Primeiras impressões sobre o Novo Crime de Stalking: uma abordagem crítica

29/06/2021

Stalking tem sido o assunto do momento, principalmente, no Brasil após a publicação da lei nº 14.132 do dia 31 de março de 2021, que passou a tipificar o crime de perseguição. O novo tipo incriminador, previsto no artigo 147-A do Código Penal, foi inserido no capítulo VI (dos crimes contra a liberdade individual), localizado topograficamente dentro do título I do mesmo diploma, que dispõe sobre os crimes contra a pessoa. Ressalte-se que a nova lei, por outro lado, revogou o artigo 65 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei nº3.688/41) que previa a infração penal de perturbação da tranquilidade, que tipificava a conduta de “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável”, cominando pena de prisão simples de 15 dias a 3 meses. Como veremos, o novo crime reconfigurou essa conduta, acrescentando outras elementares, agora no artigo 147-A do CP.

Trataremos, de uma delicada questão no âmbito da sociedade que consiste na criminalização da conduta de perseguir alguém de forma obsessiva e continuada, de modo a interferir na liberdade individual da vítima que passa a se sentir acuada, atormentada e violada em sua autonomia. O tema ganhou visibilidade no filme hollywoodiano Atração Fatal que entrou em cartaz nos Estados Unidos em 1988.

O objetivo do texto é verificar as origens do chamado stalking e suas variações no cyberstalking, em um primeiro momento, e; posteriormente, demonstrar as primeiras impressões dogmáticas acerca da novatio legis incriminadora. Essa análise terá como referencial teórico a Teoria Crítica[1], em contraposição às abordagens tradicionais, que se caracterizam pelo modelo de análise objetiva, em defesa de uma suposta neutralidade científica, normalmente, adstrita no campo do direito à análise jurisprudencial e dogmática. Significa dizer que realizaremos uma abordagem técnica; para, posteriormente, em sede de considerações finais teceremos eventuais considerações críticas, em abordagem interdisciplinar.

A relevância do estudo é o desejo de contribuir sobre o novo tipo penal, que ganhou destaque através da linguagem utilizada na internet, agora tipificado na legislação penal brasileira. Buscaremos demonstrar quais são as origens e formas de perseguição, além de verificar os elementos objetivos e subjetivos do tipo, e alguns possíveis desdobramentos processuais.

 

1. Origens das discussões sobre o stalking (ou perseguição)

Stalking pertence ao verbo to stalk, oriundo da língua inglesa que pode ser traduzido[2] como uma perseguição persistente de uma vítima. Não se trata necessariamente de uma perseguição física, pois pode ser realizada de forma virtual, através do uso da internet, redes sociais, ou presencialmente, como nos aprofundaremos adiante.

A primeira regulamentação concernente a este crime se deu na Dinamarca em 1930, mas só ganhou destaque após o assassinato de Rebecca Schaeffer, uma atriz americana no ano de 1990, no estado da Califórnia. Robert John Bardo (um problemático fã), passou a perseguir a atriz, enviar-lhe cartas, de forma obsessiva e persistente, que inicialmente foram respondidas, pois a vítima achava se tratar apenas de um admirador. Bardo, após assistir uma peça em que a atriz contracenava com um ator, não aceitou o conteúdo das cenas, e movido por ciúmes, descobriu onde a atriz morava, e acabou por tirar-lhe a vida com um tiro à queima roupa[3].

 

2. Tipificação no Brasil

A tipificação no Brasil se deu através da lei nº 14.132, que substituiu o PL nº 1.369/2019, e teve como relator o senador Rodrigo Cunha (PSDB). O novo diploma foi publicado no dia 1º de abril de 2021, e inseriu no Código Penal a seguinte redação:

“Art. 147-A.  Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

§1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido:

I – contra criança, adolescente ou idoso;    

II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;     

III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.       

§2º - As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.

§3º - Somente se procede mediante representação”

De acordo com a nova redação do tipo penal em análise, podemos apontar os seguintes elementos: (I) a conduta de perseguir alguém, (II) de forma reiterada e por qualquer meio, (III) devendo o agente ameaçar a integridade física ou psicológica da vítima, restringindo-lhe a capacidade de locomoção, ou invadindo ou perturbando a sua esfera de liberdade ou privacidade.

