Princípios de Direito das Famílias: análise de aplicação nos Tribunais pátrios

16/01/2021

Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

1. Família, um ente em mutação.

A relação familiar é essencialmente uma relação privada. Todavia, o fato de a sociedade ter como uma de suas bases solidificadoras a própria família faz com que a tutela dessa entidade milenar seja estatalmente garantida. Mas, pensemos, qual família o Estado brasileiro atual tutela?

O fato é que a evolução cultural e social impulsionou mudanças em todos os campos do direito e no direito das famílias, como não poderia deixar de ser, as movimentações foram ainda mais evidentes. Devemos sopesar, sem dúvidas, que essa evolução social – acompanhada, obviamente, por evolução legislativa – tive como marco emblemático, especialmente ao direito das famílias, a Constituição Federal de 1988 que, tal como um divisor de águas, foi capaz de dividir o Direito de Família em antes e depois do advento da Constituição Federal (LIMA; ROSA; FREITAS, 2012, p. 27).

Após o advento da Constituição cidadã, portanto, ao direito privado se passou a incorporar de maneira ainda mais evidentes contornos constitucionais. Podemos dizer, desse modo, que o direito das famílias é direito privado constitucional. E não poderia ser diferente, já que a Constituição de um Estado tem esse sentido de estruturação (TARTUCE, 2017. p. 96).

O fato é que, ao estruturar todo o sistema jurídico, a Constituição acaba também por estruturar o direito privado, já que suas bases principiológicas não poderão, por certo, afrontar as questões constitucionais. Por esta razão, a análise do direito de família sob o viés principiológico mostra-se imprescindível. Desse modo, o presente estudo tem como escopo principal examinar os princípios do direito privado aplicados ao direito das famílias, especialmente analisando o tema sob o viés jurisprudencial. Vejamos, portanto.

 

  1. Princípios e Direito de Família: um casamento perfeito

 

A família contemporânea, como dito, não é mais aquela de outrora: institucional, engessada, imutável. É família em constante movimentação, que exige adaptação do sistema jurídico em um nível de mobilidade que, muitas vezes, o processo legislativo não acompanha.

Por essa razão – e por estarmos em um sistema jurídico aberto – é que nos princípios gerais o Direito de Família buscará muito de sua aplicabilidade. De fato, nas palavras de Kohler:

Faz-se necessário, então, buscar nos “Princípios Gerais do Direito” as bases da compreensão e aplicação de um direito mais justo. Se uma lei não estiver em consonância com os princípios gerais do direito, os julgamentos não serão verdadeiramente justos. É que “a significação lógica das leis e sua virtude plasmadora das relações sociais pode ir, e geralmente vai, muito além do que pensaram e previram os que formavam.

É que, com a mudança de enfoque da família instituição para a família eudemonista a dignidade humana passa a ser o foco da ordem jurídica, passa-se a valorizar cada membro da família e não a entidade familiar como instituição. (PEREIRA, 2016, p. 65).

Assim é que, estando diante de dinâmicas familiares novas – onde a tutela jurídica deixa de ser harmonia institucional para ser dos membros individualmente pensados – é que faz cada vez mais sentido enxergarmos a principiologia jurídica como fonte primordial ao Direito de Família.

Com efeito, pensarmos o sistema jurídico fechado como suficiente para atender demandas familiares das mais diversas complexidades parece absolutamente irreal. Não é possível que haja previsão expressa para todas as possibilidades que as relações humanas no núcleo familiar possam gerar. Daí porque especial importância terão os princípios para o direito de família.

Podemos até mesmo afirmar que, diante da complexidade das relações humanas e da complexidade das questões familiares, os princípios, no direito de família, deixam de ser apenas supletivos para integrar de maneira fulcral a discussão. De fato,

A expressão “princípios gerais do direito” é de uso corrente nos ordenamentos jurídicos e está presente na maioria dos códigos civis e de processo civil do mundo ocidental. Com a crescente tendência de constitucionalização do Direito Civil, consequência dos movimentos sociais e políticos de cidadania e inclusão, os princípios gerais têm se reafirmado cada vez mais como uma importante fonte do Direito e têm se mostrado para muito além de uma supletividade. (PEREIRA, 2016, p.42)

Nos parece, portanto, que analisar o direito das famílias sob o viés principiológico garante uma maior amplitude de sua aplicação, uma possibilidade de abrangimento maior das questões que eventualmente novas necessitem de tutela jurisdicional. Significa permitir que a maleabilidade das relações familiares possam ser tuteladas de maneira ampla e significativa. 

E a necessidade de um maior abrangimento da tutela ganha maior importância quando se pontua que atualmente as formações das famílias se veem marcadas por estruturas maleáveis e bastante mutáveis.

De fato, os casamentos - outrora realizados para perdurar “até que a morte os separe” - já são menos duradouros e indissolúveis. O último censo realizado no ano de 2010 já apontava que 16,3% das famílias atualmente existentes são resultados de recasamentos (IBGE, Censo 2010). Considerando o número oficial de 69 milhões de núcleos familiares no Brasil (IBGE, Censo 2010), estamos falando de mais de 11 milhões de famílias que se formam contemplando um maior interlaçamento de pessoas e relações.

Mas não é só. O Brasil tem um número extremamente expressivo de famílias constituídas por relações não formalmente regulamentadas (36,4% dos casais - IBGE, Censo 20102), trazendo aspectos que podem, em algum momento, não encontrar na letra da lei solução factível.

