Coluna: Atualidades Trabalhistas / Coordenador: Ricardo Calcini
Prezado (a) Leitor (a),
A realidade vivenciada é sempre incorporada na forma de pensar e interpretar as situações. Diante disto, o historiador, Arthur Schlesinger, idealizou a “Teoria do Pêndulo”, sob o espeque de que a história política da maioria dos países é formada por dois extremos, um reformador e outro conservador.
O Direito do Trabalho, por ter relação com a economia, não fica imune às transformações político-sociais. O Direito vive em constante mutação, procurando se aperfeiçoar, de modo a acompanhar as necessidades sociais. Com o Direito do Trabalho não pode ser diferente, à medida que as necessidades sociais surgem, ele deve buscar se enquadrar a essas novas realidades.
Além do papel protetivo, a justiça do trabalho é especializada e tem a função “pedagógica” de demonstrar que os direitos concedidos devem ser respeitados. Donde se vê a essencialidade desta justiça, pois sendo diferente, não haveria necessidade da sua existência.
Nesse contexto se implementa a “reforma trabalhista”. A Lei n. 13.467/2017 é alvo de diversas críticas. Este texto tratará de um dos debates, qual seja: a mudança realizada no artigo 620 da CLT.
Vamos lá?
Pense na seguinte situação: em setembro/2016, o ministro Teori Zavascki (RE 895.759), do STF, deu provimento a um recurso para afastar a condenação de uma empresa ao pagamento das horas “in itinere” e dos respectivos reflexos salariais. Na decisão prevaleceu o acordo coletivo de trabalho, o qual suprimia o pagamento das horas “in itinere”, mas em contrapartida concedia outras vantagens, como: cesta básica durante a entressafra; seguro de vida e acidentes além do obrigatório e sem custo para o empregado; abono anual com ganho mensal superior a dois salários-mínimos; salário-família além do limite legal; fornecimento de repositor energético; adoção de tabela progressiva de produção além da prevista na Convenção Coletiva. De outro lado, o TST entendeu pela invalidade do Acordo Coletivo de Trabalho, pois este versava sobre matéria indisponível (art. 58, § 2º, da CLT). [1]
Sim, Anita. Já realizei! E agora, o que você quer com isto?
Calma, GUARDE este fato e vamos por partes.
# Diferença entre ACT e CCT
A convenção coletiva de trabalho está disciplinada no artigo 611, CLT, o qual determina que somente pode ser firmada por sindicatos representativos das categorias profissionais e econômicas envolvidos. Já o acordo coletivo de trabalho, disposto no artigo, §1°, CLT estipula condições de trabalho aplicáveis, no âmbito da empresa ou empresas acordantes, às respectivas relações de trabalho. A celebração dos acordos coletivos de trabalho é facultado aos sindicatos representativos das categorias profissionais. [2]
Outra distinção reside no campo de abrangência das condições de trabalho estipuladas. Aquelas previstas no corpo da Convenção serão aplicadas a todas as relações individuais de trabalho inseridas no âmbito das representações (ex.: todo o Estado de Pernambuco), enquanto que aquelas fixadas no Acordo estarão restritas ao âmbito da empresa acordante, impedindo a sua exigência em face daquela que não anuiu ou participou de sua criação.
Até aqui tudo certo?
Pronto. Então já podemos passar para a segunda parte da questão a ser enfrentada.
# Princípio da Proteção
O princípio da proteção é inerente à função teleológica do Direito do Trabalho, visto que o empregado possui situação de debilidade frente ao empregador. Este princípio se expressa sob três formas diferentes: princípio do “in dubio pro misero”, condição mais benéfica e norma mais favorável.
Quanto à norma mais favorável, insta esclarecer que, em caso de existência concomitante entre condições estipuladas no Acordo Coletivo de Trabalho e na Convenção Coletiva de Trabalho, surge um conflito na própria aplicação do comando normativo incidente na espécie, exigindo do intérprete exercício de ponderação e parcimônia na definição daquela que será aplicável à espécie.
A doutrina traz meios objetivos hábeis à solução do conflito através de três teorias: a) Teoria da Acumulação, Tomista ou Atomista (prevalece o que for melhor em cada um dos instrumentos); b) Teoria do Conglobamento ou do Conjunto (prevalece o melhor instrumento); e, c) Teoria Intermediária ou Eclética ou Conglobamento por instituto ou Conglobamento Mitigado (prevalece o que for melhor no que tange cada matéria do instrumento).
Então diante de um conflito, qual instrumento coletivo deverá prevalecer?
Até então, o artigo 620 da CLT disciplina que as condições estabelecidas em Convenção quando mais favoráveis, prevalecerão sobre as estipuladas em Acordo.
Ou seja, a CLT determina a preponderância da convenção coletiva sobre o acordo coletivo, visando o cumprimento da norma mais favorável, porém se o acordo coletivo for mais favorável, este haverá de prevalecer, nos termos do princípio da norma mais favorável.
# E com a “reforma” ?
O artigo 620 da CLT ficou da seguinte maneira: as condições estabelecidas em acordo coletivo de trabalho SEMPRE prevalecerão sobre as estipuladas em convenção coletiva de trabalho.
Ah Anita, agora saquei! Adeus ao Princípio da proteção, não é?
Penso que não.
Como assim, endoideceu?
Relaxe. Explico!
