Preto em táxi? Fundada suspeita

25/02/2018

A judoca Rafaela Silva, medalhista de ouro nas Olimpíadas do Rio 2016, foi vítima de uma situação de extremo preconceito na última quinta-feira, no Rio de Janeiro. Passageira em um táxi, o veículo foi parado pela polícia, que ordenou que o motorista e Rafaela saíssem. Questionaram àquele onde teria buscado a passageira, e o motorista esclareceu que teria sido no aeroporto. O policial, então, respondeu “ah, tá, achei que tinha pego na favela”. Isso tudo com a agradável plateia que costuma assistir aos espetáculos protagonizados pelos agentes de segurança pública.

Ora, se tivesse, de fato, pegado a passageira na favela, teria motivo para a abordagem? Porque o Código de Processo Penal (artigo 240, § 2º) autoriza a busca pessoal apenas quando “houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados [...]”. Embora “fundada suspeita” seja um conceito deveras subjetivo e que permitiria discorrer durante muitas páginas, tratar-se-á da questão de forma bastante direta: ser preto andando de táxi caracteriza “fundada suspeita”? Justifica-se uma abordagem policial? E cabe registrar: a intervenção federal não dá carta branca para procedimentos preconceituosos e abusivos, isto é, não afasta a necessidade de respeito ao Código de Processo Penal.

A Polícia Militar do Rio de Janeiro divulgou uma nota oficial em resposta ao protesto da judoca, alegando injustiça nas declarações, as quais não ajudariam “o trabalho de combate à criminalidade” (que vem funcionando maravilhosamente, aliás). Afirmou, ainda, que se intensificou o policiamento em determinadas áreas, “adotando critérios técnicos e legais para cumprir sua missão de servir e proteger a sociedade”.

Aparentemente, servir e proteger apenas a sociedade branca. E, considerando que os critérios legais não amparam esse tipo de atividade, pode-se concluir os critérios “técnicos” estabelecem que pretos andando de táxi são suspeitos, especialmente se tiverem sido buscados em comunidades marginalizadas. Aliás, pretos são sempre suspeitos.

Como sempre faço quando trato de racismo, preciso estabelecer meu lugar de fala. Sou branca e nunca sofri com isso. Nem sequer imagino o que é ser parada pela polícia simplesmente pela cor da pele. Não consigo pensar nem mesmo em alguém da minha família sendo revistado e humilhado por agentes que deveriam nos proteger. Não tenho, pois, autoridade nem legitimidade para falar desse sofrimento. Isso não significa, no entanto, que eu não possa criticar as práticas atrozes que se verificam ou que eu não possa combater o racismo veementemente. Por isso, faço questão de escrever sobre o assunto. [1]

Fato é que o preto é visto como algo perigoso. Não é à toa que as abordagens são realizadas com muito mais frequência em pessoas de pele preta. Analisemos com atenção o assunto. O negro sempre foi, e ainda é, visto como algo subversivo[2], e até mesmo suas manifestações culturais enfrentam resistência. Nesse sentido: 

Devemos salientar, também, o funcionamento das escolas de samba que serviam e servem de veículos de organização cultural do negro, centenas de pequenos clubes, recreativos ou com outras finalidades, espalhados em todo o território nacional, além de terreiros de Candomblé, Xangô, Macumba e Umbanda, que servem também para agrupar o negro brasileiro. Uma verdadeira teia nacional desses grupos mantém o negro unido e cria condições para a preservação da sua memória afro-brasileira.

Por outro lado, a situação do Brasil durante o golpe militar que foi instaurado no país impossibilitou qualquer diálogo democrático entre esses grupos negros e as autoridades autoritárias que sempre os viram com desconfiança, acreditando serem pontos de subversão. [3] 

Ocorre que esse cenário não se restringiu ao período ditatorial da segunda metade do século XX, verificando-se, ainda hoje, uma série de intempéries enfrentadas pelos pretos, não apenas para manifestar-se, mas até mesmo para viver sem ter outros de seus direitos mais básicos cerceados pelo próprio Estado, que deveria assegurá-los. Veja-se, por exemplo, que os casos de intolerância religiosa são muito mais frequentes quando se trata de religiões de matriz africana, como os citados candomblé e umbanda[4]. Mesmo em se considerando a subnotificação no que concerne à temática, é de extrema facilidade a percepção de discriminação em face dessas religiões[5].

