Premissas para a construção de um procedimento adequado – Vol I – Por Marcelo Ribeiro

01/09/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

Desde a concepção do Estado é possível identificar claras interlocuções entre a matriz filosófica e a concepção do ordenamento jurídico. Partindo-se da modernidade, podemos constatar ao menos dois reflexos disto na legislação.

O primeiro, denota um saber jurídico estruturado pelo método cartesiano. Em decorrência disso, o procedimento para produção da prova, por exemplo, é organizado logicamente pelas fases de requerimento, admissão, produção e valoração, como se o conhecimento sobre os fatos pudesse ser alcançado livremente, no último ato da instrução.

Do mesmo modo e pela mesma razão, ritos uniformes afastam as possibilidades de medidas atípicas para a efetivação do direito material. É dizer: a resposta judicial, entregue ao final do processo, se afirma pela disposição técnica dos atos processuais, predeterminados em função da segurança jurídica e da isonomia formal[1].

O segundo, decorrente da revolução burguesa e da critica feita às teses jusnaturalistas antropológicas, pela ausência de certezas herméticas; respalda o surgimento do positivismo jurídico. O Direito, nesse momento, deixa de ser pensado a partir do homem e passa a ser pensado a partir do texto, com a finalidade de garantir, por bases racionais, o desenvolvimento de um modelo de produção capitalista[2].

Sobre o tema, Alysson Mascaro vai dizer que:

Já no capitalismo, as estruturas sociais se arranjam de modo muito particular. Suas técnicas jurídicas são essencialmente repetíveis. Uma determinada forma, estatal e normativa, constituindo e subordinando sujeitos de direito, garante tal repetição. A possibilidade de reprodução é sua característica maior. Mais importante que o bom legislador ou o bom juiz ou o bom aplicador do direito ou as circunstâncias é a estrutura formal que os controla.[3]

Nessa quadra da história, portanto, pôde-se evidenciar a forte relação entre a proposta do Estado de Direito e um ordenamento processual hermético, técnico e adequado aos ideais burgueses.

No Brasil, essa influência liberal-individualista é constatada na exposição de motivos do código revogado, pelo mito da uniformidade procedimental e pelas desconexões evidentes entre a identidade da demanda e as espécies de tutelas processuais, quase todas disponibilizadas, à época, para viabilizar a compensação por perdas e danos, que por muitos anos, permaneceu como pedido implícito no Processo Civil.

Na prática, isso também implica dizer que a percepção dos conceitos de: jurisdição, processo e procedimento, podem ser alcançados diretamente pela racionalidade, sem a ingerência da faticidade[4]. O texto passa a ser apenas uma terceira coisa entre o sujeito intérprete e o sentido; esse, já predeterminado e de livre acesso ao indivíduo que previamente, pela razão, identifica por meios formais, as respostas jurídicas.

Todavia, se, no plano jurídico, investimos em padrões processuais predeterminados para viabilizar o exercício da jurisdição, no plano filosófico, a matriz positivista aposta na discricionariedade[5], ainda hoje evocada para resolver os assim chamados hard cases.

Com isso, delega-se ao indivíduo, o exercício de uma subjetividade assujeitadora que muitas vezes confronta o próprio texto constitucional. Atente-se, por exemplo, para o princípio da presunção de inocência, que de trânsito em julgado, passou, por interpretação(?), para condenação em segunda instância, com claros argumentos finalistas; e para as constantes violações das garantias processuais no âmbito penal, quase sempre ratificadas pelo Poder Judiciário.

É dizer: a matriz positivista a partir do qual compreendemos os institutos processuais no século passado não dialoga com a faticidade nem considera os princípios como instrumentos necessários para o resgate da identidade da causa. Ao revés, são utilizados como álibis teóricos para justificar conclusões pessoais, para embasar perigosas conclusões finalísticas ou para fechar o sistema processual, evitando com isso o non liquet[6].

