1- Da imparcialidade:
O Pacto de São José da Costa Rica, em seu art. 8º, I, dispõe:
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ele, ou para determinarem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza (grifamos).
Hoje, é posição dominante nos principais tribunais de direitos humanos o reconhecimento da necessidade de se garantir um julgamento justo por um juiz ou tribunal imparcial.
Informa Geraldo Prado que a Corte de Estrasburgo assinala que a confiança do cidadão nos Tribunais de Justiça está, em grande parte, baseada no princípio da imparcialidade. Em igual sentido tem se pronunciado a Corte Internacional de Direitos Humanos (CIDH), para qual a parcialidade, sem embargo de observada apenas objetivamente, invalida por completo o processo penal.[1]
Mais adiante, Geraldo Prado traz à colação o catedrático de direito penal e Juiz do Tribunal Supremo espanhol Enrique Bacigalupo, para quem é pacificado o entendimento do TEDH que “a imparcialidade deve ser garantida objetivamente, mediante a determinação legal das causas de incompatibilidade, e de modo subjetivo, excluindo-se do processo o juiz que nutre sentimentos especialmente adversos relativamente a alguma das partes”[2] (grifamos).
Em sua “Mitologia Processual Penal” Rubens R. R. Casara[3] ao escrever algumas páginas sobre o mito da neutralidade do órgão julgador conclui ao final que a imparcialidade não se confunde com a neutralidade. A neutralidade, afirma Casara,
é impossível, ao passo que imparcialidade é garantia do jurisdicionado (...) o que está assegurado às partes é o fato de o juiz não ter aderido prima facie a qualquer das alternativas de explicação que as partes dialeticamente trazem aos autos, durante a relação processual.
No que diz respeito ao processo acusatório - opção e garantia constitucional - uma das consequências mais importantes é a separação entre juiz e acusação. Essa separação, segundo Luigi Ferrajoli[4], é uma exigência do axioma nullum iudicium sene accusatione. Essa garantia representa um distanciamento essencial do juiz em relação às partes.
O julgador deve, portanto, manter uma posição equidistante das partes e equilibrada diante do processo para que possa, ao final, buscar a decisão correta e mais justa e que resulta da sua imparcialidade.
Como bem assevera Gustavo Badaró, “a palavra juiz não se compreende sem o qualificativo imparcial. Não seria exagerado afirmar que um juiz parcial é uma contradição em termos”. [5]
A imparcialidade do juiz, adverte Badaró, “resta evidentemente comprometida quando o magistrado realiza pré-juízos ou pré-conceitos sobre o fato objeto do julgamento”. Invocando a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), o eminente processualista, observa que no julgamento do Caso Piersack vs. Bélgica, o TEDH decidiu que no tocante ao direito a um tribunal imparcial, “todo juiz em relação ao qual possa haver razões legitimas para duvidar de sua imparcialidade deve abster-se de julgar o processo. O que está em jogo é a confiança que os tribunais devem inspirar nos cidadãos em uma sociedade democrática”. [6]
2- Da parcialidade do juiz Sergio Moro no caso Lula:
Além da própria condenação do ex-Presidente Lula – pendente de recurso – pelo menos três fatos chamam a atenção e colocam em xeque a indispensável e necessária imparcialidade do magistrado:
2.1- Da ilegal condução coercitiva do ex-Presidente Lula:
Em 04 de março de 2016, com a deflagração da 24ª etapa da Operação Lava Jato, o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi conduzido coercitivamente por determinação do Juiz Federal Sergio Moro.
De plano, necessário destacar que a condução coercitiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva não teve nenhum respaldo legal ou jurídico.
O ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em momento algum se furtou de comparecer a qualquer ato para que fora intimado. Bastava a expedição de mandado de intimação para que o ex-Presidente da República prestasse esclarecimentos a respeito dos atos investigados na “Lava Jato”.
Em dezembro de 2017, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes em decisão liminar e monocrática, proibiu as famigeradas conduções coercitivas.
Na liminar que passou a impedir a condução coercitiva de investigados, o ministro Gilmar Mendes afirmou que: “A condução coercitiva para interrogatório representa uma restrição da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade, para obrigar a presença em um ato ao qual o investigado não é obrigado a comparecer. Daí sua incompatibilidade com a Constituição Federal”.