Para melhor entender, é bom frisar a importância do critério da especificidade. Isto significa que o acordo coletivo de trabalho (ACT), em razão de ser mais específico, retrata melhor a realidade e deve prevalecer sobre a convenção coletiva (CCT). Então parece que o artigo 620 da CLT apenas incorpora o princípio da especificidade.
Tome nota! O acordo coletivo representa os interesses dos trabalhadores atingidos. Pois, acordo é um ato jurídico celebrado entre sindicatos e empresas, então as cláusulas que vierem a ser por ele avençadas estarão mais próximas da realidade das partes do que aquelas estabelecidas em convenção, fato que não distancia o princípio da proteção.
No mesmo sentido, Homero defende que historicamente o artigo 620 da CLT traz a seguinte premissa: a prevalência não estava em um ou em outro instrumento normativo, mas no que fosse mais benéfico ao trabalhador. Entretanto, o mais benéfico para um empregado com filho pode não ser o mais benéfico para empregados sem filhos, em convenções coletivas contendo cláusula de reembolso de material escolar ou gratuidade na mensalidade das crianças na escola; o benéfico para os empregados diurnos pode não ser para os noturnos, quando a norma estipula percentuais maiores de adicional noturno. E continua, em razão do artigo 7°, VI, CRFB, o qual admite a redução salarial por negociação coletiva (ACT/CCT), alguns autores defendem que o artigo 620 da CLT não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. O critério da especificidade também resolve este conflito, pois um reajuste salarial pode ser excepcionado para uma determinada empresa em situação pré-falimentar, por ACT, e da mesma forma poderá a redução salarial negociada deixar de ser aplicada para toda categoria na empresa em momento de prosperidade, via ACT. [3]
Nota-se, desta forma, que o artigo 620 da CLT realiza o Princípio da Proteção. Entretanto, frise-se: o legislador agiu mal ao inserir o vocábulo “sempre” ao dispositivo.
Por esta razão, há respeitável doutrina defendendo que prevalência do acordo coletivo sobre a convenção coletiva contraria o princípio da prevalência da norma mais favorável ao trabalhador, o que espelha a intenção do legislador na flexibilização. Acrescenta que a medida enfraquece o princípio da proteção ao empregado e prioriza a norma menos favorável. [4]
Passados estes esclarecimentos, agora é chegado o momento de voltar ao exemplo mencionado acima (àquele que pedi para “guardar”, lembra?). Apenas com o intuito de demonstrar algumas premissas que permeiam o tema “prevalência do negociado sobre o legislado” e para complementar este artigo.
Pois bem, com fim de acompanhar a tendência mundial e o crescente reconhecimento dos mecanismos de negociação coletiva (Convenção n. 98/1949 e na Convenção n. 154/1981) da Organização Internacional do Trabalho, o reconhecimento dos acordos e convenções coletivas permite que os trabalhadores contribuam para a formulação das normas que regerão a sua própria vida, devendo prevalecer a que for mais favorável (RE 590.415). No caso posto, prevaleceu a ACT, como preleciona o novo artigo 620 da CLT.
Entretanto, apesar do que já foi aqui exposto, é importante alertar. Isso pois, de toda forma, ainda que indiretamente, tal exemplo mencionado é um permissivo para que a negociação coletiva prevaleça sobre a legislação - premissa e um dos pilares trazidos pela reforma trabalhista (Lei n. 13.467/2017). Ou seja, as normas coletivas irão prevalecer sobre o conteúdo das leis. Antes da reforma trabalhista, por meio das leis, existia um “contrato mínimo” que não poderia ser transacionado (“Princípio da adequação setorial negociada”).
Insta esclarecer que a Reforma Trabalhista, através dos artigos 8°, §3° c/c 611-A e 611-B, todos da CLT, traz limites à negociação coletiva e um novo princípio. Então, o princípio criado por Godinho, da adequação setorial negociada, é deixado em segundo plano. Este preleciona que normas imperativas legais não podem ser derrogadas na negociação coletiva, salvo para melhoria de condição social. Agora o legislador consagrou o “princípio da intervenção mínima na negociação coletiva”.
Conclusão
É notória a dificuldade de tutelar e preservar os fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1°, CF), tais como: dignidade humana e valores sociais do trabalho, ao permitir a sobreposição do negociado sobre o legislado. Os direitos sociais constituem normas de ordem pública caracterizadas pela imperatividade. Daí reside o perigo de serem afastados por vontade das partes. Apesar dessas últimas afirmações, resta salientar que só será válido o negócio jurídico que preservar os elementos do artigo 104 do CC. Além do mais, por todo o exposto, deve haver um redimensionamento do princípio da norma mais favorável na aplicação do novel artigo 620 da CLT.
Referências bibliográficas
[2] CORREIA, Henrique.Direito do trabalho para concursos de analista do TRT e MPU.7.ed.Editora Juspodivm,2015,p. 803
[3] SILVA,Homero Batista Mateus da. Comentários à Reforma Trabalhista – Análise da Lei 13.467/2017 – Artigo Por Artigo. Revista dos Tribunais,2017,p. 126-127
[4] CASSAR, Vólia Bomfim. Artigo:Reforma Trabalhista comentários ao substitutivo do PL n° 6.787/2016, 2017. Disponível em <http://ostrabalhistas.com.br/reforma-trabalhista-comentarios-ao-substitutivo-do-projeto-de-lei-no-6-78716-por-volia-bomfim/> acesso em: 13.out.2017
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