Todo o processo é estruturado de forma cartesiana e burocrática, relegando às regras, a responsabilidade de responder às perguntas, diretamente, de forma dedutiva-subsuntiva.

Sobre o tema, Lenio Streck afirma que:

Este é o calcanhar de Aquiles das posturas positivistas; face às insuficiências/limitações das regras, face aos “casos difíceis”, face à pluralidade de regras ou sentidos da(s) regra(s), o positivismo permite que o juiz faça a “melhor escolha”. O direito é, assim, apenas moldura na qual serão subsumidos os “fatos” (como se fosse possível separar fato e direito). Significa dizer, trabalhando com a ideia de sistema sem lacunas, que a própria previsão da “correção” e da “colmatação” das insuficiências do ordenamento faz parte do próprio ordenamento jurídico. Desse modo, remete-se ao próprio direito a tarefa de correção do direito[7].

Essa delegação, feita pelo positivismo, para que o juiz resolva os casos difíceis; de certa forma, justifica a preocupação do legislativo em apresentar textos objetivos, cujos conceitos sejam previamente elaborados pela dogmática jurídica. Por essa razão, ainda hoje, a codificação processual aposta em verbetes, enunciados, súmulas e no efeito vinculante da jurisprudência dominante.

Dito com outras palavras: para reduzir as “boas escolhas dos juízes”, pautadas pela discricionariedade assujeitadora da modernidade, o CPC investe em aportes normativos vinculantes, fortalecendo os tribunais superiores, por vezes, ao custo da isonomia material na qual se pauta a coerência do próprio sistema.

Vale dizer: “nossa distopia é a materialização de um modelo jurídico fundado na estabilidade e na eficiência, ainda que isso implique supressão da constitucionalidade e da qualidade[8]”.

Feitas as considerações introdutórias, passamos à análise de uma nova matriz filosófica, com a qual nos parece possível obter uma interpretação constitucional do Novo CPC.

De início, destaco que o novo sistema processual é decorrência lógica do Estado Democrático de Direito e sua proposta de isonomia material. Afinal, se o resgate da faticidade reclama atualização da estrutura normativa por determinação constitucional, outro não poderia ser o destino da legislação processual, que hoje se pauta por regras e princípios, estruturados para viabilizar respostas adequadas. Nesse mesmo sentido, destaca-se o artigo 190 do CPC, como cláusula aberta para as convenções processuais, o que, a toda evidência, permite ajustes no procedimento para adequá-lo às especificidades da demanda.

Esse investimento jurídico no resgate da causa, por meio de regras e princípios, ao que se busca demonstrar, gradativamente legitimou enunciados sobre a primazia do mérito, a desestruturação do rito executivo e a adoção de novas técnicas processuais, impondo para o intérprete a responsabilidade de evocar, sobre suas convicções pessoais, a história dos institutos jurídicos[9].

Para dar certo, entretanto, a interpretação do novo sistema jurídico-processual não pode navegar pelo mesmo horizonte positivista, guiando-se por premissas já superadas como o livre convencimento, as regras de experiência ou a subjetividade assujeitadora do intérprete. Esse caminho, advirta-se, conclui pela reprodução de padrões normativo-positivistas, onde os textos com tessitura aberta potencializam a discricionariedade e corroboram a criação, ad doc, de assertivos performáticos, desprovidos de força normativa, reiterando justamente o modelo que se busca superar, pelo bem da autonomia do direito e de sua produção democrática.

Sobre o tema, Streck leciona que:

Centenas de princípios invadiram o universo da intepretação e aplicação do direito, fragilizando sobremodo o grau de autonomia e a própria força normativa da Constituição, podendo ser elencados, exemplificadamente, alguns deles, tais quais: princípio da cooperação processual, princípio da simetria, princípio não surpresa, princípio da confiança, princípio da afetividade, princípio do fato consumado, princípio da instrumentalidade do processual, princípio da confiança na justa causa, princípio do deduzido e do dedutível[10].

