A Constituição Federal poderia autorizar a prisão logo em seguida do julgamento de ações penais pela segunda instância? Sim. A lei federal poderia repetir o texto da Constituição e, da mesma forma, autorizar uma espécie de prisão automática, decretada sem qualquer fundamentação? Sim, sem dúvida. A Constituição e o CPP poderiam prever a possibilidade de prisão depois do julgamento pelos Tribunais Regionais Federais ou Tribunais Estaduais. Mas, como todos sabem, isso não aconteceu.
O Constituinte de 1988, resolveu escrever na Carta Política Brasileira que é necessário esperar o trânsito em julgado para que alguém possa ser considerado culpado, conforme artigo 5º, inc. LVII da Constituição Federal. De forma ainda mais clara, o Congresso resolveu alterar a redação do art. 283 do Código de Processo Penal, na reforma legislativa de 2011, para determinar que: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva” (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
Por isso, não deveria ser possível que qualquer pessoa fosse presa, simplesmente, porque a segunda instância decretou a sua condenação, quando a decisão ainda estivesse sujeita à revisão pelas instâncias superiores.
Qualquer pessoa, de inteligência mediana, deveria ser capaz de entender que a Constituição proibiu a aplicação de penalidade, enquanto houver recurso por parte do acusado. Depois da Constituição, em 2011, como se já não fosse clara a questão, o art. 283 do CPP deveria destruir, com mais força ainda, qualquer discussão sobre a possibilidade de execução antecipada da pena.
Deveria, mas não tem sido assim.
Em fevereiro de 2016, no HC 126.292, protocolado pela defesa dos réus, no qual havia deferimento de liminar e concessão de alvará de soltura, o Relator, Ministro Teori Zavascki, voltou atrás em seu entendimento e levou consigo outros seis ministros para admitirem, por maioria (7X4), a prisão em segunda instância.
Contra esse entendimento, o Partido Ecológico Nacional (PEN) e a OAB ingressaram com Ações Diretas de Constitucionalidade, buscando fazer valer o disposto no art. 283 do CPP. A liminar foi indeferida.
Na última semana, assistimos ao julgamento do HC impetrado em favor do ex-presidente Lula, quando o plenário do STF, por maioria, voltou a decidir “que a interpretação da Constituição deve corresponder aos anseios da população“ e que “não é possível fazer a interpretação literal do texto legal“, de tal modo que o “combate à corrupção e à impunidade” deve permitir que todo e qualquer réu seja preso depois do julgamento pela segunda instância.
De todos os votos, vale destacar o posicionamento da Ministra Rosa Weber. Citando a teoria da integridade e coerência de Ronald Dworking, a ministra proferiu o seu voto na mesma linha de outros casos semelhantes analisados anteriormente por ela, nos quais seguiu a posição assentada pela Corte no julgamento do HC 126.292, ou seja, pela possibilidade da prisão antes do trânsito em julgado. Por ter respeitado a posição da maioria nos julgamentos anteriores, por coerência, a Ministra denegou a ordem.
Em seu voto, entretanto, reafirmou sua posição em relação à presunção de inocência, quando restou vencida na mudança de posição da Suprema Corte. Pelo que pude observar, ao acompanhar a votação do HC do ex-presidente Lula, a ministra Rosa Weber chegou a dizer textualmente que não admite a prisão em segundo instância, mas que só poderá manifestar novamente sua posição quando o Plenário do STF for instado a se manifestar especificamente sobre a questão.
Julgamento da ADC 43 poderá ser realizado na próxima quarta-feira (12/04/18).
Depois do julgamento da última semana, houve questão de ordem formulada na ADC 43, tendo o Ministro Marco Aurélio encaminhado a questão para a próxima sessão (na quarta).
Passada a efervescência da discussão envolvendo o conturbado processo do ex-presidente Lula, espera-se que o Supremo Tribunal Federal, com toda a serenidade, faça valer o princípio da legalidade, de tal forma que, mesmo os mais tacanhos possam ler o artigo 283 do Código de Processo Penal e continuar entendendo que só é possível decretar a prisão de qualquer pessoa depois do trânsito em julgado da sentença, em flagrante delito ou cautelarmente.
O entendimento vitorioso do STF, não resta dúvida, coloca em cheque tudo o que se construiu em termos de dogmática jurídica constitucional e penal até aqui.