Há ainda outras questões ligadas à parentalidade que preocupam. No país, de acordo com o último Censo Escolar realizado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ (2013), há 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento. Há, portanto, muitos filhos sem paternidade reconhecida. Além disso, há 2,5 milhões de enteados que moram com seus padrastos e madrastas, constituindo, eventualmente, relações socioafetivas que podem precisar de tutela específica que dependa de interpretação principiológica. Outro dado interessante é que 46,1% dos divórcios no país ocorrem enquanto os casais ainda tem filhos menores de idade, situação que também é fonte quase que inesgotável de conflitos e dilemas.

A importância dos princípios no direito das famílias ganha força quando pensamos que são eles cambiantes e sua plasticidade permite uma aderência maior ou menor em consonância com circunstâncias temporais, fáticas e jurídicas imanentes aos casos concretos (LOBO, 2019, p.34).

São muitos senões. Em um campo tão fértil – e incerto, diga-se – contar que o texto legal, por si só, sejam suficientes, é uma verdadeira utopia. Daí porque cada um dos princípios assume papel crucial (muitas vezes central) no direito posto. Verifiquemos, um a um, os princípios aplicados ao direito de família, com julgados de Tribunais pátrios hábeis a ilustrar a sua aplicabilidade.

 

2. Princípios um a um: análise de julgados sob o viés do direito das famílias

2.a) Princípio da dignidade da pessoa humana

Se há lugar, tempo e modo para tratarmos de dignidade da pessoa humana, este é a família e o seu campo de direito correlato. E isto porque, como macro-princípio do qual se erradiam os demais (PEREIRA, 2020, p.83), é da dignidade que se partirá para a tutela plena dos demais pontos fulcrais do direito das famílias.

Não há como negar que família é sinônimo de dignidade:

A família, tutelada pela Constituição, está fracionalizada ao desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que a integram. A entidade familiar não é tutelada para si, senão como instrumento de realização existencial de seus membros. (LÔBO, 2020, p.60)

Daí porque, ainda que tutelada a autonomia da vontade e a plena liberdade familiar, o certo que a dignidade é verdadeiro limitador ao tema, como legítima barreira às questões que permitam flexibilizações, liberalidades e liberalidades (art. 226 §7º).

Cumpre salientar que os artigos 227 e 230 da Constituição Federal trazem especial atenção à dignidade aos vulneráveis, cujos interesses são tutelados e salvaguardados de maneira especial.

Os tribunais pátrios inúmeras – para não dizer incontáveis – vezes lançam mão da dignidade da pessoa humana para enfrentar os mais diversos temas de direito das famílias. Exemplos não faltam para tanto: fim da discussão da culpa nas rupturas – já que não há razão para que o Estado interfira na intimidade conjugal para aferição de culpa sem que isso impacte na dignidade do jurisdicionado -, família unipessoal e proteção do bem de família, famílias homoafetivas, parentalidade socioafetiva, dentre inúmeros outros exemplos.

O princípio foi amplamente invocado para a apreciação do RE 898060/SC, com repercussão geral, para apreciação da questão afeta ao conflito entre as paternidades socioafetiva e biológica:

Recurso Extraordinário. Repercussão Geral reconhecida. Direito Civil e Constitucional. Conflito entre paternidades socioafetiva e biológica. Paradigma do casamento. Superação pela Constituição de 1988. Eixo central do Direito de Família: deslocamento para o plano constitucional. Sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB). Superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias. Direito à busca da felicidade. Princípio constitucional implícito. Indivíduo como centro do ordenamento jurídico-político. Impossibilidade de redução das realidades familiares a modelos pré-concebidos. Atipicidade constitucional do conceito de entidades familiares. União estável (art. 226, § 3º, CRFB) e família monoparental (art. 226, § 4º, CRFB). Vedação à discriminação e hierarquização entre espécies de filiação (art. 227, § 6º, CRFB). Parentalidade presuntiva, biológica ou afetiva. Necessidade de tutela jurídica ampla. Multiplicidade de vínculos parentais. Reconhecimento concomitante. Possibilidade. Pluriparentalidade. Princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CRFB). Recurso a que se nega provimento. Fixação de tese para aplicação a casos semelhantes. (...)

A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento normativo para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da felicidade. 4. A dignidade humana compreende o ser humano como um ser intelectual e moral, capaz de determinar-se e desenvolver-se em liberdade, de modo que a eleição individual dos próprios objetivos de vida tem preferência absoluta em relação a eventuais formulações legais definidoras de modelos preconcebidos, destinados a resultados eleitos a priori pelo legislador. Jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão (BGE 45, 187). 5. A superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário do sobreprincípio da dignidade humana.

Aqui, como se vê, o Tribunal constitucional invocou a dignidade da pessoa humana como meio de equacionar a inexistência de pacificação e norma específica sobre eventual superioridade do vínculo biológico sobre o socioafetivo. Acertadamente, a nosso ver, o Supremo Tribunal Federal considerou que a dignidade humana se sobrepõe a eventual valoração institucional de um ou outro meio de constituição de parentalidade e filiação, tutelando de maneira plena os filhos, seja qual for a origem do vínculo parental.

Com efeito, vale pontuarmos que a dignidade – entendido aqui como o mínimo existencial para que o ser humano se entenda como tal – é conceito basilar da vida humana. Assim, compreendendo que a família é centro de desenvolvimento pleno do ser como ele é e deve ser, será também a família a base mais plena para que se tutele a dignidade como elemento de desenvolvimento primordial do ente dentro da realidade social.

 

2.b) Princípio da pluralidade familiar

Previsto nos artigos 226 a 230 da Constituição Federal, este princípio estabelece liberdade de forma para constituição e preservação familiar. Não há restrição, numa primeira análise, nas conformações que possam ser juridicamente reconhecidas como entidades familiares.

Daí que podemos imaginar que cada um dos núcleos familiares podem refletir escolhas individuais indispensáveis à realização da pessoa como ser único. Pode ser família para aquele ser humano o que ele, dentro de seus valores, princípios e conjecturas assim considerar. Mas, afinal, não há nenhum limitador a essa pluralidade? Quais seriam os requisitos para a constituição familiar?

A priori podemos considerar como requisitos básicos a seriedade do vínculo entre os entes, a estabilidade na relação familiar e a existência de verdadeiro propósito de constituição de família (TEPEDINO-TEIXEIRA, 2020, p. 23).

O fato é que a rigidez outrora existente no ordenamento – família matrimonial, heteroafetiva, patriarcal – dá margem a uma flexibilidade maior e que reflete muito mais a realidade familiar da sociedade pós 1988, circunstância que fez com que a jurisprudência levasse em consideração o aludido princípio para contemplar direitos e obrigações a algumas famílias tradicionalmente excluídas de tutela jurisdicional.

Assim é que vimos, na Ação Direta de Inscontitucionalidade ADI 4.277, o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Com efeito, daquele brilhante julgado, pudemos verificar a aplicação do princípio da pluralidade familiar como elemento permitidor para o reconhecimento e tutela das famílias homoafetivas. De fato:

Tratamento Constitucional da Instituição da Família. Reconhecimento de que a Constituição Federal não empresta ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica, A família como categoria sócio-cultural e princípio espiritual. Direito subjetivo de construir família. Interpretação não- reducionista. O caput do art. 226 confere à família, base da  sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nema formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa” (ementa do acórdão)

O princípio da pluralidade familiar – com a vedação de família que não aquelas descritas na letra da lei - foi, justamente, o que propiciou ao Supremo Tribunal Federal a possibilidade de, acolhendo a ação direta de inconstitucionalidade – alçar a família homoafetiva à condição de entidade familiar plena, com direitos e deveres devidamente garantidos. Com efeito, não se pode olvidar que a ausência de texto legislativo seja óbice para o reconhecimento da união estável homoafetiva.

 

2.c) Princípio da Solidariedade

Dissemos alhures que a família é local de busca da felicidade e realização plena de cada um dos seus membros, afastada a tutela outrora considerada da instituição sobre os membros. É, portanto, local de respeito a individualidade de cada um dos membros que a compões. Há, todavia, um limitador a esse elemento individual tutelado.

Previso no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal, o princípio da solidariedade é verdadeiro limitador ao individualismo, à autonomia e eudemonismo. E isto porque não há como deixarmos de considerar que as opções familiares estão, a princípio, ligadas ao outro e é impossível não haver responsabilização pelos vínculos.

Nas relações familiares, não há como negar, a responsabilização deveria ser regra na vinculação. No sentir de Hans Jonas, a responsabilidade das pessoas é o primeiro objeto de responsabilidade dos outros:

De fato, a reciprocidade está sempre presente, na medida em que, vivendo entre seres humanos, sou responsável por alguém e também sou responsabilidade de outros. Isso decorre da natureza não autárquica dos homens, e, pelo menos no que tange à responsabilidade original dos cuidados parentais, todos nós a experimentamos algum dia. Nesse paradigma arquetípico evidencia-se de forma cristalina a ligação da responsabilidade com o Ser vivo (JONAS, 2006, p. 175)

Infelizmente, contudo, vemos que a vinculação responsável nas relações familiares nem sempre é regra. Não fosse assim, o Brasil não contaria cerca de 6 milhões de crianças sem registro paterno, não teria instalada uma epidemia de violência doméstica, tampouco seria verdadeiro recordista em ações alimentares, o que denota completa irresponsabilidade parental com a prole. Nesse ponto, aliás, importante pontuar que segundo o relatório do Conselho Nacional de Justiça de 2019, o país contava 860.228 demandas alimentares em curso.

Aliás, a temática alimentar é campo fértil para a aplicação do princípio da solidariedade que é invocado, especialmente quando se trata da temática alimentos entre cônjuges/companheiros. Foi, de fato, o que ocorreu com a apreciação, pelo Superior Tribunal de Justiça, do Recurso Especial Nº 1.185.337 -RS:

Recurso Especial. Concubinato de longa duração. Condenação a alimentos. Negativa de vigência de Lei Federal. Caso peculiaríssimo. Preservação da família X dignidade e solidariedade humanas. Sustento da alimentanda pelo alimentante por quatro décadas. Manutenção de situação fática preexistente. Inexistência de risco para a família em razão do decurso do tempo. Comprovado risco de deixar desassistida pessoa idosa. Incidência dos Princípios da Dignidade e Solidariedade Humanas. Dissídio Jurisprudencial. Inexistência de similitude fático-jurídica.

