Princípio constitucional do juiz natural, democracia e distribuição de processos – Por Marco Aurélio Serau Junior

27/01/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

O recente e trágico passamento do Ministro Teori Zavascki, processualista ímpar, suscitou diversos debates, nos mais diversos foros, a respeito do destino dos processos de sua relatoria, especialmente o mais famoso deles: a ação penal conhecida como Lava-Jato.

Inúmeros “processualistas de redes sociais” deram seus mais variados palpites sobre como será interpretado o Regimento Interno do STF. Alguns mais acertados do que outros; muitos justificáveis e plausíveis; outros, totalmente nonsense.

Nenhuma regra jurídica é isenta de disputas a respeito de sua interpretação e aplicação. Há tempos já se abandonou o entendimento de que in claris cessat interpretatio, quer dizer: caso a norma jurídica seja dotada de clareza, dispensa-se qualquer esforço hermenêutico. Como disse acima, esse brocardo jurídico já foi abandonado dentro da hermenêutica jurídica.

Essa premissa impõe, portanto, um adequado estudo das regras processuais a respeito da distribuição de processos, sua redistribuição em virtude de certas hipóteses (como o óbito), bem como dos princípios constitucionais e regras processuais aí envolvidas.

Gostaria de iniciar a reflexão a que me propus pela necessária afirmação de que há tempos ocorreu um fenômeno irreversível: a constitucionalização do processo civil, sinalizado dentro de um quadro maior conhecido como neoconstitucionalismo (movimento que significa o aumento de temas ou conteúdos que passam a figurar nas normas constitucionais).

A Constituição Federal de 1988 não chega à minúcia de estabelecer regras a respeito de como se darão a distribuição e redistribuição de processos nos Tribunais Superiores, tampouco nos juízos de primeiro grau. Esse tema é reservado à legislação processual, notadamente o Código de Processo Civil, seja o de 1973 ou o atualmente vigente, de 2015.

Entretanto, há princípios constitucionais que sem dúvida se aplicam ao caso em tela. Sobretudo a garantia/necessidade de imparcialidade do juízo, decorrência do próprio Estado Democrático e do princípio republicano, o devido processo legal, bem como por influxo do princípio da legalidade.

Em outras palavras, bem simples e diretas: não se “escolhe” qual o julgador irá apreciar esse ou aquele processo, sejam autos simples ou uma demanda relevante para o destino do país.

A distribuição (e redistribuição) de processos deve se dar a partir do que expressamente dispõem as normas processuais, sejam aquelas do CPC ou as normas regulamentares, previstas nos Regimentos Internos dos Tribunais.

Mas sempre por sorteio, atualmente realizado em geral por meio eletrônico, que proporcionará um número equivalente de processos para todos os juízes, Desembargadores ou Ministros que componham determinada jurisdição. Nada de “escolher” quem julgará o quê. Imposição decorrente das regras democráticas e republicanas, pura e simplesmente.

Essa é a essência de conteúdo do princípio constitucional do juízo natural.

A Teoria Geral do Processo, sobretudo após a Constituição Federal de 1988, estabelece que os regimentos internos dos Tribunais não são fonte de Direito Processual, limitando-se à mera regulamentação de minúcias referentes ao cumprimento da legislação democraticamente editada no Parlamento. Os Tribunais não podem criar normas processuais.

Segundo ADA PELLEGRINI GRINOVER, CÂNDIDO DINAMARCO e ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA:

“Por último, ainda no plano materialmente legislativo, embora subjetivamente judiciário, há também o poder normativo atribuído pela Constituição Federal aos tribunais em geral, que, através de seus regimentos internos (Const., art. 96, inc. I, a), disciplinam as chamadas questões interna corporis. Participam eles do processo legislativo também, mediante o envio de propostas ao Poder Legislativo sobre organização judiciária (Const., art. 96, inc. I, d, e inc. II). Mas, como é óbvio, a fonte de direito nesses casos será a lei e não a proposta.” (1991, p. 86)

A competência prevista no art. 96, I, da Constituição Federal, não assegura aos Tribunais a prerrogativa de criação de novas normas processuais, limitada que é à elaboração dos regimentos internos, os quais possuem a amplitude de unicamente dispor sobre a adaptação de atos processuais internos às leis processuais derivadas do Congresso Nacional.

Do mesmo modo, é preciso ressaltar que tampouco a interpretação dada às normas de Regimento Interno de tribunais pode incidir na criação de regras processuais.