Segundo Kristine Kielen, psicóloga clínica forense americana, fundadora do Minnesota Threat Assessment & Forensic Professionals, que dedicou seus estudos ao tema em análise, pode-se definir o stalking como “a perseguição persistente e indesejada de um indivíduo ou assédio obsessivo de outra pessoa, causando-lhe medo ou lesão em seu corpo.”[4] Já para a psicóloga italiana Alessia Micoli trata-se de“(...) fenômeno atribuível a formas de intrusões relacionais, repetidas e incômodas, através de assédio psicológico e físico (..).”[5]

Em uma abordagem jurídico-penal, o primeiro elemento a ser analisado é o verbo-núcleo do tipo: “perseguir” que foi a forma como foi traduzida o stalking para a língua portuguesa, como visto anteriormente.

Perseguir, portanto, não está necessariamente no sentido de uma perseguição física, pois a conduta também ficará caracterizada quando houver assédio ainda que por meio virtual. Isso porque o tipo penal afirma que a conduta de “perseguir” poderá ser feita por qualquer meio, o que evidentemente ficará caracterizado também por ligações, e-mails, mensagens de aplicativos ou redes sociais, além de perseguições físicas (presenciais).

O detalhe é que essa perseguição deverá ser de forma continuada. Isso porque o tipo penal utiliza a expressão “perseguir alguém, reiteradamente”, o que poderá ocorrer com propostas insistentes em lugares (geográficos ou virtuais) frequentados pelo importunado habitualmente, de modo a ameaçar a integridade física ou psicológica deste, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

 

 3.Consumação e dolo

O crime de perseguição ficará consumado com a prática da conduta de perseguir a vítima de forma reiterada.

Isso pode acontecer em qualquer das hipóteses referenciadas no caput do artigo 147-A do CP, ou seja, (I) ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, (II) restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, (III) de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

De toda maneira, deve-se destacar que no tipo penal em exame somente está prevista a modalidade dolosa. Sob esse prisma, o dolo em sentido técnico penal é a consciência e vontade de realização da conduta, orientada à realização do tipo de um delito. Somente ficará configurado o crime se o agente perseguir de forma persistente a vítima com vontade (aspecto volitivo) e consciência (aspecto intelectivo)[6].Assim, frisamos que só há crime culposo se houver previsão legal (art. 5º, XXXIX, da CRFB/88 e art. 1º do CP).

Portanto, imaginemos que A teve um início de relacionamento amoroso com B, e depois se desinteressa por este. Observe-se que A e B, neste exemplo, já frequentavam a mesma faculdade, o mesmo curso de alemão e moram em um mesmo condomínio. Neste caso será problemática a prova de que B persegue A pelo simples fato de estar presente nesses lugares. A tipificação ou não do delito dependerá da prova da prática reiterada e habitual, com vontade e consciência por parte de B em perseguir A. Essa prova poderá ser possível mediante outras fontes tais quais as provas testemunhais, imagens de circuitos internos de câmeras desses lugares, além de outras, na forma do art. 156 do Código de Processo Penal. Se ficar comprovado que B estava presente nos mesmos lugares que A em razão de suas atividades habituais, não há que se falar em crime, diante do princípio da excepcionalidade do crime culposo.

Destarte, essa perseguição pode ser feita em diversas modalidades, desde que dolosamente, como explicaremos a seguir.

 

4. Stalking na vida privada da vítima

Ultrapassada a análise dos elementos do tipo penal, passamos a estudar algumas modalidades de stalking, conforme estudos centrados na figura do criminoso, em uma abordagem nitidamente tradicional, ou seja, voltada para o micro e não para a macrocriminologia. Em que pese não concordarmos com essas rotulações, ainda assim passamos a expor as mesmas em conformidade com o senso comum jurídico-penal.

Já frisamos, anteriormente, que não há um consenso para o termo, assim o crime ficará configurado quando o agente, independentemente de seu sexo, gênero, ou orientação sexual, age de forma a ameaçar a integridade física ou psicológica da vítima por meio da perseguição constante. Ressaltamos que para a caracterização do crime não há a necessidade do stalker ter tido qualquer forma de relação com a vítima, ou seja, o delito poderá ficar configurado entre sujeitos desconhecidos.

             

5. Cyberstalking

Como se pode observar, o estudo das modalidades de stalking se mostra relevante, a partir da análise da norma penal, que afirma que o delito poderá ser praticado “por qualquer meio”.

Desse ponto de vista é necessário compreender a expressão cyberstalking.  Trata-se de um meio de perseguição exercido por meio virtual, sendo certo que essa espécie tem ganhado destaque, diante do crescente número de usuários de aplicativos e redes sociais que expõem fragmentos de suas vidas íntimas no universo virtual, muitas vezes de forma excessiva, o que torna por facilitar o cyberstalking.