Como já referi muitas e muitas vezes, os tipos penais e processuais penais são regras e, como tais, sua aplicação exige um exercício interpretativo, o que não acontece apenas em relação à decisão judicial, mas também quanto a todos aqueles que participam do processo judicial. Mas se haverá sempre exercício de interpretação, torna-se fundamental afirmar, mais uma vez, que a decisão não pode ser encarada como um ato de escolha. O ato de decidir/interpretar implica sempre um ônus que é a justificação dos motivos que levaram àquela decisão para o caso concreto.
Não cabe aos Ministros do Supremo a tarefa de julgar de acordo com a vontade do “povo brasileiro”. A questão da “impunidade”, também não pode ser uma preocupação dos Ministros da Suprema Corte.
Há uma diferença entre decidir e escolher, que é fundamental para entender que, também no âmbito da tipicidade, há a exigência de uma resposta correta (Dworkin/Streck).
Um Ministro do Supremo ou um Juiz de alguma cidade pequena do interior, diante de um caso concreto, ambos não podem tomar a decisão como uma escolha dentre várias consideradas possíveis, aceitáveis, dando espaço apenas para a manifestação de sua subjetividade, entendida no plano da expressão dos seus interesses, da sua posição ideológica, religiosa, político-partidária, etc. O ato de escolher pressupõe um processo de eleição que obedece a critérios subjetivos e, assim sendo, é circunstancial, no sentido de que não vincula o intérprete (de maneira alguma), nem ao que foi decidido anteriormente, nem aos efeitos da decisão para as decisões futuras. Nesse ponto, fica claro que escolher é um ato discricionário. E não pode ser assim.
Toda a decisão pressupõe um compromisso, que não pode ser o compromisso com uma (duvidosa) vontade popular por mais punitivismo, mais encarceramento, mais prisões.
Um compromisso com o passado e com o futuro. Trata-se de perceber que o direito possui uma historicidade, uma tradição, construída intersubjetivamente e que uma escolha, eivada de solipsismo, desconstrói todo esse caldo de cultura historicamente condicionado. É fundamental, considerando a noção de integridade do direito (Dworkin), ter presente que: quando um pronunciamento jurisdicional revela uma escolha, então, resta subjugada a noção de direito como um todo coeso e integrado. Vence, pois, a moral.
A percepção dessa diferença entre decidir e escolher pode ser desdobrada em dois outros aspectos fundamentais: no dever de fundamentar as decisões (Streck) e na afirmação da responsabilidade política dos juízes (Dworkin).
Em tempos pós-positivistas, resta ao jurista assumir a responsabilidade por uma teoria da decisão capaz de limitar o poder do julgador (discricionariedade), admitindo a necessidade de respostas corretas em direito penal (como garantia estruturante do estado constitucional e democrático de direito).
Como tenho dito e repetido, decidir corretamente, não pode ser fruto de uma boa escolha, do acaso, nem será o produto da aplicação (matemática) do método. Nesse sentido, como venho trabalhando, há uma moral que é instituidora da comunidade política e que obriga o julgador a obedecer a uma cadeia de coerência e integridade em suas decisões. Observar coerência e integridade, isto sim, pode representar o primeiro passo para a superação da crise do direito.
A base teórica da fundamentação exposta pela Ministra Rosa Weber no seu voto, permite antecipar que ela manterá a coerência e respeitará a integridade do direito, quando julgar qualquer das Ações Diretas de Constitucionalidades referentes ao art. 283 do CPP. A coerência que vem pautando os julgamentos da Ministra, mostra que há motivos para esperança na retomada de uma hermenêutica verdadeiramente constitucional, no interior da qual a prisão somente depois do trânsito em julgado não seja fruto da literalidade, não seja considerada um caso fácil ou difícil, mas seja a expressão da resposta correta como obrigação da autoridade e direito de todos os cidadãos.
Com Dworkin, vale repetir: o juiz tem o dever de decidir de uma maneira específica, pela expressa razão de que o direito exige tal decisão.[i]
Mais não digo.
[i] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 210.
Imagem Ilustrativa do Post: Roberto Castro_Praça dos Três Poderes_Brasília_DF // Foto de: MTur Destinos // Sem alterações
Disponível em: encurtador.com.br/giqyH
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode