A delação premiada, como bem observou ALEXANDRE MORAIS DA ROSA[1], é – ainda – um território desconhecido.
É fato que, hodiernamente, a delação – chamada de colaboração com o fim de mascarar sua real natureza[2] – vem sendo utilizada sistematicamente e ordinariamente em substituição aos métodos tradicionais de investigação.
Sua criação foi influenciada pelo modelo italiano, mas o transplante de tais ideias para o ordenamento jurídico brasileiro representou um equívoco do legislador, mormente pelas diferenças de criminalidade e pela discrepante estrutura.
A delação premiada, também denominada colaboração espontânea com a justiça, surgiu nas décadas de 70 e 80, quando dos julgamentos dos delitos praticados pela famigerada máfia, não obstante o instituto tenha sido empregado na década de 80 na Espanha, no âmbito das práticas terroristas, o modelo que de fato influenciou e influencia diversos ordenamentos jurídicos é o modelo italiano.
Em que pese a nítida estruturação normativa italiana com o objetivo de deter e responsabilizar a máfia, a operazione mani pulite, inicialmente aclamada pela população italiana, foi ganhando espaço na crítica ante os abusos cometidos pelo Ministério Público e pelos juízes, especialmente "pelos exageros apontados nos encarceramentos preventivos, tanto que a operação passou a ser apelidada pela imprensa de 'operação algemas fáceis'."[3]
Iniciava-se um embate entre os operadores do direito, divididos entre o argumento de combate à criminalidade e do respeito às garantias fundamentais.
Neste diapasão, torna-se relevante saber qual a natureza jurídica e o valor probatório da delação premiada.
Para o procurador de Justiça CÂNDIDO FURTADO MAIA NETO, que não poupa críticas ao instituto da delação premiada,
A “delação ou colaboração premiada” é uma espécie de confissão espontânea (ou melhor, insistimos, sob pressão psíquica) sem garantia certa ao acusado, se o Estado-Juiz vai ou não acatar ou considerar as informações prestadas, para fins de desconto da pena anunciada, numa forma de condenação em perspectiva, ou melhor, via “extorsão oficializada” ou “extorsão legalizada”.[4]
Ao lado da questão ética, uma das questões mais discutidas no campo da delação ou colaboração premiada diz respeito ao seu valor probatório.
Segundo a Lei nº 12.850/2013, “Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador” (art. 4º, § 16).
Segundo ALBERTO SILVA FRANCO “a exclusiva palavra do coacusado constitui-se numa palavra deficiente, precária, inidônea. Equivale a prova nenhuma. E, se uma sentença se fundamenta numa prova dessa ordem, revela-se, inequivocamente, contrária à evidência dos autos” (Ver. 67.926, Capital, TACrimSP, 1º Grupo de Câmaras Criminais – RT, 498/335)
A possibilidade da palavra do co-imputado - indiciado ou acusado - ser utilizada como fonte de prova no processo penal brasileiro “é matéria de inovação legislativa que difere da valoração probatória que se irá conferir às informações trazidas ao processo pelo colaborador”.
BITENCOURT e BUSATO questionam tanto os aspectos éticos e legítimos da premiação ao “traidor” por parte do Estado, como o valor probatório da palavra daquele que trai, em tese, o seu comparsa em busca de uma vantagem. Segundo os autores, “para efeito da delação premiada, não se questiona a motivação do delator, sendo irrelevante que tenha sido por arrependimento, vingança, ódio, infidelidade ou apenas por uma avaliação calculista, antiética e infiel do traidor-delator”. Dependendo do que move o “traidor-delator” é bastante arriscado valorar o que diz o delator, por exemplo, por mera vingança ou por ódio. Neste sentido, asseveram, ainda, os destacados penalistas que: “Certamente aquele que é capaz de trair, delatar ou dedurar um companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, não terá escrúpulos em igualmente mentir, inventar, tergiversar e manipular as informações que oferece para merecer o que deseja”.[5]
MARIA LÚCIA KARAM, em comento aos abusos perpetrados no âmbito da famigerada “operação lava-jato” conduzida pelo juiz Federal da 13ª Vara Federal de Curitiba SÉRGIO MORO, notadamente, o número elevado de decretação de prisões provisórias com o claro intuito de obtenção de delações, observa que:
Trazendo para o trono de ‘rainha das provas’ a famigerada delação premiada, obtida em quantidade astronômica através da abusiva decretação de prisões provisórias com o nítido, chantagista e torturante objetivo de levar investigados ou réus a fornecer as provas que o Ministério Público cômoda e ilegitimamente se dispensa do ônus de produzir, a midiática ‘operação lava-jato’ tem aprofundado a totalitária tendência, já há algum tempo introduzida no processo penal brasileiro, de utilização de insidiosos e invasivos meios de investigação e busca de prova para ilegitimamente fazer com que, através do próprio indivíduo investigado ou acusado, se revele a verdade sobre suas ações tornadas criminosas.[6]
A prática da negociação e do escambo entre confissão e delação de um lado e impunidade ou redução de pena do outro, segundo FERRAJOLI , “sempre foi uma tentação recorrente na história do direito penal, seja da legislação e mais ainda da jurisdição, pela tendência dos juízes, e, sobretudo dos inquisidores, de fazer uso de algum modo de seu poder de disposição para obter a colaboração dos imputados contra eles mesmos”. [7]
Como bem salientou o processualista JACINTO NELSON MIRANDA COUTINHO,
O pior é que o resultado da delação premiada - e talvez a questão mais relevante - não tem sido questionado, o que significa ter a palavra do delator tomado o lugar da “verdade absoluta” (como se ela pudesse existir), inquestionável. Aqui reside o perigo maior. Por elementar, a palavra assim disposta não só cobra confirmação precisa e indiscutível como, por outro lado, deve ser sempre tomada, na partida, como falsa, até porque, em tais hipóteses, vem de alguém que quer se livrar do processo e da pena. Trata-se, portanto, de meia verdade, pelo menos a ponto de não enganar quem tem os pés no chão; e cabeça na CR.[8]
Não há na delação, no dizer preciso de GERALDO PRADO, nada que possa associá-la ao modelo acusatório de processo penal. Segundo o eminente processualista, os antecedentes do instituto da delação podem ser encontrados no “Manual dos Inquisidores”.[9]
Por tudo, é lamentável que a delação (colaboração) premiada venha substituindo a atividade investigativa do Estado. O Estado passou a conceder ao infrator (traidor-delator) o poder de determinar quem deve ser punido. Abrindo mão em favor do delator (colaborador) do monopólio do jus puniendi, o Estado revela sua incompetência e sua falência na pretensão de combater a famigerada e fantasmagórica criminalidade organizada. Não sendo demais martelar que quando se trata de violação de direitos e garantias fundamentais, o fim jamais pode justificar os meios, notadamente, quando os meios são imorais e aéticos.
NOTAS
[1] ROSA, Alexandre Morais da. Para entender a delação premiada pela teoria dos jogos: táticas e estratégias do negócio jurídico. Florianópolis: EModara, 2018.
[2] Neste sentido RUBENS CASARA, para quem “A delação é chamada de colaboração para disfarçar o desvalor ético inerente a todo e qualquer delator. Não poucos autores percebem que, com a delação premiada, o Estado perde a superioridade ética que deveria o distinguir do criminoso”. (Disponível em: [3] GRINOVER, Ada Pellegrini. O crime organizado no sistema italiano. In: PENTEADO, Jaques de Camargo (Coord.). Justiça penal 3: críticas e sugestões: o crime organizado (Itália e Brasil); a modernização da lei penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. 262 p., 19 cm. ISBN 85-203-1354-X. p.13-29. [4] Disponível em< http://emporiododireito.com.br/delacao-colaboracao-premiada-e-os-direitos-humanos-modelo-de-justica-com-tortura-psiquica-legalizada-imputacao-generalizada-pena-anunciada-e-condenacao-antecipada-por-candido-furtado-maia/ [5] BITENCOURT, Cezar Roberto e BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei de Organização Criminosa: lei 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 117. [6] Disponível em: < http://emporiododireito.com.br/a-midiatica-operacao-lava-jato-e-a-totalitaria-realidade-do-processo-penal-brasileiro/ [7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. [8] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Fundamentos à inconstitucionalidade da delação premiada. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.13, n.159, p. 7-9, fev. 2006. [9] PRADO, Geraldo. Da delação premiada: aspectos de direito processual. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 13, n. 159, p.10-12, fev. 2006. Imagem Ilustrativa do Post: Corazón Delator // Foto de: -Matais- // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mateogu/5143779220/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode