O momento econômico de crise pelo qual o país vem passando nos últimos anos tem aumentado significativamente o número de pedidos de recuperação judicial pelas empresas. Com o faturamento diminuído e o caixa comprometido, o descumprimento das obrigações junto aos credores é apenas uma consequência, mera questão de tempo.
Uma das alternativas à empresa em crise financeira é o pedido de recuperação judicial, amparado na Lei nº 11.101/05. Em anos difíceis a busca por esta alternativa tende a aumentar, porém no ano de 2016 os números são surpreendentes. Dados divulgados pela Serasa Experian indicam que o número de pedidos de recuperação judicial disparou em 2016, o maior desde 2006, quando já em vigor a Lei nº 11.101/05. A título exemplificativo, os pedidos no período de janeiro a agosto de 2016 (1.235) ultrapassaram em 61,2% o mesmo período do ano anterior, 2015 (766).[1]
Mas em momentos de crise, é comum que não apenas as obrigações trabalhistas e perante a fornecedores restem inadimplidas: na grande maioria das vezes, a empresa que busca a recuperação judicial também apresenta débitos de natureza tributária, cobrados através de execução fiscal, regida pela Lei nº 6.830/80.
A problemática reside no fato de que a Lei de Falências (Lei nº 11.101/05), que rege também o processo de recuperação judicial, prevê textualmente no parágrafo 7º do artigo 6º que as execuções fiscais não se suspendem com o deferimento do processamento da recuperação judicial:
Art. 6° A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.
[...]
§ 7° As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica.
De forma semelhante, o artigo 187 do Código Tributário nacional estabelece que a cobrança judicial do crédito tributário não se sujeita à recuperação judicial:
Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento. (Redação dada pela LCP nº 118, de 2005)
Assim sendo, o ponto nodal da controvérsia é compatibilizar a crise financeira da empresa com a necessidade de excluir os créditos tributários de seu plano de recuperação, por expressa previsão legal. Uma das possibilidades veio em 2014, com a edição da Lei nº 13.043/14 que trouxe uma tentativa frustrada de regulamentar o parcelamento previsto no final do parágrafo 7º do artigo 6º da Lei de Falências.
Diz-se que a tentativa foi “frustrada” tendo em vista que para muitos contribuintes a possibilidade de parcelamento apresentada é impossível de ser cumprida (0,333% do faturamento do sujeito passivo: da 1ª à 12ª prestação, 1% da 13ª à 24ª prestação, 1,333% da 25ª à 83ª prestação e o saldo devedor na 84ª parcela). Se a empresa já está em sérias dificuldades financeiras, procurando no Poder Judiciário o auxílio para tentar se reerguer, por certo não terá condições de abrir mão de uma parte de seu faturamento sem comprometer suas atividades diárias bem como o plano de recuperação judicial.
Da análise e interpretação literal do parágrafo 7º do artigo 6º da Lei de Falências e do artigo 187 do Código Tributário Nacional a conclusão é apenas uma: deferido o processamento da recuperação judicial e até mesmo aprovado seu plano, as execuções fiscais em trâmite contra a empresa recuperanda seguiriam seu curso normal, com a constrição de bens e sua expropriação mediante leilão.
Esta é a interpretação conferida ao tema atualmente pela 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, entendendo que a execução fiscal deve prosseguir com seu regular trâmite caso deferido apenas o processamento da recuperação judicial:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PLANO. INEXISTÊNCIA. ATOS EXECUTIVOS. POSSIBILIDADE.
Ainda que se estabeleçam algumas reservas quanto à prática de atos executivos contra sociedade em recuperação judicial, essas reservas só podem ser aplicadas no caso em que tiver sido concedida a recuperação judicial à sociedade devedora nos termos do art. 58 da Lei nº 11.101, de 2005, inclusive com aprovação do plano em assembleia geral de credores.
No caso de à sociedade executada ter sido deferido apenas o processamento do pedido de recuperação judicial, cabe a prática dos atos executivos contra seu patrimônio.[2]
No entanto, entende-se que a solução do impasse deve abranger outras variáveis, como a preservação da empresa e a preservação da função social da empresa.
