Preparo recursal e a instrumentalidade do processo no CPC/2015 – Abrandando o rigor da lei em prol do julgamento de mérito dos recursos – Por Denis Donoso

03/03/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

O exercício do direito de recorrer depende da reunião de determinadas condições, sem as quais o órgão competente não poderá verificar se assiste ou não razão ao recorrente (ou, em outros termos, não poderá julgar o mérito do recurso). Fala-se, assim, dos requisitos de admissibilidade dos recursos.

Entre os tais requisitos[1], destacar-se-á neste despretensioso artigo o chamado preparo recursal, regulado amplamente no art. 1.007 do CPC, onde se lê:

 “No ato de interposição do recurso, o recorrente comprovará, quando exigido pela legislação pertinente, o respectivo preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, sob pena de deserção.”

O preparo recursal é, assim, o pagamento prévio, feito pelo recorrente, de determinadas custas incidentes por ocasião da interposição do recurso, especialmente as custas processuais e os portes (de remessa e/ou retorno).

Perceba que a lei é clara quanto ao momento em que o preparo deve ser comprovado: no ato de interposição do recurso. Infere-se que o recorrente providenciará, antes de interpor o recurso, o recolhimento do preparo, devendo, então, demonstrar que o fez no ato da interposição.

E se o recorrente deixa de comprovar que realizou o preparo? Neste caso, aplica-se a pena de deserção, ou seja, à falta de um requisito de admissibilidade recursal, o recurso não será admitido (seu mérito não será analisado).

Pois bem. O que pretendo nas linhas que vêm adiante é demonstrar singelamente que o legislador do CPC/2015 mitigou alguns rigores relacionados ao preparo recursal (especialmente na comparação com seu antecessor, o CPC/1973), proporcionando aos recorrentes a possibilidade de superar eventuais (e até inevitáveis) erros ligados ao preparo. Não tenho dúvidas, aliás, de que tais hipóteses estão ancoradas em relevantes valores processuais, tais como a instrumentalidade do processo e a primazia do julgamento de mérito.

Passo, então, ao apontamento de algumas hipóteses de abrandamento da lei quanto ao preparo recursal.

1. Dispensa de recolhimento de portes em autos eletrônicos (art. 1.007, § 3º, do CPC). Os chamados portes são devidos por conta do trânsito dos autos (entre órgãos jurisdicionais de instância inferior e superior). Ora, não há a menor lógica na sua exigência quando os autos sejam eletrônicos, uma vez que que neste caso o próprio trânsito será eletrônico. Nada obstante, alguns julgados isolados, decidindo sob a égide do CPC/1973, insistiam na exigência do seu recolhimento em autos eletrônicos, não raramente declarando a deserção de quem não o providenciasse. Deste modo, andou bem o legislador em excluir expressamente tal exigência nesta hipótese.

2. Ausência de comprovação de preparo no ato de interposição do recurso (art. 1.007, §§ 4º e 5º, do CPC/2015). Aqui se tem, na minha visão, uma das mais generosas novidades do CPC/2015. Quando ainda era vigente o CPC/1973, se a parte não comprovasse que havia recolhido o preparo, seu recurso teria um destino invariável: a não admissão.

Agora, porém, como aduz o § 4º do art. 1.007 do CPC/2015, “O recorrente que não comprovar, no ato de interposição do recurso, o recolhimento do preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, será intimado, na pessoa de seu advogado, para realizar o recolhimento em dobro, sob pena de deserção.” (sem grifos no original)

Atente-se, prezado leitor, que a situação descrita na norma não se confunde com o chamado “preparo insuficiente” (aquele em que alguma quantia, menor do que a devida, é recolhida a título de preparo), que está prevista no § 2º do art. 1.007 do CPC/2015 e segue os mesmos padrões do antigo Código.

O que o § 4º do art. 1.007 do CPC/2015 regula é situação diversa, em que nada – absolutamente nada – é recolhido pelo recorrente. Ele simplesmente deixa de pagar o preparo. E, como já pude anotar anteriormente, Na lei anterior (CPC/73), o esquecimento do recorrente implicava quase que invariavelmente na deserção do recurso, penalizando-o de forma até excessivamente cruel por uma falha absolutamente justificável. Por outro lado, o simples perdão da falta do recorrente poderia tornar o requisito recursal letra morta. Assim, a solução proposta pelo atual CPC/2015 parece razoável, pois não sanciona de forma tão rigorosa (ao dar uma “segunda chance” ao recorrente omisso), mas ao mesmo tempo não deixa impune o faltante (porque a admissão do recurso dependerá, neste caso, do recolhimento em dobro dos valores de preparo).[2]

É óbvio, entretanto, que o recorrente que se valeu do “perdão” do § 4º não poderá, ao efetuar o recolhimento em dobro, pretender valer-se da “ajuda” do § 2º (preparo insuficiente). Assim, não tendo recolhido o preparo, valer-se-á da faculdade do recolhimento posterior em dobro. Mas, ao fazê-lo, deve recolher exatamente a quantia devida, sob pena de deserção (ainda que tenha feito recolhimento a menor).

3. Preenchimento equivocado da guia de recolhimento (art. 1.007, § 7º, do CPC/2015). Finalmente, alinhado ao princípio da instrumentalidade das formas, o art. 1.007, § 7º, do CPC, prevê a regra segundo a qual “O equívoco no preenchimento da guia de custas não implicará a aplicação da pena de deserção, cabendo ao relator, na hipótese de dúvida quanto ao recolhimento, intimar o recorrente para sanar o vício no prazo de 5 (cinco) dias.”

Deixar de admitir um recurso apenas porque o recorrente cometeu um erro material ao preencher as guias de recolhimento sempre me pareceu uma verdadeira crueldade, um assassinato frio e calculista da instrumentalidade do processo. Aliás, convém lembrar aos desavisados, nem sempre (ou quase nunca) a tarefa de preencher uma guia de custas é simples. Há diversos campos e códigos que devem ser observados e não raramente algum equívoco acontece. Nada obstante, diante de algum equívoco no preenchimento de guia, era comum a não admissão do recurso por deserção quando vigente o anterior CPC (de 1973).

Aliás, o recado do § 7º do art. 1.007 é claro: se houver mero erro no preenchimento de guia, o recurso será automaticamente admitido; apenas quando existir dúvida quanto ao recolhimento é que será intimado o recorrente para sanar o vício no prazo legal.

Uma vez mais, então, merece aplausos o legislador do CPC/2015, porque colocou o processo no seu devido lugar: um instrumento do direito material. Deixar de apreciar a pretensão recursal pela razão deste miserável erro material equivale a recusar a vocação do processo.

Em resumo, a título de conclusão, parece-me absolutamente correto afirmar que o CPC/2015 buscou aproximar-se da instrumentalidade do processo no que se refere ao preparo recursal (como requisito de admissibilidade dos recursos), prestigiando a primazia do julgamento de mérito ao recusar a possibilidade de não se admitir um recurso por vícios sanáveis. É um recado inequívoco aos tribunais, dos quais se espera, com toda honestidade, a aplicação literal das mencionadas normas.


Notas e Referências:

[1] Usualmente rotulados de intrínsecos e extrínsecos.

[2] Consultar: DONOSO, Denis; SERAU JR., Marco Aurélio. Manual dos recursos cíveis: teoria e prática. 2ª ed., Salvador: Juspodium, 2017, p. 103.


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