Prescrição do crédito tributário e [não] procedibilidade da persecução criminal

27/03/2020

Coluna Espaço do Estudante

Em tempos de insurgência dos segmentos penais conclamados pelo “direito penal econômico” os temas de prolongada controvérsia entram em pauta com maior afinco acadêmico, visando o esclarecimento de divergências doutrinárias e normativas que a muito se alongavam, como se Dédalo não tivesse se aproximado demasiadamente do sol.

 Deste modo, temas como a dependência ou, no tema que se pretende desenvolver, independência, da esfera administrativa e penal no tocante a persecução penal dos crimes tributários nos chamam a atenção.

Em oportunidades pretéritas logramos refletir determinados preceitos normativos acerca da punibilidade dos crimes tributários em relação ao crime de lavagem de dinheiro e à responsabilização do sócio de sociedade empresária que pratique as condutas que afrontam a ordem tributária, analisando de que forma poderia se proceder a aferição de culpabilidade de dirigente de pessoa jurídica cujas decisões são tomadas em caráter colegiado.

Desta forma, concluímos que a dificuldade da responsabilização é tema de insurgente debate acadêmico. Contudo, antes de passar-se à análise do terceiro elemento do conceito tripartite de “crime”, faz-se necessário, sem escusas do óbvio, que se coteje o elemento fundamental do caráter delitivo da conduta apontada: a conformação normativa do comportamento omissivo ou comissivo do agente. Isto é, a própria tipicidade.

No tocante aos crimes tributários, fator ainda divergente na doutrina é a necessidade do processo administrativo fiscal concluído com o lançamento definitivo do tributo que seja objeto do crime tributário, para que se conclua pela segura procedibilidade da persecução criminal do ilícito fiscal.

Assim, a tipicidade do crime tributário de sonegação fiscal, por exemplo, só se aperfeiçoaria com o efetivo lançamento do crédito reduzido ou suprimido, caso em que, ausente a conclusão do procedimento administrativo fiscal, não haveria a consumação do delito e, portanto, tipicidade do crime.

Superando os apontamentos iniciais acerca dos requisitos de procedibilidade para a persecução punitiva dos crimes tributários, faz-se necessária uma breve introdução concernente ao bem jurídico tutelado pelos delitos em comento, para o que nos socorremos da cátedra de Luiz Régis Prado (2014, pag. 267), in verbis:

O legislador, na cunhagem dos tipos contidos na Lei 8.137/90, tutela o Erário (patrimônio da Fazenda Pública) não no sentido simplesmente patrimonialista (ou individualista), mas sim como bem jurídico supraindividual, de cunho institucional. Tem por escopo proteger a política socioeconômico do Estado, como receita estatal, para obtenção dos recursos necessários à realização de suas atividades. Assim, essa concepção de Fazenda Pública como bem jurídico protegido implica também a “diminuição das possibilidades de o Estado levar a cabo uma política financeira e fiscal justa”. A ideia de bem jurídico mencionada não se vincula de per si à função cumprida pelo tributo.

Neste contexto, implica-nos questionar acerca da extinção do crédito tributário pelo reconhecimento da prescrição e sua afetação na procedibilidade da ação penal – e até na investigação criminal – por crimes tributários.

O enunciado do verbete sumular vinculante nº 24 impera o rito procedimental da dependência relativa entre as esferas administrativa e penal, submetendo a persecução penal fiscal à conclusão do trâmite administrativo-fiscal, conforme já mencionado preteritamente.

Á vista disto, pode-se extrair o entendimento de que a atividade interpretativa do judiciário julgou mais razoável a determinação de aguardar o trâmite de procedimento administrativo específico, o qual visa apurar a real existência de débitos fiscais, assegurando ao devedor a ampla defesa e contraditório, antes de permitir a persecução criminal materializada pelo débito lançado, o que se deve – assim se supõe – ao caráter de ultima racio atribuído ao ius persecutionis estatal.