A opressão não findou com a abolição formal da escravatura, apenas mudando sutilmente os seus modos de execução. O poder continuou nas mãos dos mesmos, os quais se valem da sua posição privilegiada para perpetuar o status quo. Os capitães do mato hoje vestem fardas e se regozijam não com a captura de fugitivos, mas com a morte de seus alvos.

Precisamos nos posicionar, pois, na nossa inércia, a violência só cresce. E essa violência tem uma cor bem definida. Violência que se pratica não apenas por meio das armas de fogo, mas também em vários outros aspectos cotidianos.

Para deixar ainda mais claro, interessa transcrever o seguinte excerto: 

[...] há um cruzamento ideológico antagônico ou diferenciado formando outro nível de contradição ou conflito que é aquele existente entre o pobre explorado branco e o negro também explorado, em conseqüência da ideologia racista que foi inculcada no primeiro e se desdobra à medida que a competição do capitalismo dependente se aguça em um país poliétnico e que tem como um dos parâmetros seletores a cor da pele de seus habitantes. Com isto, o problema das classes sociais se diversifica e assume aspectos particulares e ambíguos, pois no seio das classes oprimidas e das suas frações há um segmento que se julga superior pela cor da pele.

Por esta razão, o próprio branco explorado julga-se, não diremos sempre, mas em muitos casos, especialmente em casos concretos de disputa do mesmo emprego, com mais direitos do que o outro (negro) na ocupação dos espaços sociais, culturais e econômicos capazes de dar estabilidade plena ao trabalhador. Essa defasagem ideológica entre o explorado branco e o negro ou não-branco, além de explorados e discriminados etnicamente, cria uma contradição suplementar que dificulta, outras vezes anula, a solidariedade de classe e a sua conseqüente práxis política. O preconceito faz com que o negro, além de explorado pelo sistema capitalista seja discriminado pelos blocos de poder por um racismo que determina seleção de pessoal nas empresas e por grandes camadas da população branca pobre, também exploradas. [6] 

Isso pode ser percebido até mesmo em se analisando a questão salarial. De acordo com o estudo “O desafio da inclusão”, elaborado pelo Instituto Locomotiva, com dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), um homem negro graduado recebe, em média, 29% menos que um branco. Uma mulher negra, nas mesmas condições, recebe apenas 43% do salário de um homem branco. [7]

É necessário, portanto, reconhecer as diversas espécies de atos violentos praticados em relação aos pretos, os quais calam suas vozes e tolhem seus direitos, negando-lhes até mesmo a representatividade necessária ao seu empoderamento. Cabe ao Estado promover medidas que mitiguem, superem e, eventualmente, compensem esses graves erros. Em vez disso, o Estado finda por ser o mais forte dos senhores de engenho.

Para concluir, outra obra que não se pode deixar de mencionar no que diz respeito ao tema foi inclusive vencedora do Prêmio Jabuti: “A ‘tradução’ de Lombroso na obra de Nina Rodrigues”, de Luciano Góes (Rio de Janeiro: Revan, 2016). O autor busca esclarecer de onde advém o racismo verificado atualmente no Brasil, com a ausência de condições igualitárias entre as etnias, a partir da história do país. Mostra, assim, (algumas d)as causas de os negros serem a maioria nos estabelecimentos prisionais brasileiros, por exemplo.

Incrivelmente, ainda há quem negue a existência de racismo e a sua prevalência na orientação da atuação do sistema punitivo...

Encerro com as palavras da judoca Rafaela Silva: “Esse preconceito vai até onde?”

 

[1] A respeito da temática, interessa referir: RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte/MG: Letramento / Justificando, 2017.

[2] Sobre o tema, interessa relevar: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites -- século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

[3] MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1992, p. 78.

[4] https://www.estudopratico.com.br/o-que-e-intolerancia-religiosa-e-qual-religiao-e-mais-atingida-no-brasil/

[5] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160120_intolerancia_religioes_africanas_jp_rm

[6] MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Anita, 1994, p. 245.

[7] http://www.huffpostbrasil.com/2017/11/16/mulher-negra-graduada-no-brasil-recebe-43-do-salario-de-homem-branco_a_23279872/

 

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