Por Gabriel Rodrigues de Carvalho - 18/03/2016
A doutrina mais recente vem, de maneira muito acertada, trabalhando as hipóteses de aplicação da teoria denominada “Perda de uma Chance” no Processo Penal.
Essa aplicação consiste, muito resumidamente, no fato de que a não produção de outras provas, quando possível e necessário dentro de um determinado contexto fático-probatório, acarreta no enfraquecimento do conjunto de provas produzido até então. “Há possibilidade de tal proceder e não se faz. Logo, enfraquecida resta a prova”[1]. Em outras palavras:
Nesse contexto, [...] cabe indagar se o Estado polícia, acusador e juiz, não deve exigir a produção de todas as provas possíveis, sob pena de flexionar a presunção de inocência pressuposta em nome da facilidade da condenação, fazendo com que o acusado perca a chance de questionar a consistência e coerência de todas as provas.[2]
Com isso, tem-se que essa recente forma de se pensar a questão probatória do Processo Penal trata de um advento importantíssimo para reforçar a presunção de não culpabilidade como critério hermenêutico.
Dito de outra forma: o Estado não pode perder a chance de produzir provas contra o acusado em nome da eficiência. Todas as provas possíveis se constituem como preceitos do devido processo substancial, já que a vida e a liberdade do sujeito estão em jogo. Deve, portanto, exigir-se a justificativa plausível para que tenha se perdido a chance de se produzir prova material, além da testemunhal, pelos agentes estatais. Não basta ausência de condições tecnológicas, pois essas são possíveis e não realizadas pelo próprio Estado. Há a perda de uma chance para defesa pela ausência de prova possível e factível da acusação, a ser apurada em cada caso. Por sua omissão o Estado ceifa a possibilidade de comprovação mais substancial e impede a perfeita configuração da ação típica.[3] [grifo nosso]
Diga-se que a teoria ora em tela se justifica, ainda, pelas próprias circunstâncias atuais que envolvem a produção probatória: trata-se de pleno século XXI, em que a tecnologia alcançou níveis inimagináveis (para o bem e para o mal, é verdade), próprios de verdadeiras ficções científicas.
Hoje, tudo é filmado, registrado, e compartilhado com uma facilidade ímpar, por exemplo. Como pode, portanto, existirem condenações com base única e exclusivamente em operações policiais sem quaisquer registros ou testemunhas presenciais?
Assim, a qualidade da prova que se faz possível produzir (e, consequentemente, exigir) antes de um decreto condenatório é outra, totalmente diversa daquela qualidade esperada quando promulgado o Código de Processo Penal atual, por exemplo.
Com isso, tem-se que:
O dano decorrente da condenação, mesmo ausente a produção de prova possível, implica no reconhecimento da modulação, invertida, da Teoria da Perda de uma Chance, no Processo Penal. Não se trata de dano hipotético ou eventual, mas sério e real da liberdade de alguém. A perda da chance probatória por parte do Estado acusação gera o nexo de causalidade com a fragilidade da prova que poderia ser produzida e, com isso, diante da omissão estatal, pode-se aquilatar, no caso concreto, os efeitos dessa ausência.[4] [grifo nosso]
Trata-se, como dito, de uma adequação da questão processual penal referente à produção de provas (desde o ônus probatório até a qualidade da prova em si) ao princípio da presunção de inocência. Veja-se:
Vale ressaltar que as maiorias dos tipos penais estão relacionadas à futura privação de liberdade, por isso necessita de levantamento comprobatório, para que o princípio constitucional não venha ser esquecido ou ignorado.
A parte acusadora não pode perder a chance de produzir provas materiais e factíveis, tanto que todas as provas angariadas são preceitos do devido processo substancial, conforme o espírito de um Estado Democrático de Direito.
Neste contexto observa-se que o princípio da presunção da inocência coaduna totalmente com a teoria da perda de uma chance probatória, forçando em outras ações penais que toda prova probatória factível seja angariada, para que se chegue em devida e justa condenação.[5]
Com isso, não só se afasta o debate de tais questões probatórias das noções exclusivamente civilistas (não ignorando as utilidades que delas podem advir, mas adequando-as às categorias próprias do Processo Penal[6]), bem como se adequa o processo a uma matriz efetivamente constitucional, tão imprescindível quando se fala de um CPP datado da década de 1940, e não raras vezes incompatível com o texto constitucional[7].
Essa adequação entre Processo Penal e Constituição deve, invariavelmente, se dar por meio de princípios.
Os princípios surgem como elementos norteadores da decisão judicial, e consistem no “modo jurídico de dar sentido a uma regra, aniquilá-la ou dar-lhe validade a despeito da convencionalidade”[8].