A aplicação do princípio, acertadamente, mostra ao ente familiar que sua individualidade tem limitações quando precisa se responsabilizar por aqueles com quem convive ou conviveu. É o reconhecimento de que a moral social precisa, por vezes, se sobrepor à moral individual pois

É no princípio da solidariedade que devermos buscar inspiração para a vocação social do Direito, para a identificação do sentido prático do que seja funcionalização dos direitos e para a compreensão do que pode ser considerado parificação e pacificação social (NERY, 2014, p.554)

De fato, dar à família caráter evidentemente privado transfere para seus próprios membros uma enorme carga de responsabilidade (RODRIGUES, TEIXEIRA, 2010), que certamente é fortificada com a aplicação do princípio da solidariedade no direito das famílias. 

 

2.d) Princípio da Autonomia Privada e as portas de acesso à conciliação e mediação. Meios processuais eficientes e harmônicos com o Direito Constitucional das Famílias  durante e  após a pandemia do CORONAVÍRUS- COVID 19.

Importante mais uma vez pontuarmos que as normas de direito de família são normas de direito privado. E isso porque os interesses a que destinam tutela e aplicação são particulares e individuais. Evidente, todavia, que há interesse da coletividade nas questões familiares – até mesmo porque, como já dito, a família é a base da sociedade -, mas esse interesse não pode se sobrepor à autonomia de cada membro da entidade familiar.

É assim, portanto, que a tutela aos interesses familiares jamais poderão ser confundidas com poder de intervenção efetiva na realidade familiar. Cada família, de per si, é entidade autônoma privada e deve ter a sua autonomia totalmente garantida. Assim é que o disposto no artigo 1513 do Código Civil garantirá que é defeso a qualquer pessoa de direito público ou de direito privado interferir na comunhão de vida instituída pela família.

Pondere-se, contudo, que a autonomia privada precisa ser encarada em sua mais moderna tradução, que perpasse sempre na sua análise associada também sob o viés da dignidade e responsabilidade já que é somente com essa trilogia que será possível que cada pessoa construa, de fato, autonomia em todas as suas potencialidades (TEIXEIRA, 2019, p. 159).

Foi essa interpretação que o Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do recurso especial REsp 1.119.462/MG, concedeu ao princípio da autonomia privada:

o direito de família deve ocupar, no ordenamento jurídico, papel coerente com as possibilidades e limites estruturados pela própria CF, defensora de bens como a intimidade e a vida privada. Nessa linha de raciocínio, o casamento há de ser visto como uma manifestação de liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, no interior de espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de 'asilo inviolável'. Sendo assim, deve-se observar uma principiologia de 'intervenção mínima', não podendo a legislação infraconstitucional avançar em espaços tidos pela própria CF como invioláveis. Deve-se disciplinar, portanto, tão somente o necessário e o suficiente para a realização não de uma vontade estatal, mas dos próprios integrantes da família”.

A aplicação prática da autonomia privada nas relações familiares se apresenta das mais diversas maneiras. É verdade, assim, que vemos tal princípio desde a própria constituição da entidade familiar – forma, por exemplo, pela qual a relação afetivo/familiar se desenvolverá – como quanto às escolhas patrimoniais que decorrem da vinculação familiar. A escolha do regime de bens entre cônjuges, por exemplo, é questão clara que perpassa pela autonomia da vontade daqueles que o elegem:

“em razão do princípio da autonomia da vontade, garante-se aos cônjuges a máxima liberdade na escolha do regime que consideram preferível, podendo as partes aceitar um regime típico com a regulamentação legal existente, ou modificá-lo de acordo com as suas conveniências, desde que não violadas as normas imperativas referentes aos fins do casamento e à estrutura da família"(FONSECA, 2018. p.73)

A verdade é que, diante das alterações sociais que trouxeram maleabilidade e novas perspectivas à vida familiar, a autonomia privada é elemento essencial do desenvolvimento humano no seio da família. Não se mostra possível – tampouco inviável – que se permita intervenção estatal em questões que tratem, por exemplo, da intimidade de cada um dos membros da família constitucional. Por outro lado, a autonomia não é plena se não observar, como dito, responsabilidade e dignidade. Conflitos pertinentes a problemas na esfera das famílias- superlativos em tempos de isolamento social e convívio intensificado das famílias, ou mais grave, pelas dificuldades econômicas decorrentes da crise pandêmica, podem demandar portas de acesso à conciliação e mediação durante e após o “novo normal”. A conciliação e a mediação “online” são meios de facilitação do diálogo por uma terceira pessoa, dotada de independência e imparcialidade, que poderá contribuir para a construção de uma solução reciprocamente satisfatória. Esses conflitos, mesmo fora do contexto da pandemia, já evidenciam com  clareza a incompletude das soluções processuais impostas pelo Poder Judiciário. A procura por vias que evidenciem o resultado prático do processo e o aprimoramento dos princípios da oralidade e da economia processual, antes até do período de isolamento social e de mutações nas dinâmicas familiares consequentes, ainda que de modo de ato processual “online”, é pedra angular para obstaculizar desdobramentos ainda mais deletérios para as famílias e ao sistema processual brasileiro. Esses ruídos de comunicação na convivência entre pais e filhos, tendem a robustecer  com o decurso do tempo e, muito provavelmente, desembocarão no processo judicial. Portanto, é compreensível e até alvissareiro o incremento na busca por solução tecnológica  de conflitos sem olvidar dos sentimentos de angústia,pesar e perplexidade que também assombram milhares de almas humanas e também de juristas e pesquisadores familiaristas e processualistas. A legislação processual civil vigente anterior à pandemia,na disciplina do artigo 334, § 7, em 2015, explicitou a escolha do Legislador Processual Civil sob a égide dos Princípios Constitucionais, a viabilidade de audiências de conciliação e de mediação no formato eletrônico. A mediação, de forma mais acurada em seu  próprio diploma legal, citou  a rede mundial de computadores ou outro veículo de comunicação social que viabilize as interações processuais remotamente, tendo como pré-requisito o acordo entre as partes.

