abstenções. 

Inconformada com o resultado, a oposição entrou com um pedido de declaração de inconstitucionalidade. A decisão final está pendente de julgamento na Suprema Corte espanhola. 

Os argumentos apresentados pela oposição foram, em resumo: 

1.    A pena perpétua é contrária ao que dispõe o art. 15 da Constituição espanhola (proibição de penas desumanas);

2.    A pena perpétua é contrária ao que dispõe o art. 17, inciso 1, da Constituição espanhola  (direito a liberdade – desproporcionalidade e alheamento ao direito penal de culpabilidade);

3.    A pena perpétua é contrária ao que dispõe o art. 25, inciso 1, da Constituição espanhola (princípio da legalidade, que exige lex certa, determinada);

4.    A pena perpétua é contrária ao que dispõe o art. 25, inciso 2, da Constituição espanhola (a pena deve estar voltada à reinserção). 

Além desses pontos, vem sendo fortemente combatidos pela doutrina os argumentos apresentados para criação da pena perpétua revisável na Espanha. Penalistas como Muñoz Conde e José Luis Diez Ripollés descontruíram cada um dos elementos levantados pela proposta. Resumem-se a seguir os contrapontos aventados. 

A indeterminação da pena fere quaisquer perspectivas de segurança jurídica e possibilidade de adequação da pena à funções democráticas. A pena não pode servir para simples neutralização de indesejáveis num Estado Democrático de Direito. Falar de um “horizonte de reinserção” quando, na verdade, a lei exige um cumprimento de, no mínimo, 25 anos de prisão, é mero argumento retórico para “driblar” o mandamento constitucional. 

O fato de que outros países possuem em seus ordenamentos medidas similares à prisão perpétua revisável não deixa de ser verdadeiro, mas também não é fundamento suficiente para recomendar a implementação em outro país. Cada nação possui características sociais e políticas próprias. Além disso, o argumento é oferecido de modo superficial. Ele não revela, por exemplo, que muitos desses países possuem atenuações significativas à efetivação destas penas. Muitas vezes, como é o caso da França, há um limite claro sobre o número de anos máximo a ser cumprido em regime fechado. 

Outro ponto defendido pela proposta, de que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos admite a prisão perpétua, também não deixa de ser verdade em si. Porém, mais uma vez os fatos são expostos se maneira limitada e acrítica. Ao tratar da possibilidade de manutenção hodierna da prisão da perpétua, o TEDH faz a clara exigência de que critérios objetivos de revisão sejam elencados, permitindo a reavaliação periódica das circunstâncias e verificação da possibilidade de liberdade condicional e outros meios de reinserção social. A lei espanhola não cumpre, nem mesmo remotamente, com esta exigência. 

Por esses e por outros motivos, entendem muitos juristas, ao redor do globo, que a implantação da pena perpétua na Espanha precisa urgentemente ser revertida pela Suprema Corte. 

A exposição acima teve o propósito explícito de oferecer uma reflexão sobre a criação de leis penais e a necessidade de construção de constrangimentos eficazes ao seu uso populesco, antidemocrático, agravador de graves quadros de abuso, como a elevação exponencial de populações carcerárias. A doutrina e a criminologia podem desempenhar papel fundamental nesse sentido, saindo dos empoeirados bancos acadêmicos e adentrando ao debate legiferante sob convite expresso ou mesmo à despeito deste. 

[1] Este texto é fruto das anotações acerca de uma excelente explanação do Prof. Samuel Rodríguez Ferrández, da Universidade de Murcia, Espanha, realizada na Academia Brasileira de Direito Constitucional em Curitiba/PR em 05/10/2017

[2] A pena perpétua havia sido banida há 80 anos quando as assinaturas foram coletadas.

[3] Por muitos, leia-se: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução a Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2014

[4] Significa dizer que a promessa de criação de leis penais ou do agravamento da pena funciona como propaganda atraente ao senso comum, tal qual o “pão e circo” romanos. Zaffaroni descreve esta faceta do uso das leis penais como völkisch. O penalista argentino explica: “A técnica völkisch (populesca) consiste em alimentar e reforçar os piores preconceitos para estimular publicamente a identificação do inimigo da vez. Ao analisar-se o nazismo, chamou-se a atenção para esta técnica, assim batizada especialmente porque está intimamente vinculada ao discurso que privilegia no teórico a pretensa democracia plesbicitaria, antecipada por Weber e apoiada por Carl Schmitt.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011. pp. 57-58)

[5] José Ribamar Sanchez Prazeres define o Direito Penal Simbólico “como sendo o conjunto de normas penais elaboradas no clamor da opinião pública, suscitadas geralmente na ocorrência de crimes violentos ou não, envolvendo pessoas famosas, com grande repercussão na mídia, dada a atenção para casos determinados, específicos e escolhidos sob o critério exclusivo dos operadores da comunicação, objetivando escamotear as causas históricas, sociais e políticas da criminalidade, apresentando como única resposta para a segurança da sociedade a criação de novos e mais rigorosos comandos normativos penais”. Disponível em: http://persephone.mp.ma.gov.br/site/ArquivoServlet?nome=Noticia86A56.doc. Acesso em 05/10/2017. 

[6] Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/docs/2017/16MEDIDAS_Caderno.pdf. Acesso em 10/09/2017.

[7] CF/88, art. 5º, XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

[8] Ver, respectivamente: Exposição de motivos da Lei 8.072/90 (disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1990/lei-8072-25-julho-1990-372192-exposicaodemotivos-150379-pl.html); Execução antecipada da pena - HC 126.292/SP; PEC 64/2016 - tornando o crime de estupro imprescritível.

[9] Sobre o tema, ler a decisão do caso VINTER AND OTHERS v. THE UNITED KINGDOM. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/corte-europeia-prisao-perpetua1.pdf

Imagem Ilustrativa do Post: caged // Foto de: Dave Nakayama // Sem alterações

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