Esta é a função dos princípios: quando eles atuam, subordinam regras; são uma forma de raciocínio superior, mais sofisticado e dão, pela dimensão moral, uma racionalidade que legitima ou não a regra.[9]
É claro que, no que tange nosso ordenamento jurídico (constitucional),
assume relevância uma concepção adequada acerca do que é um “princípio constitucional”, que introduz o mundo prático no direito. Ou seja, o princípio recupera o mundo prático, o mundo vivido, as formas de vida (Wittgenstein). O princípio “cotidianiza” a regra. “Devolve”, pois, a espessura ao ôntico da regra. É “pura” significatividade e desabstratalização. Trata-se de uma espécie de “redenção da existência singular da regra” (veja-se que a regra é feita com caráter de universalidade / abstratalidade / generalidade).[10]
Daí que se extrai a enorme importância de se discutir a respeito da aplicação da Teoria da Perda de uma Chance probatória no Processo Penal, pois se trata de um instrumento apto a adequar as decisões judiciais nele proferidas aos princípios constitucionais, tudo de maneira racional (e não solipsista) e em respeito à integralidade do direito.
Como visto, a forma como se vem trabalhando a mencionada teoria prima por adequar decisões judiciais ao princípio da presunção de inocência, no que tange o contraponto entre um determinado conjunto probatório e o princípio do in dubio pro reo[11].
Entretanto, sem qualquer intenção de se esgotar o tema, entende-se que a mencionada teoria pode ser utilizada como critério hermenêutico apto a recuperar, nas decisões judiciais, a devida importância também dos princípios do contraditório e da ampla defesa. Veja-se.
É sabido que, no âmbito do Processo Penal, por força da presunção de inocência, cabe ao Estado produzir as provas que a mitiguem, sendo que tal ônus recai exclusivamente sobre o órgão acusador.
Porém, a prática penal demonstra que a defesa técnica não pode simplesmente ignorar as chances de produzir provas em favor da pessoa acusada, pois o Processo Penal deve ser visto como um verdadeiro jogo, no qual qualquer atuação pode alterar as consequências do processo:
Em todos os jogos processuais a conduta do jogador e do julgador possui a potência de modificar o resultado, já que a incerteza preside o jogo, com uma certa dose de álea. [...] O processo penal, assim, é um jogo assimétrico de informação.[12]
Desta feita, embora não tenha (ou não devesse ter) qualquer ônus de comprovar sua inocência, o réu, por meio de sua defesa técnica, deve atentar-se às chances que lhe surjam para produzir provas que lhe favoreçam.
Entretanto, não raras vezes, após elaborar pleitos de produção de provas, a defesa se depara com indeferimentos judiciais embasados no “livre convencimento” do julgador que, por sua vez, encontra respaldo jurisprudencial (dominante) e legal, vide artigo 155 do atual Código de Processo Penal.
Entretanto, tal “livre convencimento” deve ser visto com ressalvas, eis que “decidir não é sinônimo de escolher”[13].
Principalmente no que tange o Processo Penal, no qual, não raras vezes, têm-se decisões que, embasadas nesse “livre convencimento”, indeferem provas defensivas de forma arbitrária e, por que não, preconceituosa. Tanto é verdade que, em 1987, o então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Madeira, em julgamento de habeas corpus, realizou o seguinte alerta:
A Constituição Federal, ao falar da defesa ampla, garantiu sobretudo o réu, e não a acusação. Mas a prática diuturna da atividade profissional, na área criminal, tem demonstrado que os requerimentos do Ministério Público são acatados mais comumente, prevalecendo em relação à defesa o vezo de considerá-lo não raro como procrastinatórios, descabidos, etc.[14]
Nada muito diferente se vê nos dias atuais, nem mesmo após a promulgação da Constituição de 1988. É comum que uma atuante defesa (técnica) se veja, em determinadas atuações penais, nas mãos do julgador e de suas escolhas. Porém:
a escolha é sempre parcial. Há no direito uma palavra técnica para se referir à escolha: discricionariedade e, quiçá (ou na maioria das vezes), arbitrariedade. Portanto, quando um jurista diz que “o juiz possui poder discricionário” para resolver os “casos difíceis”, o que quer afirmar é que, diante de várias possibilidades de solução do caso, o juiz pode escolher aquela que melhor lhe convier...![15]
Aí entra a teoria da perda de uma chance, aqui trabalhada. Se o Estado tem o dever de produzir a prova mais qualificada possível, sob “pena” da perda de uma chance probatória, entende-se que o (in)deferimento de pleitos defensivos também deve ser visto sob o mesmo prisma.
Não pode o julgador simplesmente escolher entre o deferimento ou não de determinada (meio de) prova. Com a palavra, novamente, a doutrina mais qualificada:
Ora, a decisão se dá, não a partir de uma escolha, mas, sim, a partir do comprometimento com algo que se antecipa. No caso da decisão jurídica, esse algo que se antecipa é a compreensão daquilo que a comunidade política constrói como direito (ressalta-se, por relevante, que essa construção não é a soma de diversas partes, mas, sim, um todo que se apresenta como a melhor interpretação – mais adequada – do direito).[16]
Decidir conforme o direito estabelecido pela “comunidade política” nada mais é do que decidir de maneira adequada à Constituição. “Numa palavra: a resposta correta (adequada à Constituição e não à consciência do intérprete) tem um grau de abrangência que evita decisões ad hoc”[17].