 

2.e) Princípio do Melhor Interesse da criança e do adolescente

Talvez o mais aclamado princípio dentro do direito das famílias, o melhor interesse da criança e do adolescente é (ou, ao menos, deveria ser) verdadeiro bálsamo para os infantes tristemente envolvidos em demandas familiares. De fato, como ser humano em desenvolvimento, a criança e o adolescente merecem especial atenção e cuidado, o que foi contemplado pelo legislador constituinte na Carta Magna.

A previsão do princípio se encontra no artigo 227, caput, da Constituição Federal. É ainda previsto nos artigos 1583 e 1584 do Código Civil. A indispensabilidade da previsão ligada ao princípio do superior interesse das crianças e adolescentes repousa no fato de esses entes tutelados serem dotados de evidente vulnerabilidade:

Ao contrário do matrimônio, no qual vigoram os princípios da liberdade e da igualdade entre cônjuges, na parentalidade, o filho é sujeito a uma relação entre desiguais, caracterizada, tipicamente, pela vulnerabilidade e pela dependência do segundo em relação aos primeiros, uma vez que se trata de pessoa em formação (LAGE, 2019)

A grande crítica que se pode fazer parte na generalização e ampla utilização do princípio para todas as direções do direito de família. Em outras palavras, facilmente se vê o princípio do superior interesse das crianças e adolescentes ser invocado para, de alguma forma, se afrontar diametralmente a lei.

Exemplo claro disso é a invocação do princípio para afastar a regra legal da guarda compartilhada. Não raras vezes nos deparamos com julgados que, supostamente em nome do superior interesse das crianças e adolescentes, se furta à aplicação do texto legal.

Nessa mesma linha, vemos repetidamente a invocação do princípio também utilizado para justificar patente descumprimento da Convenção de Haia quanto ao sequestro internacional de crianças e adolescentes, tratado internacional do qual o Brasil é signatário desde o ano 2000.

É neste sentido, inclusive, o julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do recurso especial nº 1.788.601 – SP:

Internacional e processual civil. Recursos especiais. Ação de busca, apreensão restituição proposta pela união. Acórdão de origem que denegou a restituição. arts. 12 e 13 da Convenção de Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças. Decreto 3.413/2000. Interesse do menor. Interpretação finalística. Criança maior de dezesseis anos. Inaplicabilidade da convenção. Ruptura do núcleo familiar. Risco de grave perigo de ordem psíquica.

  1. Com efeito, a referida Convenção, que é a mais importante a dispor sobre os direitos das crianças, integrando-se ao contexto da Convenção Interamericana sobre Restituição de Menores, tem como escopo a tutela do princípio do melhor interesse da criança. Esse princípio, segundo o entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, teve sua origem na Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada pela Organização das Nações Unidas - ONU no ano de 1959. O best interest of the child, ou princípio do melhor interesse da criança, deve ser  entendido tendo em vista as verdadeiras necessidades da criança envolvida. O bem estar da criança deverá ser garantido, deixando qualquer interesse relativo aos pais para o segundo plano. Ou seja, o interesse da criança deverá se sobrepor ao de seus pais, quando em colidência ou quando inconciliáveis.

III. No caso em tela, parece inquestionável a prática de ato ilícito por parte da requerida, K. C. F., correspondente, especificamente, à retirada das menores da Suécia, país de residência habitual da família, sem o consentimento do pai C. B., diante da violação do direito de guarda que era exercida também por ele. Tal conduta, como comprovam os documentos trazidos nos autos, vem prevista no aludido art. 3°, alíneas"a" e "b", da  referida  Convenção. Ora, tendo o pai assentido na viagem das menores ao Brasil para aqui ficarem até determinada data, a permanência das crianças para além da data aprazada, por vontade e decisão unilateral da mãe, constitui abuso contra direitos do pai. (...)

  1. Não obstante, ainda que não tenha decorrido o prazo de 1 (um) ano estabelecido, saliente-se que a Convenção de Haia autoriza a manutenção da criança no país em que estiver abrigada se o retomo comprometer o seu bem-estar físico ou psicológico, priorizando, portanto, o seu interesse em detrimento da vontade dos pais. Tal assertiva consta do artigo 13 da Convenção onde se prevê, inclusive, a possibilidade de oitiva da própria criança quando esta já atingiu certo grau de maturidade

 

A grande crítica que fica é que a aplicação do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, muitas vezes, é invocado sem que se delimite os elementos objetivos que o caracterizem, sem que se especifique quais as razões, dentro do caso concreto, que demonstram que aquela decisão específica tutela o interesse do vulnerável.