Nessa linha de raciocínio, o cyberstalker é um perseguidor, importunador, agindo por meio da internet. Efetivamente, os danos causados pela internet podem ser até maiores do que os ocasionados pelo stalking fisicamente, visto que na internet dificilmente um arquivo some por completo, sendo possível diversas artimanhas para amedrontar a vítima, de forma anônima e sem aparentemente deixar rastros[7].

 

6. Tipos de perseguição (stalking)

De acordo com a psicóloga Alessia Micolli[8], é possível definir 4 tipos de perseguição:

Stalking de celebridade: por serem pessoas que estão em constante destaque na mídia e. desta maneira, frequentes vítimas de perseguição. As motivações são inúmeras e variam de amor platônico ao ódio pelo famoso que venha ser a vítima.

Stalking emocional: esta modalidade está diretamente ligada à falta de aceitação de términos de relacionamentos;

Stalking ocupacional: conduta exercida por qualquer um dentro do ambiente de trabalho;

Stalking familiar: violência ocorrida no seio lar, entre os cônjuges, filhos e familiares em geral. As agressões podem ser físicas, psicológicas e econômicas.

 

7. Variações de Stalking

7.1. Bullyng  

Um dos mais novos atos nocivos mencionados na pós-modernidade é o bullyng. A terminologia de origem inglesa, possui o sentido literal de intimar, tiranizar ou ameaçar alguém. Trata-se de um dos temas de constante debate na atualidade, causador de problemas, traumas e outras consequências lesivas não só ao indivíduo, mas também a sociedade como um todo.

Trata-se de agressões físicas ou psicológicas, mais frequente entre grupos de crianças e adolescentes em ambiente escolar, ou entre jovens universitários, onde determinados sujeitos são alvos de perseguições que podem ser percebidas em ações de intimidação sistemática, por meio de insultos, xingamentos, difamações, agressões físicas, ou exclusões que podem ser praticadas presencialmente ou em ambientes virtuais, conforme o disposto na lei nº. 13.185 de 2015. Este diploma tem por objetivo prevenir agressões dessa natureza, principalmente, no ambiente escolar euniversitário, o que não impede que ocorra em outros locais.

Uma das trágicas consequências dessas práticas foi o caso de um ex-aluno, à época com 23 anos, que se apresentou como palestrante para entrar na Escola Municipal Tasso da Silveira portando duas armas de fogo em sua mochila. O ex aluno invadiu uma sala da 8ª série do ensino fundamental e iniciou uma série de disparos contra os alunos que assistiam a aula, até ser atingido por policial em situação caracterizada a época como legítima defesa de terceiros. O atirador ao ser atingido por um disparo, caiu no chão e deu um tiro na própria cabeça. Ele havia escrito uma carta onde relatava ter sido vítima de bullyng na escola. Ao final do massacre foram totalizadas 12 crianças mortas e 12 feridas[9].

Fato é que o bullyng, em certas ocasiões, e preenchidos os elementos do artigo 147 – A do CP, poderá caracterizar o crime de perseguição. O intérprete deve estar atento pois cada contexto diferenciado de bullyng poderá caracterizar diferentes crimes, sendo esta análise casuística. Assim, não estamos afirmando que todas as modalidades descritas na lei nº. 13.185/2015 caracterizariam o crime do artigo 147-A do CP pois, dependendo do caso, poderão restar caracterizados outros crimes como p.ex. a ameaça (art. 147 do CP); crimes contra a honra (arts. 138 – 140 do CP); constrangimento ilegal (art. 146 do CP); lesões corporais (art. 129 do CP), dentre inúmeras possibilidades.

Por fim, se praticado em ambiente escolar, por agente menor de 18 anos de idade (art. 27 do CP), restará caracterizado ato infracional, com as consequências previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei nº 8.069/90), diante da não configuração de crime em sentido analítico.

 

7.2. Mobbing ou assédio moral no ambiente de trabalho

O mobbing pode ser compreendido como assédio psicológico ou moral no ambiente de trabalho. Normalmente é definido como uma série de comportamentos abusivos, praticados por palavras, gestos, insinuações e, em alguns casos, perseguições de forma sistemática que atentem contra a dignidade de um colega de trabalho. Dependendo do contexto fático e, preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do artigo 147 -A do CP, poderá restar tipificado o novo crime de perseguição, dentre outras possibilidades, dentro do mesmo raciocínio do bullyng.

