Por ocasião de todo período eleitoral, alguns temas vêm à tona e são alvos de debates entre os candidatos e diante dos diversos veículos de comunicação. Entre esses temas, de interesse da sociedade, destaca-se a questão da violência e da segurança pública.
Em 2016 - segundo o Atlas da Violência 2018, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) - o Brasil alcançou a terrível marca histórica de 62.517 homicídios, segundo informações do Ministério da Saúde (MS). Isso equivale a uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, que corresponde a 30 vezes a taxa da Europa. Apenas nos últimos dez anos, 553 mil pessoas perderam suas vidas devido à violência intencional no Brasil.[1]
Os problemas e dilemas da segurança pública brasileira, notadamente nas grandes cidades, são reflexos de um legado político autoritário. Para o professor Robson Sávio Reis Souza - especialista em Estudos da Criminalidade e Segurança Pública - “as bases do sistema público de segurança (ainda) estão assentadas numa estrutura social historicamente conivente com a violência privada, a desigualdade social, econômica e jurídica e os ‘déficits de cidadania’ de grande parte da população”.[2]
É certo que os mais vulneráveis são os que mais padecem com a omissão do Estado no que diz respeito à adoção de políticas públicas e sociais inclusivas. De igual modo, não há como negar que a população mais carente e marginalizada é, também, a mais atingida pela criminalização – primária e secundária – e pela violência estatal.
No que diz respeito a violência contra os negros, os dados trazidos pelo Atlas da Violência 2018 revelam que o risco de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,7 vezes maior que o de um jovem branco. Já o Anuário Brasileiro de Segurança Pública analisou 5.896 boletins de ocorrência de mortes decorrentes de intervenções policiais entre 2015 e 2016, o que representa 78% do universo das mortes no período, e, ao descontar as vítimas cuja informação de raça/cor não estava disponível, identificou que 76,2% das vítimas de atuação da polícia são negras.
A seletividade do sistema penal fica evidenciada nos dados trazidos pelo Atlas da Violência 2018. Segundo o Atlas da Violência “os negros, especialmente os homens jovens negros, são o perfil mais frequente do homicídio no Brasil, sendo muito mais vulneráveis à violência do que os jovens não negros. Por sua vez, os negros são também as principais vítimas da ação letal das polícias e o perfil predominante da população prisional do Brasil”. [3]
Nota-se que o Estado - com apoio da mídia e da opinião pública (da) formada pela elite e por boa parte da classe média - vem apresentando ao longo do tempo um modelo de segurança pública direcionado para medidas que criminalizam os movimentos sociais, a pobreza e as drogas. Além de tudo, o modelo de segurança pública brasileiro continua dando ênfase à repressão em detrimento de programas sociais e de medidas preventivas que não sejam controladoras.
Desgraçadamente, quando o Estado faz a opção pelo uso da força, os vulneráveis (pobres, negros e favelados) – os mesmos que integram a grande maioria da população carcerária[4] – são os principais alvos da repressão para atender os desejos, conscientes e inconscientes, dos endinheirados e de uma classe média conservadora e preconceituosa.
Diante dessa situação é imperioso que se reduza drasticamente a desigualdade social e os déficits de cidadania.
A questão carcerária e do encarceramento em massa é outro grande problema que precisa ser enfrentado sem demagogia e sem medo de desagradar aqueles que insistem no discurso oco da impunidade. A população carcerária que hoje, segundo último levantamento (2016) é de cerca de 750 mil presos – terceira maior do planeta – pode chegar a 1,5 milhões em 2025.
A taxa de aprisionamento de 352,6 presos a cada 100 mil habitantes está entre as mais elevadas, no mundo a média é de 144 para cada 100 mil habitantes. Com um déficit de mais de 350 mil vagas a população carcerária vem crescendo a cada ano. Outro dado bastante preocupante – segundo o INFOPEN de junho de 2016 - é que cerca de 40% da população carcerária é composta de presos provisórios (que não foram condenados definitivamente), situação que tem se agravado com a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que permitiu a execução provisória (antecipada) da pena.
Não obstante, hodiernamente, tem sido comum recorrer ao “discurso contra a impunidade” para fomentar a necessidade de incrementar o Estado penal em detrimento do Estado social. No dizer de Ricardo Genelhú “o discurso contra a impunidade tem servido de motivo para uma suposta restauração da “segurança social” quando na verdade, serve ela mesma, per se, é de desculpa para a perseguição ao “outro” (...)”.[5]
Não se pode negar que o discurso midiático - criminologia midiática - da impunidade, contribui sobremaneira para o avanço do Estado autoritário e para a cólera do punitivismo.
Atingidos pela criminologia midiática e pelo discurso da impunidade, políticos tendem a apresentar projetos de leis com viés autoritário, conservador e reacionário. Já os juízes, tendem agir de igual modo quando usam e abusam das medidas repressoras e de exceção, como a prisão preventiva, transformando a medida excepcional em regra e em antecipação da tutela penal, ou quando fixam penas privativas de liberdade bem acima do razoável em nome de uma prevenção geral positiva e/ou negativa e do apelo à prevenção especial negativa – neutralização e incapacitação do infrator - em prejuízo dos princípios garantistas, notadamente, o da culpabilidade.
Não, definitivamente a segurança pública não pode ser tratada e enfrentada apenas e tão somente como questão de polícia. A questão da segurança pública vai muito além da repressão e da “política penal”.
Leis draconianas, fruto da sanha punitivista, que extinguem direitos e garantias fundamentais, que criminalizam o agente (direito penal do autor) e que elevam penas a patamares estratosféricos – como se o direito penal fosse a panaceia de todos os males da sociedade - em nada, absolutamente em nada, contribuem para o enfrentamento da violência.
Numa sociedade de classes, destaca Nilo Batista, “a política criminal não pode reduzir-se a uma ‘política penal’, limitada ao âmbito da função punitiva do estado, nem a uma ‘política de substitutivos penais’, vagamente reformista e humanitária, mas deve estruturar-se como política de transformação social e institucional, para a construção da igualdade, da democracia e de modos de vida comunitária e civil mais humanos”.[6]
Por tudo, espera-se do próximo presidente da República, bem como dos deputados e senadores, que assumam o compromisso - em nome do Estado Constitucional e da Democracia - de enfrentarem a questão da violência e da segurança pública, sobretudo, como uma questão social e de políticas públicas.
Notas e Referências
[1] Disponível em:< http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=33410&Itemid=432 Acesso em: 21/9/2018
[2] SOUZA, Robson Sávio Reis. Quem comanda a segurança pública no Brasil? atores, crenças e coalizões que dominam a política nacional de segurança pública. Belo Horizonte: Letramento, 2015.
[3] Disponível em<: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf Acesso em: 21/9/2018
[4] A população carcerária brasileira é formada em sua maioria por homens negros, com baixa escolaridade e por jovens. O estudo mostra que menores de 29 anos, embora representem 10% da população brasileira, são responsáveis por 55% da lotação dos presídios no País. Homens negros, por sua vez, têm o risco de 1,5 vezes maior de ser preso do que um homem branco. Em 2012, por exemplo, para cada grupo de 100 mil habitantes brancos, havia 191 brancos encarcerados, enquanto para 100 mil habitantes negros, 292 negros encarcerados.
[5] GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
[6] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
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