O primeiro, princípio da preservação da empresa, é considerado implícito na Constituição de 1988, extraído da interpretação conferida pelo texto constitucional à ordem econômica. No âmbito infraconstitucional, o princípio da preservação da empresa é moldado a partir de um conjunto de dispositivos, dentre eles o artigo 805 do Código de Processo Civil (“Art. 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.”) e pela integralidade da Lei de Falências.
A preservação da função social da empresa, outro princípio não escrito, está relacionada ao cumprimento da função social da propriedade. Sua base constitucional é o artigo 170, caput e inciso III e, em termos legais, o artigo 116, parágrafo único da Lei das Sociedades por Ações (“Art. 116. [...]. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social [...]”). Nas palavras de Waldo Fazio Júnior[3]:
“Insolvente ou não, a empresa é uma unidade econômica que interage no mercado, compondo uma labiríntica teia de relações jurídicas com extraordinária repercussão social. É uma unidade de distribuição de bens e/ou serviços. É um ponto de alocação de trabalho, oferecendo empregos.”
Mais atenta a estes princípios, a posição da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região segue em sentido diametralmente oposto ao da 2ª Turma, entendendo que cabe ao juízo da recuperação judicial a atribuição para decidir acerca de todo e qualquer ato constritivo ou de alienação a ser praticado contra o patrimônio da empresa em recuperação judicial:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. SUSPENSÃO. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL.
1. A Segunda Seção do STJ firmou posição no sentido de que a execução fiscal não resta suspensa pela existência de recuperação judicial da empresa executada, não se autorizando, por outro lado, a prática de atos que gerem redução patrimonial ou exclusão do processo de recuperação.
2. Embora a execução fiscal não se suspenda com o deferimento da recuperação judicial, fica definida a competência do Juízo universal para dar seguimento aos atos constritivos ou de alienação.
3. Agravo desprovido.[4]
O entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça através da Segunda Seção pode ser ilustrado pelo trecho do voto do Ministro Massami Uyeda, destacando a preservação da empresa e sua função social:
“Todavia, também não se pode perder de vista que a própria constrição e a alienação de ativos deve ser analisada pelo juízo da recuperação judicial, ex vi dos princípios e normas legais que regem o plano de reorganização da empresa recuperanda, notadamente o princípio da continuidade da empresa e o de sua função social. Esses registros são importantes para evidenciar que há necessidade de se encontrar o ponto de equilíbrio em casos como o aqui analisado.” (AgRg no AgRg no CC 120.644/RS, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 27/06/2012, DJe 01/08/2012)
Recorda-se, também, o princípio da maximização dos ativos que rege os processos de insolvência, preconizando que para se cumprir “as finalidades do processo de insolvência, os ativos da empresa devedora precisam ser preservados e, se possível, maximizados. No mínimo, conservados.”[5]
Dessa forma, para que o administrador judicial nomeado possa exercer da melhor forma o seu trabalho e garantir o êxito de todo o processo de recuperação judicial (desde o deferimento do seu processamento até o cumprimento do plano), entende-se ser plenamente possível e salutar a suspensão das execuções fiscais em curso, sem a constrição de novos bens e sem a expropriação dos já penhorados. Trata-se de medida que, apesar de destoante da literalidade da lei, é a mais consentânea com o cumprimento dos objetivos da recuperação judicial, pautada na preservação da empresa e sua função social.
Notas e Referências:
[1] http://noticias.serasaexperian.com.br/indicadores-economicos/falencias-e-recuperacoes/
[2] TRF4, AG 5046281-18.2016.404.0000, SEGUNDA TURMA, Relator ANDREI PITTEN VELLOSO, juntado aos autos em 26/04/2017
[3] Fazzio Júnior, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 35.
[4] TRF4, AG 5048800-63.2016.404.0000, PRIMEIRA TURMA, Relatora MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE, juntado aos autos em 10/04/2017
[5] Fazzio Júnior, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 35.
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