Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta
Recentemente fui provocado a repensar a tutela coletiva e, em especial, a refletir com maior cuidado a respeito dos Projetos de Lei n. 4441/2020 e 4778/2020, em tramitação junto ao Congresso Nacional, os quais propõem, cada qual independentemente, um novo marco regulatório para a Ação Civil Pública.
Os Novos Projetos retomam discussão em torno da necessidade de reforma do quadro legal aplicável às demandas coletiva, uma vez que, aparentemente, tanto Academia, quanto os profissionais do Direito, tomam consciência da insuficiência do regime de tutelas repetitivas, instituído pelo atual Código de Processo Civil (Lei Ordinária Federal n. 13.105, de 16 de março de 2015), para a proteção daquelas situações jurídicas e bens considerados “propriamente coletivos”.
A provocação fez com que retornasse ao tema de minha dissertação de mestrado, realizada junto à UERJ, em Direito Processual. Na ocasião, tratei da crítica da representação política (e repito, para não deixar dúvidas, que trato do fenômeno desde a perspectiva de uma avaliação precipuamente política) da coletividade ausente por um ente considerado habilitado pelo ordenamento à defesa de seus interesses.
Naquela oportunidade, destaquei que essa representação política é o cerne da tutela coletiva, na medida em que tanto ela (a) se propõe a remediar uma impossibilidade fática de participação da coletividade, por si e em si, em Juízo, como (b) funciona como suporte de toda uma estrutura pública destinada à defesa desses mesmos interesses. O fenômeno é típico da análise sociológica, constante em Weber e Bourdieu, por exemplo, pelo qual a burocracia se constitui e fundamenta a si própria (perceba-se que a análise que faço não é ingênua a ponto de sugerir que o Estado deveria deixar a solução de litígios à uma noção qualquer de “Sociedade Civil”, ou melhor, o meu argumento, como não foram os de Weber ou Bourdieu, não é neoliberal). A intenção, à época, era a de pensar as peculiaridades daquilo que denominei de o “paradoxo da representação” – a representação que se propõe a servir como mecanismo de participação e, ao mesmo tempo, impede a participação imediata dessa coletividade ausente.
Pois bem, a minha intenção seria a de propor algumas considerações, ainda que mínimas e tateantes, a respeito do modo como o tema político foi tratado pelos recentes Projetos que se propõe a disciplinar a Nova Lei da Ação Civil Pública. O foco da análise que segue, aliás, será centrado sobre o PL n. 4441/2020, o denominado Projeto “Paulo Teixeira”, por ser o mais interessante e tecnicamente consequente dos dois. Este breve texto é um singelo desenvolvimento de alguns dos tópicos que me tocam mais diretamente.
A lógica da representação (e, quando falo de representação, não faço qualquer referência à diferença técnica entre legitimação “extraordinária” e “ordinária”) que rege a tutela coletiva é peculiar. Fala-se em representação “adequada” (o PL 4441/2020, inclusive, tenta contornar o desconforto com o uso do termo “representação” pelo uso do termo supostamente mais técnico de “legitimação”). Inobstante, é necessário questionar: O que é “representação”?
Para responder a essa questão, gostaria de fazer uso de um sentido bastante especial de “representação”. Gostaria de tratar da representação num sentido pertinente tanto à semiologia, como à filosofia-política.
Primeiramente, um pouco de semiologia.
A representação, num sentido semiológico, implica considerar uma relação entre significante/significado ou entre expressão/conteúdo (muito mais do que uma dualidade entre “forma” e “substância”, diga-se de passagem). De acordo com esse sentido, a relação semiológica, a relação de significação, é mediada pela representação. A condição dessa representação (como a de toda representação, por assim dizer) é a de perpetuar uma diferença (Derrida diria, perpetuar uma différance, com “a” mesmo, no tempo e no espaço) entre dois “significantes”, sendo um o “significante” propriamente dito e o outro, um “significante-significado”.
Por exemplo, quando escrevo “árvore” (esse significante), penso na imagem mental de uma estrutura muito específica, consigo apontá-la com meus dedos e inclusive desenhar uma, se preciso (o significante-significado). Não que haja de fato uma árvore, sobre terra, com seus troncos, folhas e frutas sobre o papel ou entre nós no momento em que pensamos, mas pode-se dizer que uma árvore é representada. Nós pensamos, mentalizamos, imaginamos uma árvore, mas essa árvore imaginada, tal qual o cachimbo de Magritte, não é uma árvore de fato... é só uma árvore imaginada... um significante-significado, responsável por replicar a aporia da representação, tornando-a significativa.