Em outro giro, se houver um constrangimento contínuo com a finalidade de obter vantagem ou favorecimento sexual, a depender do caso, poderão restar configurados os crimes de: (I) assédio sexual, previsto no artigo 216-A do CP, se a conduta for praticada por agente superior hierárquico ou com ascendência inerente a cargo, emprego ou função; sendo necessário que, diante da negativa da vítima em realizar o favorecimento sexual, haja prejuízo em sua relação de trabalho; ou  (II) estupro, tipificado no artigo 213 do CP, se houver violência ou grave ameaça com a finalidade de conjunção carnal ou outro ato libidinoso.

 

8. Outras considerações doutrinárias

8.1. Crime habitual

O delito de perseguição pode ser classificado doutrinariamente como um crime habitual, na medida em que o tipo exige do agente um comportamento persistente e reiterado para a sua configuração. Por conseguinte, ou o stalker pratica a perseguição de forma continuada, consumando o crime de perseguição, ou o fato será atípico, caso não configure outro crime. Por se tratar de crime habitual, não será possível vislumbra-se a forma tentada (art. 14, II do CP).

 

8.2. Crime comum e análise das majorantes do parágrafo primeiro

Quando a doutrina penal fala em crime comum, vale dizer que a lei não exige como requisito para a configuração do crime qualquer classe ou condição especial para o sujeito ativo, nem para o sujeito passivo da infração penal. Assim, qualquer pessoa, independentemente do gênero, sexo ou orientação sexual pode atuar no polo ativo ou passivo.

Cumpre ressaltar que a norma em exame prevê, em seu parágrafo primeiro, causa de aumento de metade da pena, para os casos em que o crime seja cometido contra crianças, adolescentes ou idosos (inciso I); ou contra as mulheres em razão do sexo feminino (inciso II); ou, em última análise, em caso de concurso de pessoas ou por meio de utilização de fogo, podendo esta ser uma arma própria (fabricada para defesa e ataque) ou imprópria (objetos que podem ser usados para ataque ou defesa, embora com fabricação destinada para outras formas de uso, como p.ex. faca de cozinha, taco de baseball ou outros).

 

8.3. Ação penal

O crime de perseguição somente se procede mediante representação do ofendido (art. 147, § 3º do CP). Significa dizer que, para que o Ministério Público possa proceder com a ação penal, através do oferecimento de denúncia, será necessário que a vítima manifeste a sua vontade expressamente no sentido de desejar proceder criminalmente contra o ofensor.

Forçoso reconhecer que, caso proposta a ação penal sem que haja nos autos a representação da vítima, o juiz ao analisar a denúncia poderá rejeitá-la liminarmente por ausência de condição específica de procedibilidade, na forma do artigo 395, inciso II do CPP.

 

 

8.4. Infração penal de menor potencial ofensivo

Tendo em vista que o preceito secundário cominado no caput do tipo penal é de 2 anos de reclusão, consequentemente, o crime do artigo 147-A do CP poderá ser classificado, em sua modalidade simples, como uma infração penal de menor potencial ofensivo (artigo 61 da lei nº 9.099/95).

Disso resulta que a competência para processo e julgamento do crime de perseguição será dos juizados especiais criminais, tendo aplicabilidade, nesses casos, a composição dos danos civis (art. 74), a transação penal (art. 79) e, eventualmente a suspensão condicional do processo (art. 89), todos da lei nº 9.099/95, quando não se tratar de hipótese de violência doméstica, como analisaremos a seguir.

Ressalte-se ainda que, em caso de configuração de alguma das hipóteses das majorantes, a pena será aumentada em sua metade, restando a competência residual, em regra, para uma vara criminal.

 

8.5. Stalking em hipótese de violência doméstica

Como se pode observar pela leitura do artigo 147-A, § 1º, inciso II do CP, a pena será aumentada da metade se o crime for praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino. Neste sentido, a própria norma penal de cunho explicativo do artigo 121, § 2º-A do CP esclarece que há razões do sexo feminino quando o delito envolver: (I) violência doméstica e familiar, e (II) em situações de menosprezo ou discriminação à condição de mulher (misoginia).

Forçoso reconhecer que na hipótese de violência doméstica e familiar contra mulher, a competência será  a indicada no artigo 14 da lei nº 11.340/2006 e, consequentemente, afastadas as medidas despenalizadoras da lei nº 9099/95. Isso porque, com a incidência da causa de majorante, restará afastado a possibilidade do feito ser processado e julgado perante um juizado especial criminal; assim também como por força do artigo 41 da lei 11.340/06.