Em 4 de junho do corrente ano, o STF decidiu que é inconstitucional o uso de condução coercitiva de investigados ou réus para fins de interrogatório.
Por tudo, evidencia-se que a condução do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi fruto de decisão arbitrária, que ao arrepio dos ditames constitucionais e legais manteve o ex-Presidente Lula detido por horas, com ampla e total divulgação do ato aos meios de comunicação, em afronta ao princípio da presunção de inocência.
2.2- Da interceptação telefônica entre o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a então Presidenta Dilma Rousseff:
Em março de 2016, o País ficou atônito com os diálogos divulgados pela mídia, sem qualquer escrúpulo, envolvendo o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e diversas pessoas, entre elas a Presidenta da República Dilma Rousseff.
A gravação e divulgação da conversa mantida entre a Presidenta da República Dilma Rousseff e o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi um dos maiores atentados a República.
Conforme o próprio Juiz Federal - condutor da denominada operação “Lava Jato” - admitiu, os diálogos entre Dilma e Lula foram gravados quando aquele já havia determinado o fim das interceptações. Na verdade, a Presidenta da República foi vítima de espionagem.
O pior ainda estava por vir. A criminosa divulgação do áudio de conversa da Presidenta da República.
Ressalta-se que nenhum Juiz Estadual ou Federal - idolatrado ou não, herói ou anti-herói, salvador da pátria ou inimigo dela - tem a competência para determinar interceptação contra o Chefe do Poder Executivo. Por uma razão muito simples: a Constituição da República diz que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originalmente, nas infrações penais comuns, o Presidente da República (art. 102, I, “b” da CR).
Como não bastasse, verificou-se que o juiz Sergio Moro interceptou conversas do ex-Presidente Lula com seus advogados, quebrantando uma das principais prerrogativas do advogado (art. 7º, III do Estatuto da Advocacia e da OAB).
No que diz respeito ao “vazamento ilícito”, Rubens Casara observa que:
Ao permitir o vazamento ilícito de conversas interceptadas do ex-Presidente Lula, a partir da convicção de que o então investigado não merecia gozar de uma inviolabilidade assegurada pela Constituição, o juiz em atuação demonstrou não só um juízo de valor prévio desfavorável a um imputado, como também evidente comprometimento da imparcialidade exigida ao exercício legítimo da jurisdição. Impossível, pois, continuar a exercer a jurisdição em um processo penal no qual o ex-Presidente figure como réu.[7] (grifei).
Não é demais destacar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama que: “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei” (art. 12) e de igual modo a Constituição da República (art. 5º, X).
2.3- Da cassação do HC concedido por um desembargador Federal:
No dia 8 de julho de 2018, o desembargador Federal Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), concedeu ordem de habeas corpus determinando a imediata soltura do paciente Luiz Inácio Lula da Silva. A decisão causou uma verdadeira barafunda no meio jurídico e político.
No que pese todas as avaliações, é necessário dizer que a questão deveria ser tratada exclusivamente no campo jurídico e, notadamente, da lei processual penal e da jurisdição.
A jurisdição é um direito fundamental. Direito fundamental, no dizer de Aury Lopes Jr., “de ser julgado por um juiz, natural (cuja competência está prefixada em lei), imparcial e no prazo razoável.” [8] Certo, ainda, que vigora nesta seara o princípio da inércia da jurisdição, segundo o qual “o poder somente poderá ser exercido pelo juiz mediante prévia invocação. Vedada está a atuação ex-officio do juiz (daí o significado do adágio ne procedat iudex ex-officio)”.
A decisão do desembargador Federal Rogério Favreto, como é sabido, acabou sendo, indevidamente, cassada pelo juiz Sergio Moro (13ª Vara Federal de Curitiba), e pelos desembargadores João Pedro Gebran Neto (relator da apelação no TRF-4) e Carlos Thompson Flores (presidente do TRF-4) que bateu o martelo e, sob o manto de um inexistente “conflito positivo de competência” e em nome de uma obscura “segurança jurídica”, fez prevalecer a decisão do desembargador Gebran Neto, determinando que o paciente Luiz Inácio Lula da Silva permanecesse preso.
