Princípio da insignificância nos crimes contra a administração pública

14/11/2021

Os crimes contra a administração pública são aquelas condutas ilícitas que ofendem em algum grau o Estado, numa noção ampla. O âmbito estatal é composto, resumidamente, pela União, Estados, Municípios, Distrito Federal, autarquias, empresas públicas, sociedade de economia mista, entre outras entidades, poderes e órgãos públicos. 

Assim, dentre os delitos contra a administração pública mais conhecidos estão a corrupção passiva e ativa, prevaricação, peculato, contrabando, descaminho, previstos no Título XI do Código Penal.

Questão interessante é examinar a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância nos casos de crimes contra a administração pública. Tal princípio, empregado incialmente pelo grande doutrinador Claus Roxin, trata da tipicidade material do delito, que, uma vez esvaziada, não há que se falar em crime, tornando inexistente a conduta criminosa.

Isso porque a tipicidade material requer uma ofensa com gravidade aos bens jurídicos tutelados pelo direito penal, pois determinada conduta pode não gerar ofensa suficiente para configurar um crime. Dessa forma, a insignificância exige efetiva proporcionalidade entre a gravidade da ação e a resposta incisiva do poder de punir.

Com isso, busca-se evitar o uso desproporcional do direito penal pelo Estado, a fim de que as pessoas não sejam responsabilizadas por uma conduta desprovida de gravidade, uma ofensa sem intensidade.

Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt:

Em outros termos, a irrelevância ou insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem juridicamente atingido, mas especialmente em relação ao grau de sua intensidade, isto é, pela extensão da lesão produzida. (2020, BITENCOURT).

Para se ter mais clareza em relação a esse conceito, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu o princípio da insignificância em seu ‘’Glossário Jurídico’’, estabelecendo critérios vetores:

O princípio da insignificância tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, ou seja, não considera o ato praticado como um crime, por isso, sua aplicação resulta na absolvição do réu e não apenas na diminuição e substituição da pena ou não sua não aplicação. Para ser utilizado, faz-se necessária a presença de certos requisitos, tais como: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada (exemplo: o furto de algo de baixo valor). Sua aplicação decorre no sentido de que o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.

Portanto, para que seja aplicado o princípio da insignificância é necessário que estejam presentes a mínima ofensividade da conduta; a falta de periculosidade social; o reduzido grau de reprovabilidade; e a inexpressividade da lesão provocada.

Passemos, então, a examinar a possibilidade de aplicação desse princípio em casos de crimes contra a administração pública.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) emitiu a Súmula 599, com a seguinte redação: ‘’O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública.’’.

Tal súmula gerou bastante discussão no meio jurídico, já que trouxe uma noção absoluta da não aplicabilidade desse princípio em casos de crimes contra a administração pública. Assim, mesmo se fosse cometido um peculato na modalidade furto de um objeto com valor baixíssimo, não poderia ser aplicado o princípio da insignificância.

Porém, em decisão posterior, a Sexta Turma do STJ aplicou o princípio da insignificância a crime contra a administração pública. No caso concreto, o réu passou o carro por cima de um cone de trânsito, furando o bloqueio da Polícia Rodoviária Federal, sendo condenado por dano qualificado.

O Ministro Nefi Cordeiro destacou que o cone danificado custava menos de R$20,00 (vinte reais), equivalente a menos de 3% do salário mínimo vigente à época. Assim argumentou:

“A despeito do teor do enunciado 599, as peculiaridades do caso concreto justificam a mitigação da referida súmula, haja vista que nenhum interesse social existe na onerosa intervenção estatal diante da inexpressiva lesão jurídica provocada”

Dessa forma, a súmula 599 foi afastada, já que no caso em análise estavam presentes os critérios vetores do princípio da insignificância, como anteriormente apresentado.

Outra decisão interessante do STJ diz que a importação de pequena quantidade de medicamento destinada a uso próprio autoriza a excepcional aplicação do princípio da insignificância. Nesse caso, o crime de contrabando (334-A, CP) não ocorreria:

A importação de pequena quantidade de medicamento destinada a uso próprio denota a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada, tudo a autorizar a excepcional aplicação do princípio da insignificância (ut, REsp 1346413/PR, Rel. p/ Acórdão Ministra MARILZA MAYNARD – Desembargadora convocada do TJ/SE -, Quinta Turma, DJe 23/05/2013). No mesmo diapasão: REsp 1341470/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 07/08/2014, DJe 21/08/2014.

Por fim, vale ressaltar que incide o princípio da insignificância no crime de descaminho (334, CP), caso o débito tributário verificado não ultrapasse R$20.000,00 (vinte mil reais).

Portanto, apesar da existência da súmula 599 do STJ, que versa sobre a não aplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes contra a administração pública, a jurisprudência tem afastado a aplicabilidade da referida súmula, respeitando os critérios vetores estabelecidos pelo STF e doutrina, quais sejam: a mínima ofensividade da conduta; a falta de periculosidade social; o reduzido grau de reprovabilidade; e a inexpressividade da lesão provocada.

Deste modo, a proporcionalidade no âmbito do direito penal é melhor garantida, observando os princípios constitucionais e evitando que o poder punitivo do Estado cresça de forma indevida.

 

Notas e Referências

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1 – 17. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei n. 12.550, de 2011. – São Paulo: Saraiva, 2012

 

Imagem Ilustrativa do Post: Metas nacionais do Poder Judiciário // Foto de: Divulgação/TJGO // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/zQoQwX

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura