Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
“O que vem em mente quando se fala de contratos?”, indagou o professor Marcos Catalan na primeira aula do curso de Contratos em Espécie da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, ministrado para a turma do primeiro semestre de 2020. Muitas coisas vieram em mente. Vagaram na cabeça dos alunos palavras e expressões dentre as quais podem ser listadas: cláusulas, acordos, relação entre partes e tantas outras coisas. Alguns desses pensamentos foram externados, anotados no quadro e mesmo elogiados pelo mestre. Não estavam errados, no entanto esses ainda estavam presos a uma visão estrita, doutrinada e quase que puramente conceitual sobre o tema. Faltavam-lhes algo. Faltava-me.
É claro que o instituto do contrato não é meramente constituído por um amontoado de previsões legais e princípios doutrinários. Não se pode desprendê-lo do contexto em que ele está inserido. Arrisco dizer que a conjuntura do pacto, qual seja, o tempo e o meio em que ele se dá, é o elemento cêntrico para a sua melhor compreensão, já que esses são os agentes responsáveis por impulsionar a constante reconstrução do significado de contrato[1]. Em função disso, tendo em vista que a sua análise deve perpassar obrigatoriamente pelo âmbito no qual ele está inserido, torna-se indispensável o exame do seu contexto histórico.
Nesse sentido – e respeitando os limites formais que envolvem esse texto –, para se pensar o contrato em si, um possível caminho atravessa um prisma com três faces: pré-romana, fase da conceituação romano-medieval e, por último, a sua concepção Moderna. Quanto a primeira, essa foi consubstanciada, quando da pré-civilização, em um período no qual reinava a desconfiança. O outro era sinônimo de inimigo. Com o advento necessário da coletividade, no entanto, a sociedade se viu cada vez mais forçada a formar vínculos, com sanções impostas àqueles que os descumprem. Assim, gradativamente foi sendo formada uma teia social mais complexa, que, por essa razão, demandava uma estrutura mais firme e profunda[2].
Após, no desvelar do Direito Romano, há um extremo aperfeiçoamento de conceitos, com uma concepção de obrigação bem mais madura. Isso se demonstra com o instituto do iuris vinculum, por exemplo, capaz de prender um credor a um devedor (pessoalidade do vínculo criado), sendo que do inadimplemento decorria responsabilidade física. Além disso, destaca-se também o extremo formalismo dotado nas obrigações que foi progressivamente se deslocando e dando seu espaço para a declaração de vontade[3] na medida em que o Medievo avançava.
A Revolução Francesa conduziu à consagração do Estado Liberal, com a delimitação do conceito de liberdade em sua dimensão negativa, bem como, com a sua identificação com a ideia de justiça contratual, significando dizer que o resultado obtido pelo exercício da autonomia da vontade, mesmo que totalmente ilegítimo, não poderia ser caracterizado como a injustiça das cláusulas avençadas.
Contudo, foi no Direito Moderno, com o surgimento do Código Napoleônico que houve uma melhor definição da obrigação contratual. Extremamente liberal e individualista, esse texto legal significou a força do contrato, quando o equiparou a uma lei entre as partes[4].
No entanto, por meio dessa tão nova concepção de liberdade, a Modernidade ludibriou os pactuantes ao associar a capacidade de formar leis entre as partes (pacta sunt servanda) a uma segurança extrema de cumprimento, ignorando os fatores externos a essa contratação, quais sejam: as condições da sua formação, o adimplemento das prestações dele advindas e as funções que esse pacto deveria cumprir socialmente. Disso advieram relações contratuais nas quais não havia sujeitos, mas um sujeito e um sujeitado[5].
A crise do Estado Liberal, contudo, abalou as estruturas formadas, forçando essa extrema valorização da obrigatoriedade, basilar na relação contratual, a ser repensada. Com o advento do Estado Social – que, de acordo com sua denominação, é mais intervencionista, mais social – a proteção àqueles nichos mais vulneráveis e a submissão do individual em detrimento do social foram fatores que conduziram uma série de transformações no Direito contratual. Assim, destruindo a fantasia da autonomia da vontade e da liberdade de contratar, salvaguardadas na força obrigatória, percebeu-se que essa certeza, que até então era pilar para as relações contratuais, era falsa, pois mesmo o contrato mais perfeito não é imune aos efeitos do tempo[6].
Claro que o Direito Brasileiro não fugiu dessas tendências mundiais, uma vez que possui “comportamento romano” de incorporação de diversos elementos jurídicos estrangeiros. Ao mesmo tempo, cumpre destacar que ao longo dos anos o nosso estatuto civil, no que tange à categoria dos negócios, recepcionou a doutrina de importantes autores alienígenas por meio de readaptações doutrinárias e jurisprudenciais. Isso pode ser exemplificado a partir da teoria da base do negócio jurídico, do reconhecimento da incidência imediata da boa-fé e da concepção do vínculo obrigacional como um processo dinâmico de colaboração entre as partes contratantes e a descoberta dos ‘deveres anexos’ que decorrem do princípio da boa-fé. Sendo assim, a busca pela flexibilização entre a regra jurídica e a realidade é o meio de enfrentar e de regular uma sociedade complexa como a brasileira[7].