Muitos ficaram abismados com o fato do juiz da 13ª Vara Federal Sergio Moro ter se manifestado nos autos estando de férias em outro país. Contudo, se este episódio, por si só, chama a atenção, o que realmente causa espécie é o fato de o juiz de piso ter dado um despacho em processo que ele não mais tem jurisdição e nem competência no feito. O argumento de que foi citado no habeas corpus e na decisão é raquítico e insuficiente para dar ou devolver jurisdição ao magistrado da 13ª Vara Federal de Curitiba.
É certo que o desembargador Rogério Favreto era o único, entre todos que se manifestaram, que detinha jurisdição e competência para decidir.
3- Da nomeação para Ministro da Justiça:
É sabido que a nomeação de Ministro de Estado é um ato discricionário e, portanto, político. É inerente ao exercício do cargo de Presidente da República. Atendido os requisitos legais, previstos na Constituição, não há qualquer restrição a nomeação por parte do Chefe do Poder Executivo.
Segundo o constitucionalista José Afonso da Silva:
O cargo é de provimento em comissão e, consequentemente, de livre nomeação e exoneração pelo Presidente da República (art. 84, I), de que há de merecer confiança (à parte injunções políticas), ao contrário do sistema parlamentarista em que os Ministros dependem da confiança do Parlamento e devem exonerar-se, isolada ou coletivamente, quando ela lhes é retirada. [9]
Neste diapasão, não há dúvida de que o presidente eleito pode nomear o Ministro de Estado que lhe convier. Porém, além do presidente da República, caberia ao pretenso nomeado avaliar se a sua nomeação tem respaldo legal e, ainda, se está em acordo com os valores republicanos e democráticos.
A negociação e tratativa para Sergio Moro assumir o Ministério da Justiça se deu, conforme o próprio declarou, durante o pleito eleitoral e sem que o juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba tenha se exonerado do cargo. Situação essa, que por si só, compromete a nomeação do magistrado.
Não é despiciendo lembrar que foi graças a questionável decisão condenatória do juiz Federal Sergio Moro – depois confirmada pelo TRF-4 – que o ex-Presidente Lula foi impedido de disputar a eleição presidencial da qual era, segundo todas as pesquisas de opinião, amplamente favorito.
4- Conclusão:
Assim sendo, ainda que não seja neutro, pois nenhum ser humano o é, o juiz deve ser imparcial. Conquanto imparcial o juiz, principalmente o juiz criminal, deve compreender que o Estado é a parte forte na relação processual, o Estado é o detentor do jus puniendi e, portanto, se alguém deve ser “protegido” este alguém é o acusado. Assim, deve o magistrado zelar e portar-se como um verdadeiro guerreiro em defesa dos direitos e garantias fundamentais e em defesa da Constituição da República.
Diante de tudo, não resta dúvida de que os atos processuais praticados pelo juiz Federal Sergio Moro e ratificados pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no que se refere ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no seio da Operação Lava Jato e para além dela, devem ser anulados, principalmente, em razão da parcialidade inconteste.
Finalmente, é preciso que a sociedade entenda – goste ou não – que não se trata tão somente de uma questão política, mas, sobretudo, de respeito ao devido processo legal e aos princípios fundamentais insculpidos na lei processual penal e na Constituição da República da qual todos devem obediência.
Notas e Referências
[1] PRADO, Geraldo. “Entre a imparcialidade e os poderes de instrução no caso Lava Jato: para além da iniciativa probatória do juiz”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 24, nº 122, agostos, 2016.
[2] PRADO, Geraldo. Entre a imparcialidade e os poderes de instrução no caso Lava Jato... op. cit.
[3] CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
[5] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.p. 44.
[6] Cf. BADARÓ, op. cit. p. 45.
[7] CASARA, Rubens. “Juiz Natural à luz do processo penal do espetáculo: os casos ‘Operação Lava Jato’ e ‘Mensalão’. In: ZANIN MARTINS, Cristiano; TEIXEIRA ZANIN MARTINS, Valeska; VALIM, Rafael (Coord.). O Caso Lula: a luta pela afirmação dos direitos fundamentais no Brasil. São Paulo: Editora Contracorrente, 2017, pp. 193-210.
[8] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, volume 1. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 427-428.
[9] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
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