O CPC de 2015 disciplina a distribuição de processos nos Tribunais. A esse respeito escrevemos em parceria com Denis Donoso em nosso Manual dos Recursos Cíveis – teoria e prática, sendo que resgato um trecho de proveito para nossa discussão:

“A distribuição dos processos será feita de acordo como regimento interno do tribunal, observando-se a alternatividade, o sorteio eletrônico e a publicidade (art. 930).

A distribuição, como se vê, é feita mediante sorteio eletrônico, de modo que se revezem os relatores sorteados para capitanear a análise dos processos e recursos que chegam aos tribunais. Esse procedimento de distribuição, ademais, deve obedecer aos ditames da publicidade, consoante previsto no art. 37, caput, e 93, IX, ambos da Constituição Federal.

O CPC faz menção à distribuição em conformidade ao regimento interno de cada tribunal. Vale ressaltar que o regimento interno não pode criar dispositivos processuais não previstos em lei; trata-se de mera organização interna, como por exemplo divisão de competências internas conforme as matérias tratadas (divisão da corte em seções especializadas em matéria cível e matéria penal, por exemplo), e a distribuição obviamente observará tais disposições: um apelação cível só será distribuída, prosseguindo nesse exemplo, para os Desembargadores que compuserem a seção cível do Tribunal, excluindo-se do sorteio os relatores que compuserem a seção destinada à matéria penal.

Compete ao regimento interno dos tribunais, também, definir qual o desembargador e o órgão interno responsáveis pelo sorteio e distribuição dos processos. Normalmente essa incumbência é privativa do presidente ou vice-presidente da Corte, e há normalmente uma Secretaria responsável pelas práticas cartorárias dessa atribuição.

A menção a sorteio eletrônico busca assegurar moralidade (art. 37, caput, da CF) à distribuição dos processos nos tribunais, evitando sorteios manuais e, portanto, temerários.” (DONOSO, SERAU JR., 2016, p. 118-119)

Por fim, cumpre examinar como o tema fica no Regimento Interno do STF - RISTF. Seu artigo 66 estabelece que:

“Art. 66. A distribuição será feita por sorteio ou prevenção, mediante sistema informatizado, acionado automaticamente, em cada classe de processo.”

Na imprensa muito se mencionou que, nos termos do art. 38, IV, a, do RISTF, seria possível a redistribuição dos processos do Ministro Teori, em razão de seu óbice, para o Ministro que fosse nomeado para sua vaga. O que eventualmente poderia conturbar o andamento do processo relativo à Operação Lava-Jato.

Entretanto, não se pode perder de vista o art. 68, também do RISTF, que disciplina a redistribuição de processos no âmbito daquela Corte, nos casos urgentes:

“Art. 68. Em habeas corpus, mandado de segurança, reclamação, extradição, conflitos de jurisdição e de atribuições, diante de risco grave de perecimento de direito ou na hipótese de a prescrição da pretensão punitiva ocorrer nos seis meses seguintes ao início da licença, ausência ou vacância, poderá o Presidente determinar a redistribuição, se o requerer o interessado ou o Ministério Público, quando o Relator estiver licenciado, ausente ou o cargo estiver vago por mais de trinta dias.

§ 1º Em caráter excepcional poderá o Presidente do Tribunal, nos demais feitos, fazer uso da faculdade prevista neste artigo.”

O art. 38, IV, a, do RISTF cuida do processo natural de sucessão entre Ministros, como ocorrem em todos os Tribunais nacionais.

Não se pode perder de vista, contudo, o quão complexo é o processo de nomeação de um Ministro para o STF, tanto do ponto de vista político (análise de que nos furtaremos) como pelo aspecto jurídico: indicação pela Presidência da República, sabatina pela CCJ – Comissão de Constituição e Justiça do Senado, posteriores atos de nomeação e assunção do Gabinete no STF, além da adaptação à rotina burocrática do Tribunal.

Esse elemento burocrático deve ser necessariamente levado em consideração para a aferição se o caso concreto demanda redistribuição imediata, se será aguardado o novo Ministro componente do STF, se será preciso apreciar medidas urgentes.

Em nenhuma dessas hipóteses, será justificável e possível sobrepujar as tão caras regras processuais sobre distribuição (ou redistribuição) de processos, as quais encontram guarida, como demonstramos aqui, na própria Constituição Federal.


Notas e Referências:

DONOSO, Denis; SERAU JR., Marco Aurélio. Manual dos Recursos Cíveis – teoria e prática, Salvador: Juspodivm, 2016.

GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do processo, 8ª edição, rev. e atual., S. Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.


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