Contudo, lançado o crédito tributário, sublimando o caminho para a persecução acusatória, inicia a contagem do prazo prescricional, elemento temporal imprescindível para a adequada detenção da morosidade do aparato estatal.

Por consequência, superado o prazo prescricional de 5 anos do crédito tributário insculpido no Art.174 do Código Tributário Nacional, não atuando sobre si nenhuma causa interruptiva, cessado está o direito da autoridade fiscal (Estado) de cobrar o aludido tributo.

Destarte, o Superior Tribunal de Justiça fixou tese no sentido de que a extinção do crédito tributário pela prescrição não afeta o trâmite persecutório criminal do delito fiscal, conforme segue:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. ART. 1º, II E IV, DA LEI Nº 8.137/90 C/C ART. 71 DO CÓDIGO PENAL. CRÉDITO TRIBUTÁRIO REGULAR E DEFINITIVAMENTE CONSTITUÍDO. EXECUÇÃO FISCAL. RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO. REFLEXO NO ÂMBITO PENAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DOS AGENTES. INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS TRIBUTÁRIA E PENAL. RECURSO IMPROVIDO.

  1. A constituição regular e definitiva do crédito tributário é suficiente à tipificação das condutas previstas no art. 1º, I a IV, da Lei nº 8.137/90, desinfluindo o eventual reconhecimento da prescrição tributária, diante da independência entre as esferas tributária e penal.
  2. Recurso em habeas corpus improvido.
    (RHC 67.771/MG, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 10/03/2016, DJe 17/03/2016) (grifo nosso)

Portanto, nota-se que os tribunais superiores adotam uma espécie de “dependência relativa mitigada” – com toda a ironia do termo empregado – ao passo que aderem a satisfação do trâmite administrativo-fiscal à procedibilidade da ação penal por crimes tributários, mas dispensam a frustração da persecução administrativa como fato influenciador do expediente criminal.

Neste contexto, o bem jurídico tutelado pelos delitos tributários é fator que se relaciona intimamente com o tema refletido, visto que, com a frustração do direito estatal de ter o crédito tributário adimplido após o lançamento em decorrência da prescrição e, portanto, no mais das vezes, pela ineficácia do aparato administrativo, resta ainda ao Estado-Leviatã a busca da punibilidade do agente inadimplente pelas vias penais, com a aplicação de multas e penas restritivas de liberdades o que, ao menos em tese, oportuniza a disposição de diversos braços persecutórios ao Estado.

De acordo com a cátedra de Luiz Régis Prado, considerando que o objetivo da tutela estatal advinda dos crimes tributários é a proteção da “política socioeconômica do Estado, como receita estatal, para obtenção dos recursos necessários à realização de suas atividades”, poder-se-ia entender que a receita estatal só poderia ser satisfatoriamente resguardada pela tutela administrativa, agindo o braço punitivo penal tão somente como elemento de coação, lógica esta que é corroborada pela possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento do crédito tributário antes do recebimento da denúncia, conforme inteligência do Art.14 da Lei nº 8.137/90.

Diante do exposto, apesar do entendimento jurisprudencial pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça, nota-se que o tema da prescrição como influente na persecução criminal ainda é de inexorável controvérsia doutrinária, merecendo maior atenção no trato procedimental, sobretudo considerando que, no mais das vezes, a submissão da esfera penal à esfera administrativa – ainda que de forma mitigada – poderá ocasionar a extensão ad absurdum do lapso prescricional do próprio crime tributário, anotando-se que, impropriamente, a recíproca não é verdadeira.

 

Notas e Referências

BRASIL. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências, Brasília, DF, dez de 1990. Disponivel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8137.htm>. Acesso em: 18 mar. 2020.

CONJUR. Problemática da prescrição e do momento da consumação do crime tributário. Conjur. 17 de fevereiro de 2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-fev-17/henrique-saibro-prescricao-consumacao-crime-tributario. Acesso em: 18 mar. 2020.

PRADO, Luiz Régis. Direito Penal Econômico. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. 

STJ. RHC 67.771/MG, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 10/03/2016, DJe 17/03/2016.

 

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