 

2.f.) Princípio da Igualdade entre cônjuges/companheiros

 

Dos mais importantes avanços que podemos citar é que a constituição cidadã, em seu artigo 5º, inciso I, preconiza a igualdade entre direitos e obrigações de homens e mulheres. Significa dizermos, portanto, que aquela mulher que, durante grande parte do século passado era tida como ser secundário de direitos foi, a partir de 1988, alçada à condição de par do homem, até então mantido em condição de superioridade jurídica positivada.

De fato, com a expressa previsão no artigo 5º, inciso I da Constituição, a mulher passou a usufruir de um status jurídico formal de igualdade com os homens, numa relevante evolução, tendo em vista que até 1962 – ou seja, até o advento da Lei nº 4.121 – o status legal da mulher era de pessoa relativamente incapaz, implicando em limitações para a prática autônoma de diversos atos da vida civil, inclusive uma profissão. (LOIS, CASTRO, 2019, p. 216).

Numa primeira – e superficial – análise, poderíamos imaginar que séculos de desigualdade positivada estariam, em razão do festejado preceito constitucional, superados. Passaríamos, então, com a igualdade jurídica, a imaginar a existência desde logo, de igualdade plena entre homens e mulheres. Como, todavia, lei não altera, ao menos de imediato, realidades sociais, a situação feminina passa a largo dessa igualdade.

Muito embora ainda se tenha uma realidade social de grande desigualdade, muitos temas familiaristas – guarda, convivência de filhos, questões patrimoniais e, principalmente, a fixação de pensão alimentícia para o cônjuge/companheiro (leia-se, na grande maioria das vezes, para as mulheres) – já passaram a ser enfrentados sopesando o princípio da igualdade constitucionalmente previsto.

Esperava-se, todavia, que o movimento de equiparação se desse de maneira mais paulatina e não tão assoberbada. Acontece, contudo, que assim como a legislatura conta com maior superioridade numérica masculina, a interpretação das normas, também pelo maior número de homens na sua aplicação, possui caráter eminentemente sexista:

A interpretação dos direitos fundamentais, quer estejam previstos em constituições nacionais ou em tratados internacionais, também tem sido realizada por homens, os debates em torno de direitos individuais ou de direitos sociais, ficam confinados a debates, interpretações, leis e decisões feitas por homens e nos termos que eles estabelecem (TOMAZONI, BARBOZA, 2019, p. 244).

A realidade da mulher como colaboradora – e não sujeito ativo de direitos – relegava a ela papel secundário na formação familiar. Era o homem – e somente ele – responsável pela administração dos bens da família, pela escolha do local onde todos viveriam, pela representação legal do clã, enfim, era o chefe da sociedade conjugal.

Ainda que discretamente, em meados do século anterior, especialmente com o início do movimento feminista, vê-se a mulher ganhando um pouco mais de autonomia tanto na vida familiar, quanto na vida em sociedade. O primado da responsabilidade marital pelos encargos familiares, compatível com os usos e costumes dominantes à época da elaboração do CC/1916, como compensação à chefia da sociedade conjugal, foi-se diluindo paulatinamente a partir de meados do século passado em razão das novas posturas reconhecidas à mulher na sociedade moderna (CAHALI, 2009, p. 148).

Eis que então temos o advento da Constituição Federal de 1988 que chancela, expressamente, que homens e mulheres são iguais sujeitos de direitos e deveres. Infelizmente, a inclusão constitucional não foi acompanhada, ao menos num primeiro momento, de modificação expressiva na legislação infraconstitucional, muito menos de real modificação nas estruturas sociais.

De fato, continuavam flagrantes no texto legal infraconstitucional, especialmente no Código Civil de 1916, a desigualdade positivada em leis que alçavam o homem a lugar de indiscutível superioridade. A igualdade legal custava, e muito, a chegar, especialmente no ordenamento que tratava do direito das famílias, onde ainda se lia em artigo de lei expressões discriminatórias e extremamente sexistas.

O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento RE 658.312/RJ, houve por bem reconhecer que o princípio da igualdade legalmente previsto, infelizmente, não corresponde a realidade social brasileira:

Não há como negarmos que a igualdade estritamente jurídica somente transcenderá a letra da lei – planando também nos vieses sociais - quando for conferido às desigualdades tratamento desigual na medida de sua desigualdade, e indivíduos identificados como especialmente vulneráveis em função do grupo social a que pertencem têm reconhecido pelo sistema constitucional o direito à proteção do Estado, na forma de mecanismos eficazes de dissuasão, contra violações de sua integridade pessoal.

Muito embora o próprio tribunal constitucional já tenha decidido no sentido de que a igualdade formal não representar, necessariamente, igualdade material, nos deparamos algumas vezes com outras decisões diametralmente opostas. Foi o que houve, inclusive, por ocasião do recente julgamento do AREsp 1737142, ocasião em que o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva teve oportunidade de ponderar que:

A igualdade entre o homem e a mulher estabelecida na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002 se faz em todos os campos, não sendo possível que a ex-mulher prefira continuar a viver de pensão do ex-esposo.

Os alimentos não podem se tornar fonte de renda, mas apenas auxílio financeiro nos casos de comprovada necessidade, não havendo prova de impossibilidade da autora se manter sozinha.