Para lidar com essas multifaces, essencial mencionar a teoria da obrigação como processo, trazida ao Brasil na vigência do Código Civil de 1916 por Clóvis Veríssimo do Couto e Silva. Texto fundamental atualmente para a compreensão da teoria das obrigações, apresentou três princípios gerais e fundamentais – autonomia da vontade [leia-se, autonomia privada], a boa-fé e a separação de fases do processo obrigacional – responsáveis pela edificação de ideias fundamentais hoje no Direito Civil brasileiro, como a função social do contrato, a boa-fé objetiva, o caráter dinâmico do referido processo, entre outros.
Cumpre destacar aqui que tanto a autonomia privada como a boa-fé servem como respostas, a partir do necessário distanciamento das muitas concepções do positivismo jurídico, às demandas de um corpo social dinâmico, que clama por mecanismos mais elásticos e ao mesmo tempo controláveis, capazes de melhor se adaptar aos casos concretos[8]. A tese de Couto e Silva foi responsável também dar destaque à hermenêutica, uma vez que ela, junto da relação obrigacional, possibilita a sua eficácia máxima. Logo, com uma análise mais completa e mais atenta de todos os aspectos da relação contratual sob as lentes dos princípios que regem a obrigação como processo, que necessariamente perpassará pelos elementos cêntricos do contrato antes mencionados, será garantido um entendimento mais completo e eficaz do direito obrigacional, em respeito a constitucionalização do Direito privado.
O futuro dos contratos, enfim, não pode desprezar essa bagagem evolutiva. Contudo, não se pode entender que paramos por aqui, que foi achada uma fórmula perfeita para reger a matéria obrigacional e, mais especificamente, a contratual. A era digital e a globalização são alguns dos elementos responsáveis por forçar, novamente, a reinvenção do modo como se analisa os pactos. Não significa dizer que os princípios instaurados em decorrência da visão da obrigação como processo não possuem utilidade, mas que há um desvirtuamento do seu uso, quando, por exemplo, é permitido ao magistrado criar cláusulas que não foram avençadas por ambas as partes em razão da função social do contrato, esbarrando completamente nos princípios clássicos de autonomia da vontade e pacta sunt servanda. E é dentro desse cenário que se desenvolveram os “smart contracts”, os contratos inteligentes.
Esse novo conceito utiliza da tecnologia do Blockchain para compilar informações de cláusulas e códigos, garantindo a celeridade na elaboração do negócio jurídico, segurança e praticidade aos contratantes[9]. A lógica aqui utilizada é a de que, com um contrato que analisa bem mais fatores quando da sua elaboração, esse será cada vez mais perfeito e aperfeiçoado. Por outro lado, há de se ter cuidado, pois mesmo a máquina mais inteligente pode se sabotar ou sofrer com problemas de codificação provocados pelas pessoas que estão por detrás dela. Sendo assim, esse tema ainda necessitará ser objeto de extensos estudos à medida que é implementado, a fim de garantir seu bom funcionamento[10].
O que se conclui, portanto, é que os contratos acompanham a constante “metamorfose ambulante”, nas palavras de Raul Seixas, que é a sociedade. E então, o que vem em mente quando se fala de contratos? É simples ao mesmo passo que complicado. É lindo. É a interação do corpo social. É a prova e a materialização do que nos faz humanos. É uma descoberta constante de como melhor dialogar em comunidade.
Notas e Referências
[1] CATALAN, Marcos; GERCHMANN, Suzana Rahde. Duzentos anos de historicidade na ressignificação da ideia de contrato. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, nº 90, 2013. p. 192.
[2] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 31ª ed. Rio de Janeiro: Forense; 2019, v. 2.
[3] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 31ª ed. Rio de Janeiro: Forense; 2019, v. 2.
[4] GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
[5] CATALAN, Marcos; GERCHMANN, Suzana Rahde. Duzentos anos de historicidade na ressignificação da ideia de contrato. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, nº 90, 2013. p.195.
[6] CATALAN, Marcos; GERCHMANN, Suzana Rahde. Duzentos anos de historicidade na ressignificação da ideia de contrato. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, nº 90, 2013. p. 199-200.
[7] MARTINS-COSTA, Judith. Crise e modificação da ideia de contrato no direito brasileiro. Ajuris, Porto Alegre, v. 19, n. 56, nov. 1992.
[8] COUTO E SILVA, Clovis Verissimo do. A obrigação como processo. Rio de Janeiro. FGV, 2006. p. 23.
[9] CARVALHO, Carla Arigony de; ÁVILA, Lucas Veiga. A tecnologia Blockchain aplicada aos Contratos Inteligentes. Revista Em Tempo, [S. l.], v. 18, n. 1, nov. 2019.
[10] CODING. (Temporada 2, Episódio 5). EXPLAINED (seriado documental). Direção: Ezra Klein e Joe Posner. Produção: Ezra Klein Kara Rozansky, Claire Gordon, Chad Mumm, Lisa Nishimura, Joe Posner, Jason Spingarn-Koff, Kate Townsend. Estados Unidos. Vox e Netflix, 2019.
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