Disso resulta a possibilidade de decretação das medidas protetivas de urgência previstas no artigo 22 da Lei Maria da Penha.

 

9. Considerações finais

A pesquisa apresentada ao longo deste ensaio veio com a proposta de analisar, em primeiras impressões, o crime de stalking no Brasil, sem qualquer pretensão de esgotar o exame desta novatio legis incriminadora.

Efetivamente sabemos, especialmente através de reportagens midiáticas[10], sobre a problemática social de casos que envolvem perseguição de mulheres que são as vítimas contumazes de perseguições, principalmente, em casos de violência doméstica.

Ocorre que, ao contrário da ideia da ultima ratio, e de se implementarem políticas públicas de caráter preventivo, a ideologia da defesa social[11] por meio do senso comum jurídico penal, aposta na tese da máxima efetividade do Direito Penal no controle dos cidadãos, especialmente, explorando o clamor punitivista e o medo generalizado que pretende transformar a tutela criminal em prima ratio.

Para nós trata-se de mais uma aposta no discurso da emergência, que age com a vocação de expandir o aparelho repressivo estatal. A referência que se faz foi denominada por Jesús-María Silva Sanches comoLa expansión del derecho penal”[12], que se apresenta como o produto de uma simplificação das questões sociais que pretende, no constante recurso à criminalização formal, uma resposta superficial às questões macrossociais, “deslocando ao plano simbólico (isto é, ao da declaração de leis que tranquilizam a opinião pública) o que deveria resolver-se no nível da instrumentalidade (da proteção efetiva)”.

Afirmamos isso, porque ao longo da pesquisa identificamos textos que propõem categorizações de stalkers com rotulações que remontam às ideias defendidas pela escola positiva, ao afirmar que a compreensão do delito se encontra em todo o complexo de causas da totalidade biológica ou psicológica do indivíduo. Chegamos a ler textos que classificavam os autores desses crimes em: stalker ressentido, cujo seu principal objetivo é se vingar da vítima; Stalker carente de afeto ou à procura de intimidade, que seriam aqueles que idealizam uma relação, sendo comum entre pessoas solitárias, sem amigos, portadoras de distúrbios psíquicos; e ainda stalker pretendente incompetente; stalker rejeitado; e, finalmente stalker predador.

Sistematizações de tal ordem trazem continuidades e permanências autoritárias[13] que fazem ressurgir a combatida noção de direito penal do autor ou mesmo do inimigo, desprezando-se os avanços críticos que consagraram a noção de direito penal do fato.

Pesquisas voltadas para as diferentes formas de atuar do “homem criminoso” estudado por Lombroso, demonstram a persistência da crença na ampliação do sistema penal como fórmula solucionadora da descrença em outras esferas do poder na implementação de políticas de caráter preventivo. Nos referimos a incapacidade do Poder Público de intervir com mais propostas políticas ou administrativas nas causas genéticas das novas formas de criminalidade[14] em meio a uma sociedade de risco.

No mesmo sentido, percebe-se uma simplificação de questões relacionadas ao problema estrutural da sociedade patriarcal brasileira, como se a prisão dos infratores fosse suficiente para a transformação e evolução cultural. Essa linha de pensamento é falaciosa, pois o reconhecimento do mau, do perigoso, não somente distancia as atenções do problema social, bem como ignora a averiguação de outras propostas, colocando de lado a investigação das origens sociais e culturais que ensejam essas questões “ao provocar a superficial sensação de que, com a punição, o problema já estaria satisfatoriamente resolvido” [15].

Com efeito já estavam previstos no Código Penal os crimes de ameaça; os delitos contra a honra; as lesões corporais, o constrangimento ilegal, a ameaça, o assédio sexual em ambiente de trabalho, dentre outras previsões, que absolutamente se aplicariam nesses casos e, para os que acreditam, exercem a chamada prevenção geral contra essa forma de criminalidade.

Nossa conclusão inafastável até agora é bem simples: temos mais um tipo penal no ordenamento jurídico. O problema que mais uma vez aparece diz a respeito aos resultados da “efetividade” da resposta penal. Concluímos com a seguinte indagação: será que mais uma tipificação, no país da inflação legislativa criminal, contribuirá para a redução de casos de perseguição?

 

Notas e Referências

AMIKY, Luciana Gerbovic. Stalking.   São Paulo: 2014, p. 41. Dissertação de Mestrado de Direito da PUC-SP.