O tema é, portanto, espinhoso. A grande questão que não quer calar é sopesarmos se, de fato, o princípio da igualdade está plenamente aplicado quando se trata da questão afeta ao gênero e se, considerado também sob o prisma da solidariedade, como há de ser aplicado.

 

2.g) Princípio da Monogamia (ou valor)

A primeira grande questão no que toca à monogamia é a compreensão no sentido de ser ela, de fato, princípio ou um valor jurídico. Considerando a monogamia como valor ético que norteie a vida humana, temos que entendê-la como valor jurídico. Atribuindo a ela status de norma de conteúdo aberto temos que compreendê-la como princípio.

Há divergência doutrinária sobre o tema. Para Rodrigo da Cunha Pereira, a monogamia é princípio:

O princípio da monogamia, embora funcione também com ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e conjugais, não é simplesmente uma norma moral ou moralizante. Sua existência nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio ordenador. Ele é um princípio básicoe organizador das relações jurídicas da família do mundo ocidental. Se fosse mera regra moral, teríamos que admitir a imoralidade dos ordenamentos jurídicos do Oriente Médio, onde vários países não adotam a monogamia. (PEREIRA, 2016, p.127)

Já Maria Berenice Dias, por sua vez, compreende não ser um princípio propriamente dito. No entendimento da jurista, não sendo um princípio estatal propriamente dito, é uma regra adstrita à proibição de mais de uma relação matrimonializada ao mesmo tempo (DIAS, 2016, p. 45).

Enfrentada no REsp 1348458 / MG, o tema rende inúmeros debates, mormente porquanto a questão perpasse necessariamente à valoração de condutas sociais e morais que, embora sedimentadas na sociedade e no senso comum como algo correto, não é unanimidade na comunidade jurídica:

Direito Civil. Recurso Especial. Família. Ação de Reconhecimento de União Estável. Relação concomitante. Dever de Fidelidade. Intenção de constituir família. Ausência. Artigos analisados: Arts. 1º e 2º da Lei 9.278/96.

  1. Ação de reconhecimento de união estável, ajuizada em 20.03.2009.
  2. Discussão relativa ao reconhecimento de união estável quando não observado o dever de fidelidade pelo de cujus, que mantinha outro relacionamento estável com terceira.
  3. Embora não seja expressamente referida na legislação pertinente, como requisito para configuração da união estável,  a fidelidade está ínsita ao próprio dever de respeito e lealdade entre os companheiros.
  4. A análise dos requisitos para configuração da união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, e também a fidelidade.
  5. Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade - que integra o conceito de lealdade e respeito mútuo - para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade.
  6. Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade. 7. Na hipótese, a recorrente não logrou êxito em demonstrar, nos termos da legislação vigente, a existência da união estável com o recorrido, podendo, no entanto, pleitear, em processo próprio, o reconhecimento de uma eventual uma sociedade de fato entre eles.
  7. Recurso especial desprovido.

Talvez a grande discussão sobre o tema possa gerar empasses sobre a possibilidade de flexibilização, via acordo prévio entre os envolvidos, da existência de uma única relação de conjugalidade envolvendo uma mesma pessoa.

Com efeito, diante da privatização das relações familiares e da tão comemorada interferência mínima na intimidade relacional dos entes do núcleo da família, chega-se a ponderar se existiria direito estatal que possa impedir pactos que afastem a monogamia? A existência de resistência social – muito mais ligada às questões morais que propriamente jurídicas – será capaz de afastar a autonomia privada.

 

2.h. Princípio da Afetividade (ou valor)

Definitivamente incorporado nas discussões que tratem sobre o direito das famílias, o afeto pode ser considerado importante amálgama capaz de gerar reflexos no campo das relações humanas.

Importante desde já pontuar que o afeto juridicamente relevante – e tutelado -  não é mero fato psicológico, não é amar ou gostar de alguém com quem mantém vínculo familiar. Afetividade, para o direito das famílias, é composta pela concretização de atos/fatos capazes de gerar deveres e direitos de entes entre si. Portanto, ainda que haja desamor ou desafeição, atos de vinculação afetiva são capazes de gerar reflexos jurídicos.

Há também celeuma quanto ao tema e seu enquadramento como princípio ou valor jurídico. Entendida como valor jurídico, podemos considerar a impossibilidade de se falar em direito ou dever de afeto, não obstante sejam devidamente valoradas as condutas concretas que traduzam a existência do sentimento em si (TEPEDINO-TEIXEIRA, 2020, p. 23).

Outros doutrinadores, todavia, consideram a afetividade princípio fundamental no direito das famílias:

Atualmente, é possível afirmar que a afetividade é o grande vetor dos relacionamentos familiares, constituindo-se no novo paradigma, sendo, no cenário brasileiro, princípio contemporâneo do Direito de Família (CALDERON, 2019, p.52)

No mesmo sentido, Rodrigo da Cunha Pereira:

A afetividade é um princípio constitucional da categoria dos princípios não expressos. Ele está implícito e construído nas normas constitucionais, pois aí estão seus fundamentos essenciais e basilares: o princípio da dignidade da pessoa humana (art.1º, III), da solidariedade (art. 3º, I), da igualdade entre os filhos, independentemente de sua origem (art. 227, §6º), a adoção como escolha afetiva (art. 227, §§ 5º e 6º), a proteção da família monoparental,  tanto fundada em laços de sangue ou por adoção (art. 226, §4º), a convivência familiar assegurada à criança e ao adolescente, independentemente da origem biológica (art. 227). (PEREIRA, 2016, p. 220).