Dito de outro modo: se a utilização dos princípios é potencializada pelo NCPC, isso não nos autoriza a concluir, necessariamente, pela ampliação de respostas judiciais ou mesmo por sua diversidade de conteúdo, se a semelhança dos casos impuser ao intérprete, coerência sobre suas conclusões.

A força normativa dos princípios e sua particular incidência sobre o caso é sinalizada por Ricardo Aronne, para quem:

Pensar principiologicamente dentro do sistema jurídico é alinhar segurança à justiça social, passível de preparação intersubjetiva, na dialética normativo-axiológica do sistema, que o horizonte da principiologia abre para o operador do direito. Trata-se de uma ruptura com o dogmatismo sem cair no ceticismo, pela recusa do objetivismo e subjetivismo, na perseguição da interpretação mais adequada ao caso concreto, ditada pelos valores do sistema, teleologicamente alinhados.

O sentido diferido para as espécies de normas, princípios e regras não é somente semântico. Sem prejuízo de sua jurisdicidade, regras e princípios possuem incidência normativa diferente[11].

É certo que a insuficiência das regras demandou novos instrumentos normativos, justificando textos jurídicos de tessitura aberta. Isso, entretanto, não é feito em benefício da discricionariedade, mas sim pelo resgate da faticidade. Por essa razão, princípios processuais devem traduzir padrões normativos de comportamento, seja para fundamentar decisões judiciais, seja para assegurar um mínimo de correlação entre a técnica processual e a especificidade da demanda. Com isso, acredita-se, a resposta judicial decorrerá das instituições e levará em consideração os limites semânticos estabelecidos democraticamente no espaço público.

É certo que a regulamentação processual, ventilada em 1072 artigos, não esgota as possibilidades, mas diante do intérprete está um novo sistema processual, que atrelado à faticidade, viabiliza a construção de procedimentos corretos, assim entendidos os procedimentos adequados às especificidades da causa, e que sob as garantias constitucionais, eventualmente se ajustam, por convenção processual ou determinação judicial.


Notas e Referências:

[1] CARNEIRO, Walber. Por uma hermênutica hetero-reflexiva. Porto Alegre. Livraria do Advogado. 2011. p. 94.

[2] Idem.

[3] MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. 5ª Ed. São Paulo: Atlas. 2015. P. 38.

[4] Sobre a relação do processo civil com a matriz liberal e sua estrutura individualista, que por décadas retratou a realidade por exemplos simplistas e desconectados da demanda, Leonardo Carneiro da Cunha sustenta que: “as normas que disciplinam o processo civil brasileiro foram inspiradas no paradigma liberal da litigiosidade, estruturadas de forma a considerar única cada ação, retratando um litigio específico entre duas pessoas. Em outras palavras, o processo civil é, tradicionalmente, individual, caracterizando-se pela rigidez formalista” (CUNHA, Leonardo Carneiro da. O regime processual das causas repetitivas. Revista de processo. Vol. 179, jan/2010, versão digital).

[5] Sobre o tema, por todos, consulte-se o capítulo oitavo da Teoria Pura do Direito, de Kelsen.

[6] Para tanto, basta verificar a função dos assim chamados: princípios gerais do direito.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 5º ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 169.

[8] STRECK, Lênio Luiz. ABBOUD, Georges. O que é isso – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre. Ed. Livraria do advogado. 2ª Ed, 2014. p. 12.

[9] Sem isso, acredita-se que o emprego dos princípios poderá ratificar posturas solipsistas, em claro desrespeito da democracia.

[10] STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e Decisão jurídica. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p 301.

[11] RIBEIRO, Marcelo e DINIZ, João Janguiê B. (Coordenadores). Constituição, Processo e Cidadania. Brasília: Gomes & Oliveira Editora. 2015. P. 234.


 

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