Perceba-se, embora o ponto não possa ficar mais claro neste momento, que não estou limitando os usos da linguagem a uma mera função designativa. A representação de que trato (a que trata Derrida também) é criadora e produtiva. Essa representação, em Derrida, por exemplo, especializa e temporaliza o mundo. Contudo, isso não pode ser desenvolvido com mais detalhes neste espaço, pelo que peço simplesmente pela paciência do leitor para seguir o fio do raciocínio.
Pois bem, toda representação, nesse sentido, é tanto remédio como veneno. É uma espécie de pharmakon (Derrida, por sinal, possui páginas belíssimas em torno do problema, em comentário célebre a respeito do Fedro de Platão). A representação semiológica, para ser significativa, pressupõe ela própria a manutenção e a perpetuação desse afastamento, dessa diferença e dessa ausência. É necessário que o ausente continue sendo ausente, para que se perpetue a representação do sentido.
Diz-se que termos tais como “A = A” são tautológicos, i.e. “a-significantes”. Pois, para ser significativo, é necessário que a diferença seja mantida, organizada, devidamente “domada”, de modo que “A = B”, possa ser uma inferência segura, com a exclusão de “C”, “D”, “E”, enfim. Se qualquer coisa pudesse ser dita sobre qualquer coisa, estaríamos em uma situação de caos absoluto e, portanto, também haveria pura “a-significância”. O grande problema está em qual o limite da organização? Até onde se deixar domar? O que dizer dos caminhos selvagens que a linguagem tanto permite, como pressupõe? Enfim, essas questões também precisam ser protraídas para outro momento.
Esse sentido semiológico de representação assume contornos políticos nesses mesmos termos, como se poderia imaginar, e aqui aponto para o núcleo das minhas preocupações.
Gostaria de destacar dois sentidos dessa representação política, portanto. Primeiramente, penso a representação, em primeira instância, num sentido “medieval”, como a representação da instituição, da posição, da hierarquia. O rei absoluto não representa o povo, a noção de representação popular é ausente. O rei absoluto representa a própria Monarquia, a instituição monárquica. Os “dois corpos do rei”, para dizer com Ernst Kantorowicz. Essa representação não dá conta dos interesses de grupos de pressão, mas corresponderia a um pressuposto do próprio exercício do poder, seria um apontamento para o fundamento desse poder. Esse seria um primeiro sentido.
O segundo sentido é o de representação do “corpo político” e, em instância mais específica, pode-se desdobrar em representações de espectros mais ou menos amplos desse corpo político, até se chegar a uma noção (tanto mais difusa, quanto equívoca) de representação “popular”. Essa dimensão, ao menos em termos de Estado moderno, surge ainda no século XVIII e toma força a partir de então. Nesse sentido, busca-se constante legitimação do exercício do poder por meio do recurso a uma certa fluidez do conceito de “povo”. Quem é “povo”? Quem está nele incluído? Ou ainda, de forma mais dramática, quem está dele excluído? Esse seria o segundo sentido.
Pois bem, tudo isso possui implicações para o que se quer tratar neste momento a respeito do processo coletivo e, em especial, acerca dos Projetos de Lei mencionados acima.
Afinal, toda forma de processo judicial (não só o “coletivo”) é mediada por uma lógica da representação nesses dois sentidos lançados acima. Basicamente, pela ação de um corpo técnico, especialmente instruído (e construído) a exercer os privilégios da ação e da fala (i.e., do logos) no e em prol do “palco” judicial, os reais interessados nos litígios são proscritos a funções marginais (são “obscenos”, por assim dizer). No processo tradicional, o leigo se faz representar pelo técnico (salvo raras exceções quando então se entende que o caso é simples ou pode ser mais facilmente traduzido entre sistema “leigo” e sistema “oficial”).
Os envolvidos no “litígio” precisam fazer com que suas vozes sejam filtradas pelas palavras de advogados, peritos, magistrados, enfim. O “litígio” (essa categoria curiosa de uma certa sociologia jurídica, que todavia vem mascarar as diferentes formas de expressão das lutas de classes de que trata uma análise crítica mais consequente) só existe filtrado pelo logos dos técnicos (por aqueles que constroem o “oficial” e compõem o “público”, diria Bourdieu).
A representação (política) na ação coletiva, todavia, acrescenta uma camada importante ao problema, como se imagina. Numa ação coletiva, está implicada uma questão litigiosa comum que envolve uma quantidade ponderável de titulares diferentes (são os critérios da “numerosidade” e da “questão comum”, para falar termos típico aos “processualistas”). Independentemente da suposta natureza do direito em questão, a tutela coletiva, em seu núcleo essencial, pressupõe um universo de envolvidos que, por razões muito pragmáticas inclusive, não poderiam, com igual eficácia e/ou proveito, se apresentar em juízo individualmente.
Para tanto, fala-se em uma representação (ainda em termos políticos, lembro) dos direitos e interesses titularizados (ou cuja titularidade é imputada) a participantes de uma dada coletividade, por interlocutores especialmente selecionados pelo ordenamento (e aqui não discuto legitimação “ope legis” ou “ope judicis”, cada sistema possui sua forma de seleção do interlocutor qualificado).
O que caracteriza, em primeira ordem, o problema da ação coletiva é a sua condição mais dramática no tangente ao tema da representação, portanto. Numa ação coletiva, ainda que a relação jurídica processual possa ser “domesticada” pelos caminhos já conhecidos de uma legitimação extraordinária, há de se imaginar uma espécie de “lado escuro da lua”, de um aspecto “inconsciente” que, todavia, não é menos capaz de efetuação. Trata-se da “coletividade ausente”.
Há todo um processo de negação (e, aqui, suponho uma Verneinung propriamente freudiana) dessa estrutura que se revela “monstruosa” sob a perspectiva do Processo Coletivo (i.e., “monstruosa”, pois inassimilável “tal qual” pelo processo judicial). É necessário confiar numa manifestação sublimada de sua potência e, nesse sentido, a figura do representante (ou do legitimado coletivo) exerce essa função precisamente (é um representante substitutivo – um “Ersatzvertreter”).
Basta dizer o seguinte: para que se justifique a atuação dos “legitimados coletivos” (e de modo que possam se perpetuar nessa mesma atuação) é necessário que a representação se sustente, é necessário que a coletividade permaneça “ausente” e só no contexto dessa “ausência” possa ser entendida a existência de uma “comunidade” sujeita à tutela coletiva, por assim dizer. Todo o problema político implicado pela tutela coletiva brasileira pode ser inserido justamente no estatuto dessa ausência e nas formas pelas quais ela é preservada, por meio da representação política do legitimado coletivo.
Para trocar em “miúdos”: não existe coletividade, para os fins da tutela coletiva, fora da lógica da representação. A coletividade, empregando uma categoria deleuzo-guattariana o suficiente, é aquilo que o aparelho de captura, primeiro, cria para capturar logo em seguida.
Mas já foi bastante dito sobre filosofia-política... O que essas considerações podem contribuir para a crítica das propostas de legislação em trâmite no Congresso e do PL n. 4441/2020, em especial?
Assim, dentro deste breve espaço final, destaco três pontos do PL n. 4441/2020 que me trazem alguma inquietação.
Em primeiro lugar, as definições invocadas no art. 2º, §1º, do PL n. 4441/2020 ainda são aquelas de mais de trinta anos atrás. E aqui a crítica merece ser contundente. Muito já foi escrito a respeito, mas reputo importante destacar que a classificação em comento não distingue (nem poderia) entre “naturezas” de “direitos materiais”, mas simplesmente desenvolve categorias processuais relevantes, para fins de tutela. São mecanismos de filtragem dos fatos sociais em “litígio”, somente.
Assim, todo direito coletivo é coletivo “para fins de tutela”, sem distinção. Todo direito “propriamente” coletivo, não importa se difuso ou coletivo “stricto sensu”, implica a existência de uma origem comum (seja ela uma relação jurídica de base ou uma circunstância de fato), bem como envolve direitos e interesses de uma coletividade mais ou menos definida, no tempo e no espaço (mas em medida alguma “indefinível”). Não existe “direito transindividual”. A metafísica do “transindividual” merece ser superada em algum momento, pois corresponde a mero sintoma daquela negação que se mencionou acima.
Inexiste “litígio transindividual” senão como categoria de uma ficção jurídica de gosto duvidoso e que não deixa de adotar uma visão organicista do corpo social, cuja função precípua seria a de perpetuar uma peculiar forma de exclusão da coletividade... Ora, face à dificuldade de se imputar direitos “individuais”, atribui-se a uma estrutura etérea a titularidade, como se daí a solução viesse sem problemas... isso não é nada evidente, como se imagina.