O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar questão ligada à afetividade no REsp 945283/RN, entendeu pela aplicação da afetividade como princípio:

Direito de Família. Guarda de menor pleiteada por avós. Possibilidade. Revalência absoluta do interesse da criança e do adolescente observada (…) 4. O que deve balizar o conceito de “família” é, sobretudo, o princípio da afetividade, que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico.

O fato é que, princípio ou valor jurídico, não há como compreender o direito das famílias sem considerar a afetividade como elemento primordial ao seu desenvolvimento. Com efeito, as relações familiares se mostram as mais férteis para que o sentimento humano aflore. Evidente que o direito constitucional  das famílias e os meios consensuais de direito processual civil  não tutelarão  o sentimento familiar  em si, mas os atos concretos correlatos a ele terão espaço na tutela jurisdicional e nos atributos das portas processuais  de acesso, os direitos fundamentais.

 

3. Considerações Finais

A constitucionalização do direito privado é um movimento sem retorno.  Diversamente de um conflito decorrente de uma relação consumerista, os  familiares podem demandar dos estudantes e  profissionais do direito um raciocínio e um labor dotado de sofisticação e imbricações entre o Direito Constitucional  das Famílias e o Direito Processual Civil. Evidente que o direito das famílias – privado - não pode descolar-se dos preceitos constitucionais e, consequentemente, dos princípios. A conjuntura da pandemia e do “novo normal” ( pós pandemia) implica na redesignação do agir no manejo dos direitos materiais e instrumentos processuais dos cidadãos e o inescapável enfrentamento da trágica pandemia da COVID-19. Aqui nesta contribuição estamos moduladas quer seja no prisma do Direito Constitucional das Famílias, quer seja no Direito Processual Civil na forma de adoção de meios consensuais, dentro ou fora do Sistema de Justiça Estatal. Respeitosa e pacientemente, nas hipóteses de acessibilidade processual e qualidade dos serviços do Estado Juiz, os princípios constitucionais das famílias e o direito processual civil, calcado nos meios  consensuais são congruentes,  e já traduzem as oportunidades do uso de meios consensuais na etapa anterior ou no curso processual.

De fato, família é ente em constante evolução. Como vimos, o desenvolvimento social propiciou evidente mudança na família institucional e engessada que, outrora, regia a vida social. Hoje cada vez mais as organizações familiares são maleáveis e mutáveis.

Daí porque impossível imaginarmos a aplicação do direito das famílias em a utilização de um sistema vivo, aberto, capaz de adaptar-se a cada um dos dilemas que a sociedade trouxer buscando solução. E, para tanto, os princípios serão importantes ferramentas.

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana tem (e sempre terá) ampla acolhida e aplicação no Direito das Famílias. Família é berço de dignidade. É lugar de desenvolvimento da plenitude humana em todos os seus meandros. É na família que o ser humano consegue plenitude para desenvolvimento e busca de sua dignidade.

Podemos considerar, inclusive, que da dignidade decorre a pluralidade familiar. É esse Princípio que permite que as mais variadas conformações familiares tenham reconhecimento e tutela. O texto legal define família no sentido lato e não jurídico. Permite que os entes, por si, constituam núcleos familiares, desde que esses respeitem requisitos já apontados neste trabalho.

Já o Princípio da Solidariedade representa a obrigatoriedade de responsabilização de cada um dos entes da família por seus vínculos. De fato, a relação familiar pressupõe cuidado, deveres, vínculos salvaguardados e hígidos. Vimos ainda que o Princípio da Autonomia da Vontade tem grande aplicabilidade no direito das famílias, mormente se considerarmos que a intervenção estatal, em uma realidade de direito civil constitucional, deve ser mínima, apenas garantidora da segurança e plenitude de cada ente.

O melhor interesse das crianças e dos adolescentes, por sua vez, é mola propulsora da tutela jurisdicional dos seres humanos em formação. É princípio garantidor de tutela específica para a vulnerabilidade desses jurisdicionados em situação de proteção plena. Já a igualdade entre cônjuges, por sua vez, foi capaz de garantir que a família antes comandada pelo patriarca passasse a ser a família democrática com igualdade – ao menos formal – entre os membros que a orbitam.

Por fim (mas não menos importantes), analisamos a monogamia e a afetividade, discutindo sua inclusão (ou não) na categoria dos princípios e a sua importância para o direito das famílias.

Conclui-se pontuando que, sem os princípios, é verdadeiramente utópico imaginar a possibilidade de efetividade do direito das famílias. É preciso, todavia, que a aplicação desses princípios seja sempre precedida de uma análise sob a perspectiva de todo um sistema integrado, em cotejo – e não em oposição – à legislação vigente. Princípio, portanto, não pode ser subterfúgio para ativismo judicial ou desconsideração legal.

 

Notas e Referências

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CALDERON, Ricardo. Princípio da Afetividade no Direito de Família. Coord. EHRHART JR, Marcos. LOBO, Fabíola Albuquerque. ANDRADE, Gustavo. Direito das Relações Familiares Contemporâneas. Estudos em homenagem a Paulo Luiz Neto Lôbo. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2016.

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