Disponível em: < https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/6555/1/Luciana%20Gerbovic%20Amiky.pdf>. Acesso em: 25/4/2021.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte geral 1. 24. Ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

BRASIL. Lei nº LEI N o 10.406, de 10 de janeiro de 2002. [S. l.], 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 24 abr. 2021>.

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KIENLEN, Kristine. DEVELOPMENTAL and Social Antecedents of Stalking. Psy.D., [s. l.], 1998. Disponível em: <http://cachescan.bcub.ro/e-book/Adriana%20C_3_e-book_12000-13000/580725/51-112.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2021.

SENADO NOTÍCIAS. Lei que criminaliza stalking é sancionada Fonte: Agência Senado. Senado Notícias, [S. l.], p. 00, 5 abr. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/04/05/lei-que-criminaliza-stalking-e-sancionada. Acesso em: 24 abr. 2021.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010.

KARAN, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Relume Duramá, n. 1, ano 1, 1º semestre de 1996, p.79-91.

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ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

[1] HORKHEIMER, M. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In:  BENJAMIN, Walter et al. Textos Escolhidos - Teoria Crítica - Escola de Frankfurt. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1989.

[2] https://dictionary.cambridge.org/

[3] AMIKY, Luciana Gerbovic. Stalking.   São Paulo: 2014, p. 41. Dissertação de Mestrado em Direito Civil da PUC-SP. Disponível em: < https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/6555/1/Luciana%20Gerbovic%20Amiky.pdf>. Acesso em: 25/4/2021.

[4] Developmental and Social Antecedents of Stalking Kristine K. Kienlen, Psy.D. “Stalking is generally defined as an individual's persistent unwanted pursuit or obsessional harassment of another person causing him or her fear of bodily injury - http://cachescan.bcub.ro/e-book/Adriana%20C_3_e-book_12000-13000/580725/51-112.pdf) - Cambridge Dictionary apud AMIKY, Luciana Gerbovic. Stalking.   São Paulo: 2014, p. 41. Dissertação de Mestrado em Direito Civil da PUC-SP.

Disponível em: < https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/6555/1/Luciana%20Gerbovic%20Amiky.pdf>. Acesso em: 25/4/2021.

[5] Do original: “(...) fenomeno riconducibile a forme di intrusioni relazionali ripetute ed assillanti, tramite molestie psicologiche e fisiche (...) - cambridge dictionary-https://www.amazon.com.br/fenomeno-stalking-Aspetti-giuridici-psicologici/dp/8814174148). Cf. AMIKY, Luciana Gerbovic. Stalking.   São Paulo: 2014, p. 41. Dissertação de Mestrado em Direito Civil da PUC-SP.

Disponível em: < https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/6555/1/Luciana%20Gerbovic%20Amiky.pdf>. Acesso em: 25/4/2021.

[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte geral 1. 24. Ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 367.      

[7] AMIKY, Luciana Gerbovic. Stalking.   São Paulo: 2014, p. 35. Dissertação de Mestrado em Direito Civil da PUC-SP.

Disponível em: < https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/6555/1/Luciana%20Gerbovic%20Amiky.pdf>. Acesso em: 25/4/2021.

[8] AMIKY, Luciana Gerbovic. Stalking.   São Paulo: 2014, p. 29. Dissertação de Mestrado em Direito Civil da PUC-SP.

Disponível em: < https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/6555/1/Luciana%20Gerbovic%20Amiky.pdf>. Acesso em: 25/4/2021.

[9] AMIKY, Luciana Gerbovic. Stalking.   São Paulo: 2014, p. 38. Dissertação de Mestrado em Direito Civil da PUC-SP.

Disponível em: < https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/6555/1/Luciana%20Gerbovic%20Amiky.pdf>. Acesso em: 25/4/2021.

[10] MULHERES. vítimas de ‘Stalking‘ relatam consequências de perseguição que não é considerada crime no Brasil. Globo- G1, [S. l.], 10 mar. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2019/03/10/mulheres-vitimas-de-stalking-relatam-consequencias-de-perseguicao-que-nao-e-considerada-crime-no-brasil.ghtml. Acesso em: 24 abr. 2021.

[11] Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011, p. 41-49.

[12] SANCHES, Jesus-Maria Silva. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 29.

[13] Sobre a análise de continuidades e permanências autoritárias Cf. NEDER, Gizlene. Iluminismo Jurídico-Penal Luso-Brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2ª ed., 2007.

[14] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010, p. 646-647.

[15] KARAN, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Relume Duramá, n. 1, ano 1, 1º semestre de 1996, p.82.

 

 

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