A tutela coletiva possui carne e osso, ainda que se trate de gerações futuras. Fugir para o transcendente corresponde a simplesmente abstrair o conflito social. Essa abstração pode ser associada ao fenômeno da sublimação, do recalque, da repressão psíquica. O problema é quando o recalcado, tanto na psicanálise como na filosofia política, retorna para pedir a prestação de contas. Os processualistas podem assimilar esse fenômeno como “crise dos números”, como “crise da tutela efetiva”, ou mesmo a partir da “vedação ao non factibile”, como desenvolvido por Minami. Aquilo que o processualista experimenta como “crise”, a coletividade envolvida experimenta de formas bem mais violentas e viscerais, não vindo ao caso, neste momento, desenvolver com mais detalhes esse ponto específico, considerando as limitações de escopo e de espaço. Inobstante, importa dizer que aquilo que subjaz a todos esses fenômenos é, supõe-se, uma situação profunda e inexorável de conflito social e de classes (algo diferente da categoria asséptica do “litígio”, lembro).
Em segundo plano, destaco que os arts. 11, I; 19, I e II; e 22, II, do PL n. 4441/2020 tratam em alguma medida de um procedimento inspirado na fase de “certificação”, tal qual estatuído pela Rule 23/FRCP norte-americanas, mas é preciso considerar as diferenças (e elas são importantes!). Uma análise pormenorizada não é possível neste espaço, no entanto, proponho-me a destacar o seguinte:
A certificação da Rule 23/FRCP corresponde ao processo de reconhecimento oficial da existência de uma questão coletiva a ser resolvida pelo procedimento da Rule 23, ao passo que o procedimento previsto pelo PL n. 4441/2020 parece ter uma função de mera organização do litígio. Considerando todo o custo financeiro, político, comercial de se conduzir um litígio pela Rule23/FRCP, as grandes batalhas judiciais são firmadas na fase de Certificação. Uma vez certificadas, dificilmente o caso deixa de ser resolvido em uma transação.
Essa, supõe-se, não é a intenção do PL n. 4441/2020. A função dessa “certificação à la brasileira” é, como disse acima, de mera organização do procedimento. Controle dos efeitos da coisa julgada, em última instância. Não há previsão de um chamamento à participação tão rígido como no modelo americano da Notice. Afinal, os próprios membros do grupo não podem participar do litígio, sequer como assistentes simples. São alijados, propriamente do palco judicial (são “obscenos”, como se disse). A partir da própria legislação, não há qualquer mecanismo de controle da “adequada legitimação” que implique e leve em consideração a manifestação daqueles sujeitos diretamente envolvidos no litígio. Todo controle da legitimação é desenvolvido para ocorrer à revelia da “coletividade ausente”.
Por fim, o art. 25, caput e §3º, do PL n. 4441/2020 indica que não é proposta uma alteração substancial do marco legal já existente no tocante à coisa julgada secundum eventum litis. Essa função meramente organizativa da fase de certificação brasileira, tal como mencionada acima, é notável quando se percebe que o PL n. 4441/2020 mantém a lógica da coisa julgada secundum eventum litis com relação aos direitos individuais (art. 25, §3º, do PL n. 4441/2020). A coisa julgada pro et contra só afeta aquela questão supostamente considerada como “transindividual” (categoria de duvidosa cientificidade, repita-se). Esse já é o regime aplicado atualmente (essa é a opinião do Prof. Dr. Aluísio Mendes, por exemplo). A alteração sobre a coisa julgada secundum eventum probationis, trazida pelo §§1º e 2º, do art. 25, do PL n. 4441/2020 é bastante tímida – assim, pode-se dizer que esse já é o entendimento predominante hoje mesmo.
Tivesse a fase de “certificação” uma função mais proeminente de garantir o chamamento dos membros ausentes, por meio de uma regulamentação adequada da Notice dirigida aos membros individuais, de modo a possibilitar, em última instância, inclusive o controle das ações do legitimado em juízo pelos membros da coletividade representada, não haveria motivos para a manutenção da coisa julgada secundum eventum litis de que fala o §3º, do art. 25. Como esse não é o caso, ao que se dessume do todo, considero a priori melhor que se mantenha prática atual, realmente. Nesse sentido, inclusive, é preciso reconhecer que o PL n. 4441/2020 é muito mais consequente que o PL n. 4778/2020.
Notas e Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 13.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Milles plateaux: Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Minuit, 1980.
DERRIDA, Jacques. La dissémination. Paris: Ed. Seuil, 1972.
FREUD, Sigmund. A negação. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito comparado e nacional. 4.ed. São Paulo: RT, 2014.
MINAMI, Marcos Youji. Da vedação ao non factibile: uma introdução às medidas executivas atípicas. Salvador: JusPodivm, 2018.
[1] O texto ora apresentado é uma versão revisada e atualizada da fala realizada durante o evento “Desafios e Perspectivas: 5 anos de vigência do CPC”, organizado pelo Núcleo de Professores de Processo Civil do CESUPA.
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