Ao deparar-se com um requerimento defensivo de produção probatória, portanto, o julgador deverá atentar à Teoria da Perda de uma Chance; quanto mais frágil (poucas testemunhas presenciais, prova baseada unicamente na palavra da vítima ou nas palavras de policiais responsáveis pela prisão em flagrante, etc...), maior a necessidade de se deferir a produção de provas (não apenas da defesa, diga-se, mas primordialmente).
Efetiva-se, assim, o contraditório (provas e contraprovas); garante-se a ampla defesa e obsta o “reconhecimento da modulação, invertida, da Teoria da Perda de uma Chance, no Processo Penal”.
No caso de indeferimento (o que não pode ser proibido, mas deve ser racionalmente motivado com base em elementos efetivamente concretos), a Teoria da Perda de uma Chance probatória deverá ser novamente sopesada em sede de sentença, questionando-se: com o que fora produzido nos autos, é possível desconstituir o estado de inocência, considerando o anterior indeferimento de produção de prova? A prova antes indeferida, se houvesse sido produzida, alteraria a decisão final?
Decidindo assim poder-se-ia falar em coerência, integralidade do direito, racionalidade e, principalmente, adequabilidade da decisão judicial em face aos princípios constitucionais que constituem o efetivo due process of law, tudo de maneira escorreita, elaborada com base na Teoria da Perda de uma Chance probatória.
Tal recente forma de se pensar apresenta, pois, desdobramentos diversos, se mostrando, pois, extremamente versátil no que tange a adequação do Processo Penal à Constituição, merecendo os elogios doutrinários recentes e também eventuais críticas e discussões, pois o aprofundamento, sempre que possível, nunca é demais.
Felizmente, o tema já extrapola a doutrina, começando a surgir as primeiras decisões judiciais que se coadunam com essa maneira de pensar[18]; e isso é alentador.
Num Processo Penal tão comumente mitigado por interesses alheios às garantias fundamentais, sejam esses interesses punitivos ou meramente solipsistas, a teoria ora em debate surge como uma ilha de racionalidade na qual se pode aportar.
Daí a motivação do presente esboço. Não há, por óbvio, intenção de se esgotar o tema. Pretende-se apenas fomentar a discussão; nos dias atuais, nunca é demais debater sobre qualquer tentativa de se defender a adequação do Processo Penal à Constituição.
Notas e Referências:
[1] ROSA, Alexandre Morais da. Teoria da Perda de uma Chance probatória pode ser aplicada ao Processo Penal. Conjur. Publicado em: 20 de junho de 2014. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2014-jun-20/teoria-perda-chance-probatoria-aplicada-processo-penal#_ednref3 >. Acesso em mar. 2016.
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] PÔRTO JATOBÁ, Humberto Accioly. A aplicabilidade da Teoria da Perda de uma Chance Probatória, no Processo Penal. Empório do Direito. Publicado em 15 de março de 2015. Disponível em: < http://emporiododireito.com.br/a-aplicabilidade-da-teoria-da-perda-de-uma-chance-probatoria-no-processo-penal-por-humberto-accioly-porto-jatoba/>. Acesso em mar. 2016.
[6] Cabe aqui ressaltar a crítica doutrinária à teoria geral do processo, bandeira levantada constantemente por grandes processualistas penais como Aury Lopes Jr. e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho.
[7] Remetemos o leitor, nesse ponto, à noção de instrumentalidade constitucional, trabalhada em LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal – Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 29-68.
[8] FELIPPE, Marcio Sotelo. Direito e Moral. São Paulo: Estúdio Editores.com, 2014, p. 58.
[9] Ibidem, p. 47.
[10] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – Decido conforme a minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. Kobo Version (ebook). Não paginado.
[11] De acordo com o tema aqui trabalhado, entendemos que, em relação à noção de in dubio pro reo, se mostra pertinente a seguinte definição de Eugênio Pacelli: “In dubio, isto é, em caso de dúvida, deve permanecer íntegro o direito à realidade jurídica de inocente; por isso, deve-se indeferir a restrição pretendida, não porque a dúvida deva ser resolvida em favor do réu, mas porque somente a certeza poderá flexibilizar o exercício de um direito já anteriormente afirmado” (in: PACELLI, Eugênio. Processo e hermenêutica na tutela dos direitos fundamentais. 3. Ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 141).
[12] ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 37.
[13] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – Decido conforme a minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. Kobo Version (ebook). Não paginado.
[14] Supremo Tribunal Federal, 2.ª Turma, rel. Ministro Carlos Madeira, HC n.° 64.881/RJ, DJ 14.08.87, p. 16.087, j. 19.06.87.
[15] Idem.
[16] Idem.
[17] Idem.
[18] Juiz aplica, em sentença, a teoria da Perda de uma chance. Empório do Direito. Disponível em: < http://emporiododireito.com.br/juiz-aplica-em-sentenca-a-teoria-da-perda-de-uma-chance/ >. Acesso em mar. 2016.
. . Gabriel Rodrigues de Carvalho é Advogado criminalista. Graduado em Direito pela UniFAE (PR). Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela UniCuritiba (PR). . .
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