Presunção de ilicitude do patrimônio controverso: inversão do ônus da prova pró-culpabilidade

18/03/2020

Coluna Espaço do Estudante

Sabe-se a muito que as medidas cautelares prevista no Código de Processo Penal possuem o escopo de garantir a aplicação da lei penal, no caso das medidas pessoais, ou a reparação do dano oriundo do delito, nas hipóteses de restrição do patrimônio.

Desta forma, os efeitos adjacentes à condenação criminal visam, incluindo-se a privação da liberdade, efetivar a restrição cautelar causada pela medida previamente determinada com observância dos requisitos do fumus comissi delict e pericum in mora.

Portanto, pela lógica processual penal e seguindo os pressupostos procedimentais previstos, a decretação da prisão preventiva possuiria, em si própria, um pressuposto de “condenabilidade”, eis que se efetivaria pela condenação criminal, a qual manteria o acusado em restrição ambulatorial, mantendo-se a prisão preventiva antes do trânsito em julgado, ou determinaria a soltura do agente até julgamento definitivo.

Logo, o efeito da condenação penal que efetiva a medida patrimonial assecuratória é a perda dos bens sequestrados, por disposição do art. 91/CP, visto que não faz sentido decretar a perda de bens que não tenham sido sequestrados, considerando que, no campo prático, os bens fruto de infração penal não restringidos no curso do processo já teriam sido dilapidados antes da sentença condenatória.

Deste modo, entende-se que o ônus de provar a ilicitude do patrimônio que se pretende reprimir é do órgão acusador, posto que, em regra, o ônus de provar é de “quem alega”.

Todavia, a regra tem virado exceção com as recentes modificações legislativas, dentre elas a Lei nº 13.964/19 (“Pacote Anti-Crime"), que alterou diversas normas penais e processuais penais, dentre elas o Código Penal, incluindo, dentre outros, o Art. 91-A, in verbis:

Art. 91-A. Na hipótese de condenação por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão, poderá ser decretada a perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito.

§ 1º Para efeito da perda prevista no caput deste artigo, entende-se por patrimônio do condenado todos os bens:

I - de sua titularidade, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício direto ou indireto, na data da infração penal ou recebidos posteriormente; e

II - transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal.

§ 2º O condenado poderá demonstrar a inexistência da incompatibilidade ou a procedência lícita do patrimônio.

§ 3º A perda prevista neste artigo deverá ser requerida expressamente pelo Ministério Público, por ocasião do oferecimento da denúncia, com indicação da diferença apurada.

§ 4º Na sentença condenatória, o juiz deve declarar o valor da diferença apurada e especificar os bens cuja perda for decretada.

§ 5º Os instrumentos utilizados para a prática de crimes por organizações criminosas e milícias deverão ser declarados perdidos em favor da União ou do Estado, dependendo da Justiça onde tramita a ação penal, ainda que não ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, nem ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos crimes. (grifo nosso)

Ab initio, nota-se que o legislador estabeleceu uma presunção de ilicitude para todo o patrimônio que supera a compatibilidade com os rendimentos lícitos do condenado, configurando um disparate pragmático, difícil de se aplicar numa sociedade capitalista formada, em sua maior parte, por empregos informais, cuja percepção de renda da-se através de transferência de patrimônio não comprovada documentalmente e, no mais das vezes, em pecúnia.

Deste modo, apesar do §3º exteriorizar a necessidade de um forte lastro probatório obtido no curso da investigação criminal, posto que o requerimento deve ser realizado na denúncia, manifesta também a imprescindibilidade de inexorável invasão patrimonial em detrimento da privacidade do acusado, comportamento de difícil adoção na fase inquisitória, na qual é no mínimo temerária a determinação de medidas como a quebra de sigilo bancário e outras promoções invasivas da privacidade e intimidade do agente investigado.

Acrescenta-se ao contexto exposto que tais medidas são, no mais das vezes, de necessária requisição por parte do parquet, sobretudo nas hipóteses em que não há colaboração do agente delitivo (investigado) no sentido de apresentar comprovações sólidas de rendimento lícito, não restando outra alternativa ao órgão de persecução para a formação do acervo probatório para basear o pedido, que não a decretação de medidas invasivas do patrimônio.

Outrossim, a inclusão da denominada “presunção de ilicitude do patrimônio controverso” ocasiona a inversão do ônus da prova no contexto processual penal, postura de perigosa aplicação em ambiente sensível como a iminente restrição da liberdade ambulatorial, aliada ao aniquilamento do patrimônio do acusado.

A alteração legislativa em comento lembra-nos, quanto a inversão do ônus probatório da licitude patrimonial, o disposto no Art.4º da Lei 9.613/98 (lei de lavagem de dinheiro), o qual dispõe que:

Art. 4o  O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação do delegado de polícia, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas, havendo indícios suficientes de infração penal, poderá decretar medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas, que sejam instrumento, produto ou proveito dos crimes previstos nesta Lei ou das infrações penais antecedentes. 

§ 2o O juiz determinará a liberação total ou parcial dos bens, direitos e valores quando comprovada a licitude de sua origem, mantendo-se a constrição dos bens, direitos e valores necessários e suficientes à reparação dos danos e ao pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes da infração penal. (grifo nosso)

Evidencia-se que o dispositivo colacionado da lei de lavagem de capitais prevê a mesma inversão do ônus probatório, devendo o acusado provar a licitude de seus bens, fator de difícil produção e convencimento judicial em determinadas atividades de alta complexidade, como megaempresas departamentalizadas e até mesmo atividades informais, conforme anteriormente mencionado.

A respeito do assemelhado dispositivo da lei de lavagem e o juízo probatório necessário em relação ao onus probandi, Gustavo Henrique Badaró (pag.375):

“Para decretar o sequestro, basta que o Ministério Público demonstre haver indícios suficientes de proveniência ilícita (juízo de probabilidade de ilicitude). Para liberar o sequestro, cabe ao investigado ou acusado demonstrar a licitude da origem do bem (juízo de certeza da licitude). Já para se impor, na sentença condenatória, com seu efeito civil, a perda do produto ou proveito do crime, será necessária certeza da proveniência ilícita do bem (juízo de certeza da ilicitude).”

Entende-se, portanto, que é mais fácil alegar a culpa, do que provar a inocência.

Por óbvio, a providência condenatória incluída pelo dispositivo em comento deverá ser confrontada e solidificada no curso da instrução processual, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, fundamentando sua aplicação por ocasião da sentença condenatória.

Não obstante a necessidade de reapreciação no curso da instrução, preocupa-nos a aplicabilidade da presunção de ilicitude do patrimônio não comprovadamente lícito, na medida em que vislumbramos apenas duas hipóteses praticas: ou nunca será aplicado, ante a fragilidade do acervo probatório obtido no curso da investigação criminal sem a decretação da medidas invasivas, ou aplicar-se-á mediante malabarismos acusatórios desprovidos de logicidade e tecnicismo, invertendo o ônus da prova e exigindo que o acusado pratique a produção de provas verdadeiramente diabólicas.

 

Notas e Referências

BADARÓ, Gustavo Henrique, BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro – Aspectos Penais e Processuais Penais. 3ª Edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2016.

BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 9.613, de 3 de Março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9613compilado.htm. Acesso em: 1 de fev. 2020.

BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 13.964, de 24 de Dezembro de 2020. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm. Acesso em: 1 de fev. 2020.

 

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